Uma caminhada até à consciência, e para
lá dela
Mil Anos de História em Duas Mil
e Poucas Palavras
Por MARC FISHER
Lisboa, Público, 23
de Janeiro de 2000
Houve avanços e recuos. Alegrias e sofrimentos. Descobertas
e invenções, encontros e desencontros de povos,
culturas e religiões. Uma caminhada de mil anos, para não
sair do ponto de partida? Sob muitos aspectos, o ser humano não
mudou: mente, odeia, ama, enfurece-se, chora, refugia-se nas trevas
e irrompe de novo, determinado. Mas num ponto crucial ele é
diferente da criatura de há mil anos: tornou-se uma pessoa,
com o sentido da sua identidade e a ideia de uma existência
limitada mas norteada por objectivos, capaz de vencer os obstáculos
da vida, de fazer escolhas e de assumir posições
morais. Até aí, o consciente - e com ele a espécie
humana - já conseguiu chegar.
Nos últimos 1000 anos, o homem aperfeiçoou o tempo,
dilatou o dia, descobriu a descoberta, explorou o consciente,
apaixonou-se pela sua imagem, interferiu na criação,
aprimorou os instrumentos da própria destruição.
O seu objectivo permaneceu obscuro.
No primeiro século deste milénio, Jerusalém
transitava de mãos três vezes, acabando sob domínio
cristão. As conversações sobre o estatuto
da Cidade Santa encontram-se hoje num impasse. Apesar de os tempos
serem de mudança vertiginosa, há coisas que tendem
a eternizar-se. Em 1275, a eternidade perdia algum do seu mistério
com a invenção do relógio mecânico,
provavelmente por monges italianos, para medirem a duração
das suas orações. Nos anos de 1500, acrescentou-se-lhe
o ponteiro dos minutos e, quatro séculos mais tarde, o
mundo do trabalho negociava com o mundo empresarial os segundos
de que um trabalhador podia dispor para ir à casa de banho.
O tempo nada tem de imutável: muitas das suas estruturas
de base são recentes, inclusive o fim-de-semana (com 100
anos) e a hora de Verão (200 anos). Em 1879, com a invenção
da lâmpada por Thomas Edison, o sol, árbitro único
do dia e da noite, foi enfim deposto do seu trono.
Foi neste milénio que o homem desenvolveu a capacidade
de reger a vida, mas persistiram os escolhos e tormentos da condição
humana. O milénio começou como acaba, com agressões
e guerras, muitas delas em nome da fé. O cristianismo afirmou-se
desde o início como a coisa vindoura; em muitos sentidos,
este foi o milénio cristão. Mas as cruzadas assassinas
que entre os séculos XI e XIII propagaram devastação
enfureceram o islão, ofenderam o judaísmo e criaram
um legado de ódio religioso - feridas profundas que, volvidos
1000 anos, ainda estão no cerne dos conflitos da humanidade.
Por todo o mundo, a supremacia alternou ciclicamente com o declínio.
No século XI, coube aos chineses, precursores nas artes
visuais e da escrita e inventores da pólvora (século
XIII), que exportavam com um vasto leque de especiarias, a função
de ensinar o mundo. À medida que o domínio da China
se extinguia, outros poderes se foram impondo: Genghis Khan e
as suas expedições sangrentas em demanda de um império
mongol, desde o Pacífico ao Danúbio; o esplendor
do Mali, o reino da África Ocidental que nos séculos
XII e XIV deteve o controlo da quase totalidade do ouro a nível
mundial, enquanto a maioria dos povos do planeta sofria os efeitos
da peste e da penúria; a hegemonia dos otomanos na faixa
que se estendia dos Balcãs até Bagdad, até
à queda do seu império nos anos de 1600; e o ascenso
da Europa Ocidental, cuja dominação se prolongou
por quatro séculos, até ser suplantada pelo século
americano e se assistir ao renascer do poder económico
da Ásia, no final do período.
Desde 1430, quando surgiram as primeiras armaduras integrais,
até 1945, quando foram lançadas as primeiras bombas
sobre o Japão, semeando a morte sobre dezenas de milhares
de civis inocentes, os meios de destruição do inimigo
foram registando progressos assinaláveis.
Quem não fazia a guerra fazia amor. No começo do
milénio, na Índia e em grande parte do mundo não-cristão,
a adesão, liberta de constrangimentos, à sexualidade
tornou-se ocupação principal do homem, sobrepondo-se
à actividade comercial e colonizadora. Ao longo da primeira
parte do milénio, na China, em África e mesmo em
certos pontos da Europa cristã, homens instruídos
ensinavam que o prazer era o impulso mais nobre da espécie,
o remédio para todas as doenças - a "Sexual
healing", na expressão de Marvin Gaye.
Já perto do final do milénio, iniciar-se-ia um novo
período de liberdade sexual, impulsionado por formas mais
seguras de contracepção. Mas nos séculos
intermédios os povos viveram ciclos de repressão
e de libertação - desde os pés ligados das
mulheres aos beijos com a duração de horas, traduzindo
o apuramento da arte da carícia.
A doença foi combatida e derrotada vezes sem conta, conseguindo
sempre reorganizar forças e voltar a atacar. A peste negra
no século XIV matou um terço dos europeus e dos
povos do Norte de África; o Cairo, em tempos florescente
capital do comércio e da cultura, foi praticamente aniquilada,
nunca mais recuperando o esplendor. Pouco depois, a ciência
iniciava uma prolongada luta contra a Igreja, que via na busca
de certezas por parte do homem um desafio à própria
fé. Não se enganava.
Igreja e Renascimento
O cristianismo adquiria uma força sem paralelo, mas a fé
não era inabalável, assemelhando-se a um rio cujo
leito se molda à paisagem que atravessa. O judaísmo
primitivo repudiara a imagem, insurgira-se contra a idolatria.
Mas no início do segundo milénio, o cristianismo
deu largas à imaginação artística,
originando mil anos de expressão e um conceito revolucionário
sobre o papel do homem no mundo.
A narrativa emanou da imagem para a palavra, para a música,
o teatro, o espectáculo. Os artistas libertaram-se: de
Dante (1308) a Beethoven, no século XIX - o primeiro com
a sua abordagem, a primeira, dos pecados mortais e das principais
virtudes instituídas por Deus como a ordem da vida; o segundo,
ao transcrever em sons, que ele sentia mais do que ouvia, os altos
e baixos da experiência humana.
Mas a Igreja deixou de poder controlar aquilo que iniciara. A
imprensa de Johann Gutenberg (1436) permitia propagar o sagrado,
mas também os textos comuns; a informação
deixava de ser privilégio das elites, apesar dos regimes
totalitários. As potencialidades da arte ultrapassavam
a fé e atingiam o secular: Shakespeare, Leonardo, Miguel
Ângelo, Mozart rasgaram fronteiras e, com a ajuda de patronos
e de um público cada vez mais vasto, recriaram o mundo.
"Não vês que os olhos podem abarcar toda a beleza
do mundo?", perguntava Leonardo. Estava então longe
de imaginar as maravilhas que os séculos seguintes iriam
trazer: os impressionistas, a fotografia (1839, Louis Daguerre)
e o cinema (1896, Thomas Edison e os irmãos Lumière)
e seus afins transformaram o espelho reflector num caleidoscópio
do consciente. Em mil anos, a nossa visão da vida evoluiu
do livro de orações para o guião cinematográfico.
A verdade, outrora domínio exclusivo dos deuses, tornou-se
material de prova documental: impressa na página de um
livro, captada em película, registada em fita magnética.
No Renascimento, tornou-se evidente para o homem que o seu destino
era conhecer, descobrir. Em nome de Deus, do ouro, da glória,
os exploradores europeus ousaram navegar no alto mar. Mas 70 anos
antes de Colombo sulcar os oceanos, já o aventureiro chinês
Cheng Ho - um almirante eunuco muçulmano - protagonizara
uma odisseia de 10 mil milhas, até Zanzibar, ao comando
de uma frota de centenas de juncos. Não tinha como objectivo
negociar ouro ou escravos, mas distribuir oferendas que propagavam
a superioridade cultural da China. A par da nova era de descobrimentos,
a ciência iniciava o seu ascenso. Enquanto Galileu defendia
o ponto de vista de Copérnico de que o homem não
se encontrava no centro do universo físico (1543), o "Penso,
logo existo" de Descartes (1637) definia o ponto geométrico
da existência do ser humano. Liberta de entraves para investigar
a obra de Deus, sem receios nem necessidade de pretextos, a ciência
explodiu, produzindo as teses de Newton sobre a gravidade (1687),
de Mendel sobre a genética (1866), de Darwin sobre a evolução
(1859), de Einstein sobre a relatividade (1905) e de Watson e
Crick sobre o ADN (1953), o código que abriu o caminho
à revolução biogenética.
A paixão pela descoberta estendeu-se do mundo físico
à imaginação e à alma. A História
se encarregaria da castigar os que só tarde despertassem
para os esplendores da descoberta - as nações árabes,
asiáticas, africanas que resistiram à nova troca
global de produtos e ideias sofreram o atraso tecnológico
atrasadas, foram incapazes de competir comercialmente ou caíram
nas mãos dos colonizadores.
Na Europa, o Renascimento veio quebrar o monopólio da Igreja
no campo da legislação, da teologia, do poder. A
Reforma Protestante alargou os horizontes da fé e abriu
à humanidade os caminhos do racionalismo, do pluralismo,
da democracia e dos direitos individuais. Em 1517, Martinho Lutero
afixava as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, nelas
denunciando a corrupção de Roma e ousando propor
que entre Deus e os homens não houvesse mediadores.
O fosso entre os predestinados e o homem comum diminuiu. Pieter
Bruegel, pintor flamengo, foi o primeiro a representar cenas da
vida rural (1565); o Parlamento britânico aprovou uma carta
de direitos que garantia o exercício das liberdades individuais
(1689); vindos dos campos, os europeus acorreram em massa às
cidades, que rapidamente se expandiam (século XVIII).
Mas a desigualdade continuava a ser uma constante, apesar de o
ideal de liberdade se impor com cada vez maior vigor. Em 1508,
os colonos espanhóis escravizavam os índios autóctones
em Hispaniola. Em 1612, o padre jesuíta Francisco Suarez
batia-se pelos direitos dos índios invocando a igualdade
dos homens. Em 1619, chegavam a Jamestown, na América,
os primeiros escravos oriundos de África. Em 1772, na Rússia,
o czar Pedro, o Grande, autorizava que o homem do povo ascendesse
à nobreza por mérito próprio.
Industrialização
Apesar das vagas de inovação e dos surtos de excessos
- como o Taj Mahal (1653), o monumental templo em mármore
erigido em memória da mulher do imperador Shah Jahan da
Índia -, muitos viviam na miséria. "A vida
do homem é uma vida solitária, miserável,
desprezível, desumana e curta", escreveu Thomas Hobbes
no seu "Leviathan" (1651).
Só com a industrialização a vida do homem
comum viria a mudar. A máquina a vapor de James Watt (Inglaterra,
1776), o descaroçador de algodão de Elli Whitney
(Estados Unidos, 1793) e a primeira linha férrea a vapor
(Inglaterra, 1825) mudaram a natureza do trabalho, que passou
a inserir-se num espaço mais regulado, embora por vezes
mais propício a abusos. À Igreja ou ao monarca omnipotentes
sucedia agora a corporação, que, aligeirando habilmente
a carga de responsabilidade individual, se tornava autoridade
dominante a nível mundial, permitindo a acumulação
de capital, o assumir de riscos, a expansão da indústria.
Praticamente no mundo inteiro, a actividade financeira substituía-se
à fé, convertendo-se em aspiração
prioritária. Os arranha-céus sobrepuseram-se às
catedrais como expressão sublime da vontade do homem de
chegar mais longe.
Animados, por um lado, do sentimento libertador que lhes advinha
da consciência do seu potencial como pessoas e confrontados,
por outro, com as hierarquias cerceadoras dos sistemas governativos
e económicos, os povos reivindicaram liberdade de religião,
de expressão e de iniciativa individual. A Revolução
Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) foram
o rastilho de uma vaga de rebeliões. Em 1792, a radical
britânica Mary Wollstonecraft rejeitava a ideia de que as
mulheres eram seres inferiores e reivindicava oportunidades iguais
às dos homens no acesso à educação
e no trabalho. Na América do Sul, Simão Bolivar
libertava a Colômbia (1819) e a sua Venezuela natal do jugo
espanhol; embora os ingleses continuassem a coleccionar colónias,
a era da dominação europeia chegava ao fim. Em 1848,
eclodiam revoluções por toda a Europa - contra monarquias
renitentes e contra os abusos dos primórdios da era industrial.
Ainda nesse ano, Karl Marx exortava os operários à
revolta contra o capital; decorridos 50 anos, o sistema inspirado
por Marx ruiu, já que a revolta dos operários se
fez em defesa do capitalismo e das suas promessas de liberdade
individual. No Japão, em 1868, o imperador Meiji varria
do poder os "shoguns", que governavam havia 700 anos,
e o Japão abria-se à influência ocidental.
Na última metade do século XX, todos os vestígios
de colonialismo se esboroaram depois de a Índia, seguida
mais tarde por muitas nações africanas e pelos satélites
da União Soviética, ter declarado independência.
Quem sou eu?
E eis que o individual surge como o ponto fulcral da existência
humana. Fosse na novela, que desabrochou no final do século
XIX, princípios do século XX, ou no perscrutar freudiano
do íntimo (1900), o homem explorava os horizontes do psíquico.
Quem sou eu?, perguntavam Melville, Dostoievski e, sobretudo,
James Joyce. Na mente de cada um desenvolve-se um universo que,
sendo específico, é simultaneamente tão universal
como a exalação de anuência, arrebatamento
e pujança de Molly Bloom: "Primeiro envolvi-o com
os meus braços sim puxei-o todo para mim para que sentisse
o meu peito todo o perfume sim e o coração dele
batia descompassadamente e sim eu disse sim está bem Sim."
Ao mesmo tempo que analisava o seu universo interior, o homem
dava nova forma ao espaço em que se inseria, construindo
a linha férrea transcontinental que atravessava a América
(1869), o Canal de Suez (1869), o Canal do Panamá (1913),
transpondo novas fronteiras no espaço aéreo (os
irmãos Wright, 1903), aterrando em solo lunar (Neil Armstrong,
1969, só para mostrar que era possível) e possibilitando
a concepção fora do corpo humano (a primeira experiência
de bebé-proveta, Louise Brown, 1978).
Na mudança, contudo, algo se mantinha estável, o
que era simultaneamente reconfortante e angustiante: apesar dos
constantes atestados de óbito passados ao Estado-Nação
e aos impérios, nem um nem os outros mostravam sinais de
declínio. Pelo contrário, as nações
continuavam a seguir o modelo instituído pela China: inovação,
expansão, relativa igualdade de oportunidades e abundância,
por um lado; por outro, a devastação ambiental,
a rigidez intelectual, a paralisia social, as desigualdades -
a receita perfeita para o confronto civil, a guerra, a revolução.
Mexer bem e repetir. O império bizantino entrou em declínio
e morreu, derrubado pelos turcos e pelos cruzados cristãos;
a Rússia ergueu-se, caiu, reergueu-se e voltou a cair,
arrastada pela queda da União Soviética. A seca
e a doença flagelaram a África Ocidental, mas o
reino de Oyo [actualmente, cidade no Sudoeste da Nigéria,
sucessora da capital do império ioruba] e outros conheceram
de novo a prosperidade graças ao comércio de escravos
e de ouro, vindo a tornar-se vítimas dos colonizadores
e mergulhando mais uma vez no declínio. O espírito
humano ora se guindava às alturas ora se afundava em tenebrosos
abismos.
As grandes rivalidades e ódios étnicos que tão
poderosamente marcaram este século não cessaram
de irromper de forma imprevisível. As lições
ainda não tinham sido aprendidas: a cruel lição
do Holocausto nazi (1941-45), o assassínio em massa, sistemático,
consentido por um governo e apoiado por uma população
- um horror que não mais se deveria repetir e que desde
então se tornou recorrente, não cessando de se refinar,
em alguma parte do mundo. Este foi, do princípio ao fim,
o milénio da medição - das unidades de tempo
mais precisas, da redução das distâncias,
dos recursos remanescentes do planeta.
Sob muitos aspectos, o ser humano não tinha mudado: mentia,
odiava, amava, enfurecia-se, chorava, refugiava-se nas trevas
e irrompia de novo, determinado. Mas num ponto crucial ele era
diferente da criatura de há mil anos: tornara-se uma pessoa,
com o sentido da sua identidade e a ideia de uma existência
limitada mas norteada por objectivos, capaz de vencer os obstáculos
da vida, de fazer escolhas e de assumir posições
morais. Até aí, o consciente - e com ele a espécie
humana - já conseguira chegar.
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