A evolução começou pelos pés

 

Fonte:

Yvonne Rebeyrol, Lucy: Crónicas da Pré-História,

Publ. Europa-América, 1992, pp. 64-78

 

A hominização fez do Homo uma espécie muito particular:o homem e também o seu antepassado ou primo, o Australopiteco, são os únicos primatas dotados de posição erecta e de bipedismo, com todas as consequências derivadas deste novo estado de facto. Outra singularidade capital do homem: é a única espécie capaz de pensamento abstracto e de exercer influência sobre a sua própria evolução.

 

 

A identificação do homem de Neandertal em 1886 revolucionou a ideia que se tinha do passado da espécie humana’. A descoberta do homem de Java (1891) e depois a dos Australopitecos da África do Sul (1924) fizeram recuar a data das origens do processo de hominização. Finalmente, nos últimos doze anos, efectuaram-se várias descobertas capitais no Tanganica, no Quénia e no Chade, completadas por múltiplos achados em África, na Ásia e na Europa.

Numa primeira fase, os especialistas de paleontologia humana viram-se submergidos por inúmeras peças provenientes de puzzles discordantes, que era necessário tentar recompor no espaço e no tempo. Depois de vários anos de trabalho, conseguiram elaborar o quadro mais provável da história do homem, que põe ordem nos conhecimentos fragmentários actuais, embora tendo sempre presente que uma nova descoberta poderia modificar o esquema traçado.

De passagem por Paris, o Prof. P. V. Tobias, presidente do Instituto para o Estudo do Homem em África (Universidade de Witwatersrand, Joanesburgo), quis expor-nos brevemente o estado actual dos conhecimentos.

O processo de hominização parece ter começado em África, há cerca de 2 milhões de anos. Os Australopitecos são, com efeito, os hominianos mais antigos que se conhecem. Neles se encontram as primeiras provas dos progressos essenciais que os colocaram na via humana.

• A posição erecta libertou as mãos. O Australopiteco é um ser que se mantém e se desloca sobre os dois pés. O crânio encaixa-se na coluna vertebral de forma a permanecer em equilíbrio quando o seu possuidor está de pé, e a bacia tem uma configuração que permite que os intestinos nela repousem como numa "bacia". No caso dos macacos, mesmo entre os mais evoluídos, a posição erecta é apenas acidental: o seu cérebro une-se à medula espinal através de um canal situado na parte posterior da base do crânio e não no centro dessa base, como acontece no caso dos antigos Australopitecos, ou do Homo sapiens actual (isto é, nós próprios), e os seus intestinos ficam pendurados na sua bacia como um braço de grua, ao invés de nela repousarem.

• As mãos são capazes de maior precisão. O polegar, ainda muito curto entre os macacos superiores, alonga-se. As mãos ganham em precisão o que perdem em força.

• Os caninos são pequenos. Já não podem, por isso, servir de instrumentos naturais para morder ou despedaçar coisas duras. Também já não se podem utilizar para assustar eventuais inimigos, como fazem os macacos quando mostram as suas enormes presas. Estes caninos pequenos supõem, pois, a existência de técnicas de substituição, instrumentos tomados de empréstimo ao mundo exterior.

• O tamanho do cérebro é proporcionalmente maior. O cérebro dos Australopitecos não ultrapassa, em média, os 500 centímetros cúbicos. Esta dimensão parece ser pequena, até porque é precisamente igual à dos gorilas. Todavia, um gorila adulto pesa aproximadamente 150 quilos, ao passo que um Australopiteco adulto não devia ultrapassar os 50 quilos. Portanto, o tamanho do cérebro aumentou muito, proporcionalmente, na transição do macaco para o Australopiteco.

Apenas em África se encontraram restos de Australopitecos. No domínio do desenvolvimento humano, a África bate, e de longe, as outras partes do mundo. Com efeito, os mais antigos Australopitecos conhecidos remontam a cerca de 1,8 milhões anos e os mais recentes viviam há 800 000 anos. A Ásia só terá começado a ser povoada pelo Pitecantropo ou pelo Hoino erectus, uma espécie mais evoluída que sucedeu ao Australopiteco e que, tendo nascido em África, emigrou depois para a Ásia. Daí que os seus restos se encontrem tanto no Quénia e no Norte de África, como em Java e na China. Mas o Pitecantropo é muito menos antigo que o Australopiteco, pois apareceu possivelmente há cerca de 750 000 anos, tendo-se desenvolvido até há 100 000 anos atrás. Alguns autores pensam mesmo que os Pitecantropos sobreviveram, nalgumas zonas, até há 50 000 anos.

Com os Pitecantropos, deram-se muitos passos importantes na via da hominização. O seu cérebro desenvolve-se, passando de 750 centímetros cúbicos nos mais antigos, para 1250 centímetros cúbicos nos mais recentes. O Homo erectus, maior do que o Australopiteco, vive em grutas, em vez de as utilizar apenas como abrigo temporário. Começa também a dar forma a utensílios de pedra, tais como os bifaces chelenses e acheulenses, sendo pois as primeiras indústrias do Paleolítico obra sua. E, sobretudo, descobre a utilização do fogo. É na China, em Chucutião, em 1927, que se encontraram os primeiros restos de Hominianos associados a vestígios de fogo, embora há dois anos se tenham encontrado na Hungria vestígios igualmente antigos da utilização do fogo, num local ocupado outrora por Pitecantropos.

No decurso da história da hominização, a Europa entra em cena muito depois da África e da Ásia. Os vestígios mais antigos datam de há apenas 500 000 anos. Não se encontram em parte nenhuma os pebble tools, esses primeiros esboços de utensílios, pedras talhadas através de uma ou duas pancadas, que se atribuem aos primeiros Pitecantropos ou aos Australopitecos mais evoluídos. Contudo, a Europa surge ainda muito mais cedo do que a América, onde os antepassados do homem terão chegado há somente 35 000 ou 40 000 anos, e do que a Austrália, cujo povoamento deve remontar a apenas 20 000 anos.

Os vestígios encontrados são esparsos no tempo e no espaço. Não existe um único esqueleto completo anterior aos homens de Neandertal (sucessores dos Pitecantropos), autores das indústrias do Paleolítico Médio. De facto, só com os Neandertalenses apareceram, há 50000 ou 70000 anos, os ritos funerários com enterramento. A partir dessa época, os corpos puderam conservar-se por inteiro, mas, para os milhares de milénios anteriores, é um milagre encontrar restos de criaturas que então viviam.

Suponhamos que morre um burro no campo da Ilha-de-França, e que o seu cadáver ali permanece abandonado. Um mês mais tarde, restariam apenas alguns pedaços de osso dispersos e, depois de dois ou três meses, qualquer zoólogo ficaria contente por encontrar um dente ou uma vértebra. E, no entanto, a carcaça não fora atacada por nenhuma hiena, chacal, ou abutre. E provável que há 1 ou 2 milhões de anos os Australopitecos mortos em África desaparecessem ainda mais rapidamente. Quanto aos Pitecantropos, as condições para a sua fossilização foram sempre muito desfavoráveis, pelo que dispomos hoje de mais restos de Australopitecos do que de Pitecantropos.

Mas de simples fragmentos de ossos, informes para o leigo, os especialistas extraem múltiplas informações. Com uma parte de crânio, pode calcular-se o volume aproximado do cérebro, e a superfície interna dos ossos da caixa craniana dá uma ideia bastante fiel das circunvoluções do encéfalo. Os locais das inserções musculares nos ossos são cuidadosamente estudados: quanto mais potentes são os músculos, mais fortes são as suas ligações e, portanto, mais as marcas são evidentes...

No entanto, tais estudos exigem muita paciência e meses de trabalho. O Prof. Tobias, por exemplo, demorou seis anos a reconstituir e a estudar o crânio do Zinj antropo (Australopiteco) encontrado em mais de cem pedaços, em Olduvai (Tanganica).

Um dos principais problemas que os paleontólogos tentam resolver é o da evolução geral. Como é possível que partindo de um macaco se tenha chegado, há 20000 ou 25000 anos, até ao Homo sapiens actual? Segundo o Prof. Tobias, seria possível ver no Kenyapithecus de África e no Ramapithecus da Índia elos muito longínquos (remontando a 12 ou a 15 milhões de anos) da cadeia que termina no Homo sapiens. Estes dois antropóides, que diferem apenas pelo seu lugar de origem, têm caninos notavelmente pequenos, que formam um diastema no osso do maxilar superior. Esse diastema, que se encontra em todos os homens, não existe em nenhum outro macaco. Mas, até ao presente, ainda não se encontrou nenhum Australopiteco na Índia.

A passagem duma espécie para outra deve ter-se efectuado por selecção natural. Um indivíduo cujo cérebro fosse mais desenvolvido do que o dos seus congéneres tinha mais capacidade de conduzir a luta pela vida. As suas excepcionais capacidades intelectuais davam-lhe, pois meios de viver melhor e também de sobreviver durante mais tempo. Podia, por isso, deixar um maior número de descendentes, e estes, por sua vez, tinham hipóteses razoáveis de herdar as qualidades particulares dos seus progenitores. A linhagem normal, vencida pelo ramo favorecido pela natureza, ia desaparecendo a pouco e pouco. Esta evolução natural explicaria a coexistência (provavelmente não pacífica) de raças diferentes, que foram encontradas na África Oriental, e daria igualmente conta das criaturas intermédias, que os paleontólogos acreditam ter identificado. Por exemplo, actualmente coloca-se o Homo habilis, uma das inúmeras descobertas efectuadas pelo Dr. Leakey em Olduvai (Tanganica), a meio caminho entre os Australopitecos e os Pitecantropos.

Se, desde há 2 milhões de anos, a evolução natural favoreceu o desenvolvimento do cérebro dos nossos longínquos predecessores, por sua vez, a vida social, cultural e espiritual que caracteriza o homem revolucionou a evolução normal. A sociedade tomou a seu cargo o indivíduo desprovido de meios físicos ou mentais, que sobrevive tão bem como o seu congénere mais favorecido. O homem de Neandertal tinha um cérebro de 1600 ou 1800 centímetros cúbicos. O dos primeiros Homo sapiens, que surgiram há 25 000 anos, media apenas entre 1500 e 1700 centímetros cúbicos. A média inter-racial actual situa-se apenas entre os 1350 e os 1500 centímetros cúbicos.

 

O pensamento abstracto faz o homem.

Onde termina o homem de Neandertal e começa o Homo sapiens? Que factores comandaram a evolução humana: o clima, o meio natural? Que indústria assinala o aparecimento do homem moderno? As questões são inúmeras, mas é provável que sejam poucas as respostas definitivas.

O Dr. Louis S. B. Leakey, de Nairobi, apresentou a sua teoria relativamente à origem do homem. Reconhece que faltam muitas provas, mas pensa que as suas hipóteses são as mais lógicas. Desde há cerca de quarenta anos que o Dr. Leakey, a sua esposa e, agora, os seus dois filhos, procedem a escavações na África Oriental. É à família Leakey que se deve a descoberta, em 1948, no Quenia, do grande macaco Proconsul, que vivera entre 40 milhões e 25 milhões de anos atrás, e no qual se vê um dos primeiros elos da cadeia que conduziu aos Primatas e ao homem. Em 1959, o Dr. Leakey apresentava o seu Zinjantropo (Australopiteco), pertencente, pois, ao tipo mais primitivo de Hominianos e o mais antigo até então conhecido. As análises mostraram que o Zinjantropo ocupara a zona de Olduvai (na Tanzânia) de 1,8 milhões de anos a 800 000 anos atrás. Em 1962, foi a vez do Kenyapithecus, macaco cuja antiguidade remonta a cerca de 50 milhões de anos, e que parece tambem situar-se na linhagem dos antepassados dos Hominianos. Por fim, em 1959, o Homo habilis era encontrado pela família Leakey em Olduvai.

Ao apresentar o Homo habilis, o Dr. Leakey sublinhou que este novo Hominiano podia revolucionar todas as teorias sobre a origem do homem. A descoberta de uma criatura que apresentava características tão próximas das humanas, quando vivera há 1,8 milhões de anos era, por si só, uma revolução. Até então, a linhagem dos Hominianos progredia do rude Australopiteco, até ao Homo sapiens (ou seja, o homem actual), que apareceu há apenas uns 25000 anos. A evolução estava balizada pelo Pitecantropo, mais tardio e mais evoluído do que o Australopiteco e, depois, pelo homem de Neandertal, mais primitivo do que o Homo sapiens. E eis que surgia uma nova criatura tão antiga como os Australopitecos, mas mostrando já analogias flagrantes com o Homo sapiens.

Para o Dr. Leakey, o Homo habilis é o nosso único antepassado, sendo os outros hominianos apenas ramos aberrantes que não tiveram descendência. O Australopitecos e o Homo habilis apareceram ao mesmo tempo, mas só o Homo habilis se encontrava no ponto de partida da evolução frutuosa que conduziu ao Homo sapiens. Não obstante, há que assinalar que se encontraram em lugares diferentes, nomeadamente na Grã-Bretanha, em França, na Alemanha e na Hungria, crânios fósseis cujas características faziam pensar no homem actual, mas que provinham de camadas arqueológicas bastante antigas. Recentemente, Richard Leakey encontrou ainda na jazida do rio Orno (Etiópia), dois crânios bastante "modernos", mas também muito antigos. Esta dispersão de tipos já muito evoluídos supõe, evidentemente, uma dispersão anterior do tronco do Homo habilis.

Quanto aos Neandertalenses, o Dr. Leakey considera-os o produto -- também ele aberrante -- de cruzamentos entre a espécie Homo sapiens e os Pitecantropos. Estas duas espécies, já dispersas, originaram mestiçagens diferentes consoante as regiões: o homem de Solo, em Java, e o homem de Neandertal de tipo africano ou de tipo europeu.

Mas se o Dr. Leakey considera o Homo habilis o nosso único ancestral, não lhe atribui, no entanto, a qualidade de homem desde o seu aparecimento. Para ele, o homem nasce apenas com o pensamento abstracto, com os conceitos de magia, de religião e de arte. Ora o Homo habilis não era capaz de acender o fogo sempre que queria, não dispondo, por isso, de tempo para pensar, falar. trocar ideias, construir sistemas filosóficos. Durante o dia, caçava e de noite ficava de vigilância, silencioso e aterrorizado. Só o fogo "fabricado" e permanente trouxe segurança, proporcionando, assim, a tranquilidade de espírito capaz de produzir o pensamento abstracto. É certo que os utensílios apareceram muito cedo, mas, para o Dr. Leakey, o fabrico e utilização de diferentes tipos de instrumentos não significa que os seus autores sejam dignos de receber a designação de ‘homens’. São, apenas, "pré-homens". A passagem do pré-homem ao homem exigiu muito tempo, não devendo o homem «pensante» remontar a mais de 100 000 anos.

De qualquer forma, o Dr. Leakey pensa que o homem " nasceu" na região que engloba a África Oriental, a Arábia e o Oeste da Índia. Na lndia já se encontrou um macaco fóssil, o Ramapithecus, mais recente, mas bastante próximo do Kenyapithecus, e também foram descobertas indústrias primitivas. O Dr. Leakey está, por isso, convencido de que escavações sistemáticas na Índia ou na Arábia seriam extremamente proveitosas, já que a África Oriental não pára de mostrar a sua riqueza em fósseis. Depois das jazidas da Tanzânia e do Quénia, a Etiópia revelou, por sua vez, a estação arqueológica do rio Omo. A latitude e as altitudes escalonadas destas regiões foram extremamente favoráveis ao aparecimento e evolução dos Hominianos primitivos. Além disso, as suas terras vulcânicas são ideais para a preservação dos fósseis.

Quanto mais se procura mais se encontra. Recentemente, a Srª Leakey descobriu em Olduvai um crânio de Homo habilis que parece completo, ou quase. Por seu turno, o Dr. Leakey mostrou um dente encontrado em território queniano, ao sul do lago Rodolfo, que se supõe ter pertencido a um Hominiano que viveu há 8 milhões de anos.

 

A evolução começou pelos pés.

Um dente, metade de uma mandíbula, um fragmento de parietal: todos estes achados parecem ser, aos olhos do leigo, demasiado modestos para que deles se possa retirar seja o que for. É, no entanto, a partir deles, os especialistas podem, frequentemente, descobrir características que lhes permitem situar o proprietário deste dente ou daquele pedaço de osso, na lenta evolução dos Hominianos em direcção ao homem actual.

E evidente que os paleontólogos se guiam pela anatomia comparada. Assim, no caso dos Primatas (a ordem dos Mamíferos que agrupa os Lemurideos, os Símios e os Hominianos), observa-se, antes de mais, o esqueleto do homem actual, para ver o que o diferencia dos esqueletos dos outros primatas actuais. Depois, confrontam-se os primatas actuais com os antigos, identificados e datados, por forma a encontrar as etapas passadas da evolução. Os estudos de anatomia comparada podem ir até ao exame microscópico dos tecidos: a organização das células ósseas de dinossauro, por exemplo, é muito semelhante à dos répteis actuais, o que constitui a prova evidente de que uns e outros pertencem à mesma classe de vertebrados.

Os especialistas apoiam-se também nos princípios de evolução dos Primatas que presidiram aos processos de hominização. A linhagem humana desenvolveu características que a diferenciaram, antes de mais, da dos Pongídeos que, a pouco e pouco, se foram acentuando até se chegar ao homem actual: posição erecta, cérebro volumoso, braços relativamente curtos, pé não preênsil, mandíbula mais curta, incisivos menos estreitos, caninos muito reduzidos, saliência dos ossos do nariz, etc.

Entre os Hominianos, como entre todos os organismos vivos, a evolução de cada órgão seguiu ritmos diferentes. Como escreveu, com humor, o Prof. André Leroi-Gourhan: «Temos de nos resignar com o facto de termos começado pelos pés». A posição erecta foi a primeira característica particular a diferenciar o antepassado do Hominiano primitivo do «primo» que permaneceu na linhagem simiesca. O Oriopiteco, um pequeno primata do grupo dos Hominianos, que vivia no Mioceno Superior (há 12 milhões de anos), podia já deslocar-se nas duas patas traseiras, embora o bipedismo não fosse o seu modo de locomoção exclusivo (o animal era também um braquiador, como o testemunham os seus braços desmesurados). Mais perto de nós, os Hominianos Australopitecos ou Homo habilis --~, que viviam há 3 milhões de anos e talvez mesmo mais, tinham a parte superior do dorso ainda relativamente curvado. Mas já eram inegavelmente dotados de boa posição erecta e do bipedismo, pois o seu astrágalo, esse osso tarso que suporta todo o peso do corpo, é semelhante ao nosso.

A aquisição da posição erecta traduz-se, naturalmente, por modificações sucessivas das diferentes partes dos membros inferiores. O fémur evoluiu mais rapidamente do que a tíbia e, de facto, os Hominianos do Mar, que viviam há cerca de 3 milhões de anos, tinham uma tíbia relativamente idêntica à de um chimpanzé actual, ao passo que o seu fémur era já quase "humano".

Em seguida, deu-se a evolução dos dentes, que, por sua vez, conduziu à evolução de toda a face e do crânio. A dentição dos Pongídeos fósseis e actuais caracteriza-se por enormes molares e pré-molares e por caninos aguçados e incisivos muito largos, separados dos caninos por um espaço vazio (o diastema). Tanto os incisivos como os caninos são "proclives", o que significa que estão implantados obliquamente, de forma a fazer uma saliência para diante da cara, da qual constituem um alongamento. O primeiro pré-molar inferior é cónico, o que lhe dá, de uma maneira menos desenvolvida, uma forma muito comparável à do seu vizinho canino. Os três molares são muito largos (indo o tamanho aumentando do primeiro para o terceiro), de forma ao animal poder triturar os vegetais, que constituem o seu único alimento.

Entre os Australopitecos, os caninos aguçados e os diastemas já desapareceram, como desapareceu o anel de esmalte (o cingulum) que envolve a coroa dos molares e dos pré-molares dos macacos. Os incisivos diminuiram sensiveimente do tamanho: o primeiro pré-molar interior apresenta duas saliências (as cúspides), que o tornam semelhante ao segundo prémolar. Tanto os incisivos como os caninos estão implantados segundo um plano vertical: a face. ainda muito prógnata em comparação com a nossa, é, no entanto, muito menos alongada para a frente do que a dos macacos.

A dentição do homem actual (Homo sapiens) é muito diferente. Os molares são muito mais pequenos, sobretudo o terceiro o dente do siso que, muitas vezes ausente, está manifestamente em vias de desaparecer. Os pré--malares também são sensivelmente menores e os caninos diminuíram ligeiramente de tamanho. Em contrapartida, os incisivos pouco mudaram, com excepção do segundo incisivo superior, o que os torna dentes relativamente grandes em comparação com os molares que sofrem encurtamento.

Desde o seu aparecimento que o género Homo se diferencia nitidamente dos Australopitecos pela dentição. Os molares e os pré-molares do Homo habilis acusam uma forte redução de tamanho. O terceiro molar é, sem dúvida, sensivelmente maior do que os seus dois congéneres, mas isso pode ser atribuído ao facto de esse muito longínquo representante do género Homo ser de um tipo arcaico. No caso do Homo erectus que viveu entre 2 milhões e cerca de 200 000 anos atrás, e que é considerado o tipo intermédio entre o Homo habilis e o Homo sapiens —, o terceiro molar é já mais pequeno do que os outros dois, e a curva das superfícies dos dentes é muito semelhante à do Homo sapiens.

 

Sendo os dentes o tipo de restos encontrados mais frequentemente, eles constituem as únicas peças fósseis suficientemente numerosas para servir de base a estudos de estatística paleontológica. Compreende-se, então, que mesmo os dentes isolados possam ser significativos para os especialistas: basta colocá-los, segundo o seu maxilar de origem, no gráfico elaborado para os dentes do maxilar superior.

Obviamente que a evolução geral da dentição foi progressiva, e cada indivíduo, fóssil ou actual, pode apresentar variações pessoais consideráveis, em relação às médias que serviram para estabelecer o esquema. Aliás, as particularidades individuais constituem sempre fonte de dificuldades para os paleontólogos que trabalham com base em indivíduos. Apenas um exemplo: vimos em 1971, numa pequena cidade do centro do Afeganistão, um rapaz de uns 12 anos Obviamente que a evolução geral da dentição foi progressiva, e cada indivíduo, fóssil ou actual, pode apresentar variações pessoais consideráveis, em relação às médias que serviram para estabelecer o esquema. Aliás, as particularidades de idade, que apresentava uma dentição extraordinária. O seu maxilar superior era desprovido de incisivos (não podemos dizer se se tratava de um fenómeno acidental ou congénito, mas de qualquer forma o espaço vazio era demasiado estreito para alojar quatro incisivos de dimensões normais). Em contrapartida, o mesmo maxilar apresentava dois caninos gigantescos, que lhe teriam permitido desempenhar, sem recurso a prótese, o papel de criança Drácula! E, no entanto, esta criança só podia ser um Homo sapiens.

 

O homem é a única espécie animal capaz de influenciar a sua própria evolução.

Pensou-se que do primeiro Australopiteco (afarensis) descendiam não apenas as formas ulteriores de Australopiteco (Áfricanus e boisei na África Oriental, crassidiens, robustus e africanus na África do Sul), mas também o primeiro representante do género Homo, o Homo habilis. Comprova-se a existência deste último há cerca de 2,5 milhões de anos, mas também se encontraram na Etiópia e no Quénia restos que poderiam associar-se ao género Homo, e que datam de há 4 milhões de anos. Para Yves Coppens, professor no Museu Nacional de História Natural, uma coexistência tão antiga do género Australopiteco e do género Homo voltaria a pôr em questão a filiação do segundo a partir do primeiro. Dessa forma, o género Homo não teria tido tempo de evoluir a partir do mais velho Australopiteco conhecido actualmente. Descenderia, então, de um outro Hominiano um Australopiteco? anterior ao Australopiteco afarensis... mas que continua por descobrir.

Seja como for, o aparecimento do género Homo assinala um progresso decisivo da hominização. O Homo mantém-se perfeitamente na posição vertical, como testemunham as suas pernas e a forma como o seu crânio encaixa na coluna vertebral... A sua dentição é mais harmoniosa. Os Australopitecos têm incisivos e caninos muito pequenos, e pré-molares e molares muito largos. No Homo, os incisivos e os caninos são mais bem proporcionados em relação aos molares e aos pré-molares. Cada género tem, por conseguinte, uma alimentação diferente: os primeiros são vegetarianos e os segundos omnívoros. O cérebro começa a aumentar notavelmente. Na verdade, certos Homo habilis possuem um cérebro com apenas 500 centímetros cúbicos, mas outros têm já uma capacidade craniana de 800 centímetros cúbicos, enquanto o volume do cérebro dos Australopitecos se mantém sempre entre os 400 e os 600 centímetros cúbicos.

Para Yves Coppens, oHomo habilis, que se julgava ter permanecido acantonado entre 2,5 (ou 4) milhões de anos e 1,5 milhões de anos atrás, na África Oriental e na África do Sul, teria, de facto, começado a viajar muito cedo... Em sua opinião, os restos com 1,9 milhões de anos, encontrados em Java, bem como os da China, com 2 milhões de anos, pertenciam a uma criatura do género Ilorno, nitidamente mais arcaica do que o Homo erectus. O Humo erectus (durante muito tempo chamado Pitecantropo), sucedeu ao Humo habilis na linhagem humana. Viveu entre 1,7 milhões de anos e 100 000 anos atrás, e dele descende, por sua vez, o Homo sapiens (ou seja o homem actual). Se a hipótese de Yves Coppens fosse confirmada, ficaria demonstrado que a extensão do género Homo a uma área geográfica muito vasta foi muito mais precoce do que até ao momento se julgara.

Woo Ju-kang (Instituto de Paleontologia dos Vertebrados e de Paleoantropologia da Academia Sínica de Pequim) parece estar de acordo em fazer dos restos "chineses", com 2 milhões de anos de antiguidade, uma forma muito arcaica do género Homo. Por outro lado, este investigador considera que todos os Sinantropos (a forma chinesa do Homo erectus) apresentam já características mongolóides, nomeadamente incisivos superiores em forma de pás, maçãs do rosto salientes, osso do nariz mais perpendicular ao rosto, carena axial do osso frontal. Isto coloca, novamente, a questão do aparecimento do Humo sapiens. Segundo alguns especialistas, o Humo sapiens surgiu numa única região, ao passo que na opinião de outros o Humo erectus, presente em todo o Ve. lho Mundo, evoluiu em várias zonas ao mesmo tempo. Porém, esta teoria das evoluções simultâneas e paralelas que desembocam conjuntamente numa espécie única Homo sapiens é muito controversa.

Toda a evolução é progressiva. Entre dois estádios bem tipificados existem, portanto, todos os estádios intermédios possíveis e, tendo existido vários tipos num dado momento, poderia supor—se que eles eram interfecundos. Ora, segundo todos os biólogos, só são interfecundos os indivíduos que pertencem ~ uma mesma espécie. Ao aprofundar este raciocínio, Emilienne Genet-Varin (que se encontrava na Universidade de Paris—VI) chegou a questionar-se até se o género Homo estava realmente dividido nas espécies habilis, ~‘reetus e sapien.s e se não se pode falar de Homo sapiens desde o aparecimento do género Homo. Jan Jelinek (Universidade de Brno) coloca uma questão semelhante: o Homo erectus nâo é já um Homo sapiens?

De acordo com Bernard Vandermeersch (Universidade de Paris—VI), o Homo sapiens terá aparecido na Ásia e pouco depois chegado à Europa, onde deu origem a uma subespécie, o Homo sapiens neandertalensis. Este ter-se-á, em seguida, dirigido para este. De facto, só se encontra o homem de Neandertal na zona ocidental da Eurásia (de Gibraltar ao Usbequistão e ao Próximo Oriente) entre cerca 100 000 e 35 000 anos atrás, época em que desapareceu. No estado actual das investigações, não se conhecem outras subespécies do Homo sapiens (com excepção do Homo sapiens sapiens, que desde então ocupa os cinco continentes). Mas a Ásia e a África são muito vastas e foram pouco escavadas. Daí que não seja de excluir totalmente a possibilidade de subespécies do Homo sapiens contemporâneas do homem de Neandertal, e próprias desses dois continentes, virem a ser identificadas... um dia.

A espécie humana é verdadeiramente única em todo o reino animal. Naturalmente desarmados por uma marcha lenta, e pela ausência de garras ou caninos potentes, os antepassados do homem souberam, desde há 3 milhões de anos, munir-se com utensílios que lhes permitiram compensar as suas insuficiências, graças à sua capacidade de inteligência e de reflexão. A evolução do homem não é apenas morfológica e fisiológica, mas também cultural. Daí que o homem tenha conseguido adaptar-se a todos os meios que a pouco e pouco foi ocupando. e seja a única espécie animal que conseguiu expandir-se pelos cinco continentes.

A vida cultural e social do homem alterou a sua evolução natural. Na verdade, sobrevivem cada vez mais seres humanos que normalmente teriam morrido sem terem tido tempo de se reproduzir. É também evidente que as condições socioculturais se repercutem na evolução física. Por consequência, e como afirma Henry de Lumley, professor no Museu Nacional de História Natural, o homem é a única espécie animal capaz de influenciar a sua própria evolução.

A prematuridade dos recém-nascidos humanos, consequência do bipedismo, é um dado essencial para a aprendizagem do ambiente cultural.

De 16 a 21 de Outubro de 1982, reuniram-se em Nice dois mil especialistas de todo o mundo afim de fazerem o balanço dos conhecimentos relativamente à origem do homem. Este primeiro congresso internacional de paleontologia humana deu lugar a diversas conferências, como a que foi apresentada por Philippe Lazar sobre a prematuridade dos recém-nascidos humanos.

Não há dúvida de que o homem é certamente um parente próximo dos grandes macacos antropóides (chimpanzés, gorilas, orangotangos), pois assemelha-se-lhes física e geneticamente. Mas o homem é o único, entre os primatas actuais, a possuir três características específicas: o elevado volume do seu encéfalo, a posição erecta e o estado de prematuridade dos seus recém-nascidos. Estas características deram a Philippe Lazar, director do Investigação no Instituto Nacional da Saúde e da Investigação Médica, a oportunidade de lembrar que elas podem ajudar a interpretar as etapas da evolução que conduziram a hominização.

Todo o desenvolvimento, antes e depois do nascimento,é mais lento entre os homens do que entre os macacos. Um bebé humano não tem, durante vários meses, nenhuma possibilidade de agir por si próprio, ao passo que todo o jovem macaco se agarra com força à respectiva mãe logo depois de nascido, ou quase, e começa a cabriolar desde bastante cedo à volta dela. O macaco tem dentes (quer os de leite, quer os definitivos) mais cedo, e a sua maturidade sexual é também mais precoce do que a do homem. E, no entanto, a duração da gestação humana e simiesca é praticamente a mesma: quarenta semanas no caso das mulheres e entre trinta e três e trinta e nove semanas no caso das macacas antropóides. Diversos estudos sugeriram que para ser proporcional à dos grandes macacos, a gestação entre a espécie humana deveria durar vinte e um meses...

Mas é impossível que a duração da gestação humana se prolongue: o volume encefálico dum feto humano é tal que o canal obstetricial materno só a custo deixa sair o bebé. O parto implica mesmo que o feto gire antes de se penetrar no canal obstetricial e que os ossos do crânio do feto, ainda mal soldados, possam jogar uns em relação aos outros. A espécie humana teria, pois, atingido um limite no domínio da sua reprodução. O crescimento da cabeça do feto impõe que a gestação não dure mais do que quarenta semanas. Entre os grandes macacos, pelo contrário, o volume da cabeça é muito mais pequeno em relação às dimensões do canal obstetricial. E, no entanto, o volume do cérebro do macaco recém-nascido já é igual a 60 por cento do cérebro do adulto, ao passo que o do recém-nascido humano representa apenas 25 por cento do volume do cérebro do adulto.

A natureza humana reconheceu este facto, já que desenvolveu mecanismos reguladores do crescimento do encéfalo e, por consequência, do crânio. Até à trigésima semana de gestação esse crescimento é rápido (o perírnetro do encéfalo aumenta quase o quadrado do comprimento do embrião). A partir da trigésima semana, o crescimento é muito mais lento (o perimetro do encéfalo não aumenta, agora, mais que a raiz quadrada do comprimento do embrião). Depois do nascimento, o crescimento do encéfalo é novamente mais rápido, embora já não atinja o ritmo das trinta primeiras semanas de vida intra-uterina.

No caso dos verdadeiros prematuros, que não viveram in utero o período de crescimento lento do encéfalo, este, depois do nascimento, continua a crescer durante as primeiras semanas da vida extra-uterina ao ritmo rápido das trinta primeiras semanas de gestação. Curiosamente, entre os bebés que nascem dentro do tempo, mas que se apresentam de nádegas, o crescimento do encéfalo continua depois da trigésima semana a um ritmo um pouco mais lento do que antes.

Tudo parece passar-se, pois, como se o feto recebesse por volta da trigésima semana um sinal que fizesse diminuir o ritmo de crescimento do encéfalo. Ora, no decurso das últimas semanas de gestação, o feto que nascerá normalmente instala-se com a cabeça na parte de baixo do útero, de forma que a sua cabeça encaixa entre os ossos da pélvis materna. Será esse encaixe que desencadeia o sinal?

Existe um outro factor que favorece a prematuridade do bebé humano: a posição erecta, específica à espécie humana. Aliás, sabe-se que o risco de um nascimento ocorrer antes do tempo aumenta em função directa do número de horas que a mulher tem de permanecer de pé em virtude das suas ocupações profissionais.

Todas estas observações levaram Philippe Lazar a lançar a hipótese segundo a qual a evolução no sentido da hominização foi favorecida pela posição erecta. Quando os nossos longínquos antepassados desceram das árvores para viver na savana, ergueram-se para ver mais longe os eventuais perigos. A posição erecta, as longas caminhadas, as corridas diante dos predadores favoreceram então, provavelmente, no estádio do Australopiteco, uma linhagem capaz de manter depois do nascimento uma velocidade muito rápida do crescimento do encéfalo. Assim, essa linhagem ficou em condições favoráveis para beneficiar ao máximo dos estímulos do meio cultural no decurso do período de aprendizagem pós-natal. Mais tarde, sem dúvida em fases já avançadas da hominização, o bipedismo permitiu, sempre por intermédio da prematuridade, evitar a contra-selecção do nascimento de linhagens cuja duração de gestação se teria prolongado, e cujo volume craniano se teria tornado tal que a passagem pelo canal obstetricial se teria tornado impossível.

(FIM)