Windsor Methuen e o Ultimato

 

[Fonte: Revista do EXPRESSO, Lisboa, 02/02/02]

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O Tratado de Windsor (1386) estabelece as bases da mais antiga aliança europeia. Visto de perto, é uma aliança circunstancial, visto de longe é o corolário da percepção da importância do eixo atlântico em detrimento do mediterrânico

Luis Miguel Duarte

 

 

O casamento, no Porto, de D. João I com Filipa, uma das filhas do duque de Lancaster, inaugurou um período de lua-de-mel entre Portugal e a Inglaterra

 

Os chavões são sempre irritantes; mas é difícil pensar nas relações entre Portugal e a Inglaterra sem falar na «mais antiga aliança do mundo». Em vários episódios militares da Reconquista participaram cruzados ingleses: desde logo na tomada de Lisboa, em 1147. O primeiro bispo da cidade recuperada para os cristãos, Gilberto de Hastings, era inglês. E em 1199, o conhecido João Sem-Terra mandou uma embaixada ao nosso país para pedir a mão de uma princesa - leia-se, para formalizar uma aliança política que, afinal, não se concretizaria até 17 de Fevereiro de 1294, quando os dois reinos estabelecem formalmente relações «diplomáticas».

As relações comerciais avançaram mais depressa, sob a forma de garantias de protecção aos mercadores dos dois reinos. O Rei inglês, aliás, não prometia aos portugueses nada que não garantisse aos naturais de muitos outros reinos. Depois de mais tentativas falhadas de alianças matrimoniais (em 1344, Eduardo III pedira a mão de uma infanta portuguesa, filha de Afonso IV, para o seu filho, o famoso Príncipe Negro), em 1353 foi assinado um decisivo acordo comercial entre o Rei de Inglaterra e os mercadores portugueses, representados pelo portuense Afonso Martins Alho, tão hábil nas negociações que se popularizou a expressão «fino como um alho». Esse acordo deveria vigorar meio século. Mas o essencial da aliança política entre as duas coroas firmou-se no âmbito da Guerra dos Cem Anos. Curiosamente, o motivo próximo foi a ambição partilhada pelo Rei português D. Fernando e por John of Gaunt, duque de Lancaster (filho do Rei Eduardo III): ambos se diziam legítimos pretendentes ao trono de Castela, fragilizado pela chamada Guerra dos Trastâmaras. Em Tagilde, perto de Guimarães, no dia 10 de Julho de 1372, os dois emissários do Rei inglês (um dos quais era João Fernandes Andeiro) encontraram-se com D. Fernando, firmando um tratado que era essencialmente virado contra Castela e Aragão. É tradição fundar em Tagilde a aliança luso-britânica.

Arqueiros de Aljubarrota Só em 1381, aquando da chamada terceira guerra fernandina, as tropas inglesas vêm em efectivo socorro da periclitante posição do Rei português: o conde Cambridge chega a Lisboa com 2000 peões (metade dos quais temíveis arqueiros). Estas tropas tiveram algum papel dissuasor sobre os castelhanos mas, como se descreve ao lado, submeteram a população portuguesa às maiores selvajarias e, inclusivamente, cercando e atacando terras amuralhadas; perante os patéticos protestos de D. Fernando, os populares decidiram defender-se a eles próprios, infligindo pesadas baixas aos «aliados» britânicos.

 

Tropas luso-inglesas, comandadas pelo general Wellesley, atravessam o Douro, diante da Quinta do Prado do Bispo, durante a 2ª invasão francesa

 

Os terríveis incidentes foram rapidamente esquecidos, quando um mestre de Avis aflito se dirigiu a Ricardo II, invocando os tratados para poder recrutar soldados em Inglaterra: esses soldados, sobretudo os arqueiros, operaram maravilhas em Aljubarrota, como é sabido. Foi em contexto de vitória que se celebrou, em 9 de Maio de 1386, em Windsor, o tratado com o nome desta cidade: treze artigos jurando «liga, amizade e confederação geral e perpétua» entre os dois reinos. Visto de perto, o Tratado de Windsor não é mais do que isto: uma aliança circunstancial ditada por objectivos político-militares igualmente circunstanciais. Visto de longe é mais do que isso, como notou Luís Adão da Fonseca: é o corolário natural da percepção da nova importância do eixo atlântico em detrimento do primitivo domínio mediterrânico.

Seguiram-se algumas décadas de verdadeira lua-de-mel entre os dois reinos: desde logo em sentido literal, quando uma das filhas do duque de Lancaster, Filipa, casa, no Porto, com D. João I. Sabemos os resultados - múltiplos, em descendência e em influências - desse enlace. Se Portugal pôde respirar fundo, a Inglaterra não; foi a vez de cavaleiros e aventureiros portugueses combaterem ao lado dos ingleses nos últimos sobressaltos da Guerra dos Cem Anos.

A Armada Invencível A união ibérica concretizada por Filipe II interrompeu aquela lua-de-mel. Os ingleses apoiaram o prior do Crato, sem sucesso; Filipe II fez zarpar de Lisboa uma poderosíssima armada que se pensou invencível, mas que não resistiu aos ataques sucessivos das tempestades e de Francis Drake. Durante aqueles 60 anos, os corsários ingleses, como os franceses e os holandeses, atacaram duramente as colónias e os barcos portugueses, porque era a coroa castelhana que assim procuravam atingir. Após a restauração, D. João IV apressa-se a tentar restabelecer o bom entendimento com o Rei inglês Carlos I; mas este era decapitado pouco depois e durante o consulado de Cromwell as relações azedaram seriamente, a ponto de uma esquadra inglesa, comandada por Blake, ter bloqueado, em disposição de guerra, o porto de Lisboa. Os 28 artigos do tratado de 1654 entre os dois reinos são, de facto, uma submissão pura e simples de Portugal aos interesses do comércio inglês.

 

Dois nobres ingleses bebem vinho do Porto, em finais do século XVIII. O tratado de Methuen tornou os vinhos portugueses competitivos com os franceses, que eram melhores e mais baratos

 

Preocupada com o aumento de poderio do seu inimigo principal (França), a Inglaterra procura alianças e manda o seu ministro inglês em Lisboa, John Methuen, ressuscitar todos os antigos tratados e garantir uma eventual ajuda militar portuguesa. Em 27 de Dezembro desse mesmo ano, 1703, é este homem que consegue formalizar um tratado comercial que ficaria para a História com o seu nome: em duas palavras, os tecidos ingleses entrariam em Portugal sem limitações, enquanto os vinhos portugueses pagariam, em Inglaterra, apenas um terço do que pagavam os concorrentes franceses. O balanço deste acordo não é pacífico; mas aceita-se, com José Vicente Serrão, que, no momento em que é firmado, ele traduz uma situação existente: a força da economia inglesa junto da nossa, potenciada pelos acordos subsequentes à Restauração. E vai reforçar esse caminho, abrindo ainda mais o mercado português às exportações inglesas, especialmente têxteis (mas também cereais, lacticínios, bacalhau, produtos manufacturados), e escoando com maior fluência os nossos vinhos (e a fruta, e o azeite, e a lã) em Inglaterra, contra a fortíssima concorrência francesa. Em relação ao quinquénio anterior ao tratado, as importações de Inglaterra chegaram a aumentar 400 %, enquanto as exportações para lá sobem cerca de metade. Mas, atenção: no mesmo período, as importações de França cresceram 550%; é a explosão do comércio externo provocada pelo ouro do Brasil.

Continuando com J. Vicente Serrão, a tradição de alianças político-militares inauguradas em Tagilde reforçou-se, entre 1642 e 1703, com uma complementaridade económica: «A economia britânica, o seu sistema de comércio e navegação e os seus homens de negócios estavam aptos a fornecer ao mercado e aos mercadores portugueses os produtos (alimentares e manufacturados), os capitais e os créditos de que estes necessitavam, mas, em contrapartida, abriam também a porta às exportações agrícolas portuguesas.»

O negócio não correu bem: a taxa de cobertura das exportações pelas importações passou de 47%, em 1720, para 11%, em 1756. No final do século XVIII a tendência começa a inverter-se, mas aí o défice acumulado era já brutal. Pior: Portugal contava relativamente pouco na economia inglesa; esta, ao invés, era cada vez mais dominante na nossa. Portugal exportava poucas matérias-primas, e importava muitos e variados géneros alimentares e produtos manufacturados. E o mercado inglês chega a absorver 94% dos vinhos que exportámos. Assim se passou da complementaridade à pura e simples dominação: um verdadeiro abraço de jibóia. Os ingleses inseriram-se nos nossos circuitos comerciais e terão mesmo passado para o seu país a maior parte do ouro brasileiro.

A humilhação africana A participação inglesa na Guerra Peninsular é conhecida, com destaque para o protagonismo dos generais Wellesley, futuro duque de Wellington, e Beresford, responsável pela reorganização do Exército português. Não houve os excessos de 1381, mas houve alguns; e houve demasiados oficiais ingleses à frente de regimentos portugueses, bem como manifestações autocráticas de Beresford. Contra tudo isto se fez também, em boa parte, o Liberalismo. Houve ainda a abertura dos portos brasileiros ao trato inglês.

Durante o século XIX, se a Inglaterra fornece abrigo a muitos exilados do Liberalismo e alguns voluntários para esta causa, ela não deixará de se intrometer, com crescente sobranceria, nos assuntos internos portugueses; a situação atingiu o extremo durante a Patuleia, em 1847. O choque de interesses coloniais fez o resto. Assim se chegou ao Ultimatum de 11 de Janeiro de 1890, quando os ingleses trabalhavam no seu projecto de uma linha de caminho-de-ferro a ligar o Cabo ao Cairo e nos forçaram secamente a abandonar extensos territórios na África Oriental. A indignação lusa, tão inversamente proporcional à nossa impotência política, reverteu para o Partido Republicano e foi uma causa próxima da revolta portuense de 31 de Janeiro de 1891. A «mais antiga aliança do mundo» dera nisto. O que veio depois, guerras mundiais incluídas, nada acrescentou de especialmente significativo.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL, DIRECÇÃO JOSÉ MATTOSO, VI VOLUME, PÁGINA 145

 

A África Austral em 1895 e a prevista divisão das colónias portuguesas em 1898

 




 

Livrai-me, Senhor, dos meus amigos

 

 

Durante o reinado de D. Fernando, Portugal envolveu-se por três vezes em guerra com Castela, a pretexto da sucessão do trono vizinho. Na «terceira guerra fernandina», o Rei contou com

a presença de tropas inglesas: dois mil peões comandados pelo conde de Cambridge. Estávamos em 1381. Fernão Lopes descreveu o comportamento dos soldados ingleses: «Estas gentes dos ingreses que dissemos, como forom apousentados em Lixboa, nom como homees que viinham pera ajudar a defender a terra, mas come se fossem chamados pera a destruir e buscar todo mall e desonrra aos moradores d'ella, começarom

de se estender pella cidade e termo matando e rroubando e forçando molheres, mostrando tall senhorio e desprezamento contra todos come se fossem seus mortaaes emmiigos (...). Huuma vez chegarom alguuns delles (os ingreses) a casa d'huum homem que chamavom Joham Vicente, jazendo de noite na cama com sua molher e huum seu filho pequeno que ainda era de mama, e baterom aa porta que lhe abrisse; e ell com temor nom ousou de o fazer, e elles britarom a porta e entrarom dentro e começarom de ferir o marido; a madre com temor d'elles pôs a criança ante ssi polla nom ferirem, e nos braços d'ella a cortarom per meyo com huua espada, que era cruell cousa de veer a todos; (...)

Outros chegarom acima de Loures por rroubar huua aldea que he hi acerca; e em-na rroubando, matarom tres homeens; e matavom e destruhiam mantiimentos que muitas vezes mais era o dano que faziam que aquello que gastavom em comer; que tall aviia hii, se aviia voontade de comer huua lingua de vaca, matava a vaca e tirava-lhe a lingua e leixava a vaca a perder; e assi faaziam ao vinho e a outras cousas

Crónica de D. Fernando, Cap. CXXXII

Deve esclarecer-se que estes desmandos eram comuns no tempo. Como raramente tinham o soldo em dia, os soldados tratavam de se fazer alimentar e pagar pelas suas próprias vias, não perdendo tempo a distinguir amigos e inimigos.