A Arqueologia Pré-histórica em Portugal

Todas as sociedades humanas constroem os seus mitos fundadores, que constituem basicamente estruturas de explicação das remotas origens da espécie humana, das espécies animais, da Terra ou. pelo menos. de alguns animais e de algumas realidades físicas que pontuam a sua paisagem. Os fenómenos criacionistas que explicam e justificam as realidades observadas são tradicionalmente atribuídos a divindades.

As sociedades europeias não fogem, naturalmente, a esta regra. No entanto, pela laicização da cultura, pela criação de um método científico pela afirmação do primado da Razão, geraram um sistema de explicação das origens completamente diferente de todos os seus precedentes.

E certo que. neste caso, nos interessaria tratar concretamente da emergência do conceito de Pré-História e. igualmente, das questões relacionadas com o progresso dos conhecimentos sobre a antiguidade do Homem. No entanto, para os «naturalistas» do século passado, a constituição de um sistema explicativo da origem da Terra, das espécies animais e do Homem constituía uma unidade que se forjou na Europa ao longo do século XIX. Os estudiosos da época, normalmente chamados «Naturalistas», lidam, de facto, em bloco com estas três realidades, sendo por isso mesmo a Arqueologia Pré-histórica um campo peculiar do saber, no qual convergem duas tradições até então divergentes: a erudita, que situaríamos no âmbito das Ciências Sociais, e a «naturalista» propriamente dita.

E importante não perder de vista esta singularidade da disciplina, visto que justifica as suas principais virtudes e defeitos. Por um lado, porque predispôs desde sempre o pré-historiador para uma abordagem pluri-disciplinar de amplas perspectivas: mas também porque lhe legou a ingénua convicção de que lidava com «factos» e «fontes» em estado puro, que não careciam de ser sujeitos ao aturado crivo da crítica. Infelizmente, boa parte dos equívocos e fraquezas da disciplina radicam. de facto, nesta ingenuidade herdada da tradição «naturalista».

 

A explicação bíblica

O sistema de explicação das origens que os Europeus tinham interiorizado era o fornecido pela Bíblia. Atribuía-se, por isso mesmo, o aparecimento da Terra, dos animais e do Homem a um único acto criacionista determinado por Deus.

O fio narrativo do Velho Testamento possibilitava o estabelecimento da data de 4004 a, C. para esse acto de Criação, mediante a paciente reconstituição da genealogia do género humano, a partir de Adão e Eva. Todo o passado da Humanidade estava, por este método, devidamente enquadrado e. natural mente, explicado.

É certo que, a partir do século XVI, com o crescente interesse pelas antiguidades e pelas «curiosidades» naturais, foram sendo recolhidos e registados, um pouco por toda a Europa, vestígios que evocavam estranhos animais desaparecidos ou relíquias de um passado humano de escassa complexidade tecnológica. No entanto, tais vestígios, quando correctamente identificados, o que nem sempre acontecia, eram atribuídos aos tempos imemoriais que tinham antecedido o Dilúvio Universal, cataclismo que explicava a desaparição de muitas espécies animais e a ruptura de certas tradições culturais.

A descoberta em associação de vestígios do trabalho humano e restos de animais desaparecidos efectuada por diversos estudiosos em vários locais do velho Continente, nos fins do século XVIII e primeiros decénios do XIX, designadamente os de Johann Friedrich Esper, na gruta de Gaylenreuth, no Jura, Baviera, de John Frere, em Suffolk, de Buchland na gruta de Kinklale, de Jouannet na Dordogne, de Casimir Picard e Boucher de Perthes no vale do Somme, embora tenha gerado alguma perplexidade e controvérsia, não rompia, de facto, com a crença criacionista.

Esses tempos longínquos de que se não conservava qualquer escrito, nem tampouco algum registo na tradição oral, seriam crismados de «tempos antigos», «tempos da Sagrada Lei Escrita», evocando justamente a época do Velho Testamento.

A ruptura operada pela Geologia

A primeira ruptura com o sistema bíblico criacionista foi progressivamente insinuada pelos estudos geológicos.. O desenvolvimento que estes estudos conheceram. particularmente em Inglaterra. desde os finais do século XVIII. levaram à identificação de uma sucessão de camadas, geologicamente diferenciáveis, pela sua natureza, textura e coloração no subsolo, facto que parecia contrariar a tese de uma constituição operada num único momento. Deveu-se ao inglês James Hutton, na sua obra Theory of the Earth, publicada em 1785, a hipótese de ter sido a superfície terrestre constituída por um lento — e muito longo — processo de acumulação de realidades geológicas. Ao longo deste processo, identificava uma sucessão de fenómenos que teriam conduzido à constituição de massas geológicas diferenciadas (estratos), pontuada por fenómenos de natureza diferente, que geravam desconformidades, responsáveis pela diferenciação dos vários estratos.

Anos mais tarde, em 1816, um outro geólogo britânico, o escocês William Smith, procedeu a uma nova e surpreendente observação: a cada unidade estratigráfica correspondia um determinado conjunto de fósseis diferente, sendo possível estabelecer associações de animais em estratos profundos, que desapareciam para dar lugar a novas associações em camadas mais superficiais.

A conjunção destas duas ideias, por um lado, a ausência de uniformidade na constituição da Terra, por outro, a existência de diferentes associações de espécies animais. sucessivamente desaparecidas, vibravam o primeiro golpe nas convicções criacionistas. De tal modo que houve mesmo tentativas de harmonizar estes novos dados com a tradição bíblica, pela suposição de que teriam existido diversas catástrofes, análogas ao Dilúvio, seguidas de outros tantos actos de Criação, como propôs o paleontólogo francês George Cuvier, nos primeiros decénios do século XIX.

Todavia, as novas ideias sobre a constituição da Terra viriam a ser definitivamente estabelecidas pelo geólogo inglês Charles Lyell no seu grande tratado Principles of Geologv, publicado de 1830 a 833. Com esta obra afirmam-se as bases da «geologia uniformista» (ou fluvialista) que, basicamente, defende o primado da acção continuada dos agentes naturais de erosão, sobre as catástrofes naturais, no processo de formação da crosta terrestre. Este geólogo interessou-se também particularmente pelas questões relacionadas com os vestígios arqueológicos e a antiguidade do Homem.

A ruptura biológica

Com a sistemática identificação e estudo dos fósseis animais, foi sedimentando a convicção de que as espécies animais não teriam resultado de um processo único de criação. Particularmente em França, a partir do século XVIII, nos ambientes culturais «iIuministas», designadamente com Buffon e sobretudo com Lamarck, ganhou corpo a tese da existência de um processo de «transformação» nas espécies animais que teria gerado uma multiplicidade de seres muito superior à conhecida. Os ambientes tradicionais admitiam, inclusivamente. como se referiu, que o fenómeno da criação não teria sido único. Faltava, contudo, explicar de um modo convincente, como se teria produzido o processo de «transformação».

Foi, uma vez mais, nos ambientes culturais britânicos que a resposta surgiu. A investigação geológica fornecia a massa de dados suficiente e a noção de que o processo teria sido gradual, inscrito num dilatado espaço de tempo; as análises de Thomas Malthus sobre as pressões do meio ambiente sobre as populações, desenvolvidas no First Essay on Population, publicado em 1798 e as observações dos «naturalistas» estabeleceram os necessários nexos. De tal modo estavam disponíveis os dados suficientes para a formulação da chamada «Teoria Evolucionista» que, no mesmo ano, dois investigadores, que não mantinham entre si qualquer contacto, Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, publicaram em 18558, no mesmo volume do Boletim da Linnean Society, artigos defendendo teses análogas, utilizando, inclusivamente, as mesmas fontes de referência.

No ano seguinte, via a luz o estudo de Darwin On the Origin of Species by.Means of Natural Se!ection or The Preservation of Favoured Races in the Struggle for I.ife. A tese central da obra consistia na defesa de que as espécies animais se tinham especializado de forma crescente, em constante adaptação às pressões do meio-ambiente, tendo sobrevivido apenas as mais aptas para enfrentar as adversidades desse meio. Sublinhe-se, contudo, que este primeiro estudo se reportava somente às espécies animais, não abordando, ainda, a problemática da evolução humana e, por isso mesmo, não causou grande polémica. Na realidade, inadmissível para as concepções tradicionalistas era somente a ideia de que o Homem, o ser eleito da Criação, tivesse conhecido um processo semelhante.

Tal ideia, de algum modo implícita, foi explicitamente avançada por um discípulo de Charles Darwin, Thomas Huxlev, em 1863, na obra Man's Place in Nature e, posteriormente. em 1871, desenvolvida no célebre The Descent of Man.

A noção de Pré-história e a Arqueologia Pré-histórica

À Arqueologia Pré-histórica, como campo disciplinar de investigação do mais remoto passado das sociedades humanas constituiu-se no século passado, integrada neste ambiente cultural.

A cultura europeia de inspiração cristã tinha no Velho Testamento um conjunto de informações que tomava como os dados disponíveis sobre a mais remota antiguidade do nosso planeta. Assim, não existia propriamente um tempo Pré-histórico. anterior à existência do Homem com a aparência que hoje tem, nem sociedades humanas anteriores à produção de registos escritos. Havia, sim, na convicção destes autores, regiões para as quais dispúnhamos de escassa informação; daí as generalizações que acima referimos, que tornavam credíveis e aceitáveis os animais e os homens «pré-diluvianos».

No entanto, várias décadas de recolhas de vestígios do passado, por sucessivas gerações de antiquários, tinham possibilitado a reunião de vastas colecções de objectos diversificados. Da observação destes objectos resultava evidência que eles pertenciam a grupos sociais diversificados do ponto de vista da sofisticação tecnológica. As próprias observações do terreno conduziam a idênticas deduções. Por este motivo, Christian Thomsen, encarregado do Museu Nacional das Antiguidades da Dinamarca, confrontado com a necessidade de abrir ao público um espaço onde estariam patentes essas «antiguidades», adoptou um sistema sequencial de apresentação das mesmas, numa perspectiva de crescente sofisticação tecnológica, seguindo, aliás, uma prática usual dos antiquários escandinávios, sistematizada desde os fins do século XVIII. Assim, dividiu o espólio disponível por «Três Idades»: a da Pedra, a do Bronze e a do Ferro.

Esta operação, aparentemente simples, representou uma mudança extraordinária na atitude do antiquário perante os seus dados, particularmente porque o método dinamarquês viria a ser adoptado em muitos outros países da Europa. Pela primeira vez, o passado remoto não surgia mergulhado numa espécie de «limbo acrónico», fora do tempo, mas antes devidamente ordenado segundo um critério coerente e verosímil.

É certo que a cultura cristã ocidental, na continuidade de uma tradição grega, provavelmente «bebida» no Oriente, tinha uma já longa tradição moralista de divisão do passado, segundo uni sistema de «Idades». Este sistema falava de uma remota «Idade do Ouro», à qual se teria seguido uma «Idade da Prata» e outra do «Ferro», ou seja, de um processo de degenerescência moral das sociedades humanas. Todavia, o europeu do século XIX conhecia bem as sociedades «selvagens» dos Novos Mundos, tinha plena consciência do desigual desenvolvimento tecnológico, via em muitos dos artefactos utilizados por esses «selvagens» remanescências dos seus vestígios arqueológicos e, acima de tudo, tinha uma enorme confiança no progresso tecnológico. Para ele, a «Idade do Ouro» seria o futuro, nunca um qualquer tempo do passado.

Assim, os antiquários europeus, dotados de um primeiro modelo de enquadramento das realidades materiais do passado, careciam de um espaço cronológico para a inserção dessas realidades e, naturalmente, de refinar os seus métodos de recolha de nova informação. Foram precisamente a estes desígnios que as ideias evolucionistas e a nova geologia vieram responder. A sua adopção permitiu fixar, definitivamente, um objecto para a nossa disciplina — o estudo das sociedades humanas no passado, em processo de transformação — e proporcionaram-lhe o método de recolha da sua informação — o método estratigráfico de escavação. Um outro cruzamento com o evolucionismo de inspiração darwinista, ensaiado pelo sueco Oscar Montelius, viria a proporcionar um novo método de abordagem e tratamento dos seus dados empíricas: o método tipológico. Ëste supunha que os dados da cultura material poderiam ser ordenados segundo um critério de crescente complexidade, do mais simples para o mais sofisticado.

O termo «Pré-história», propriamente dito, parece registar-se pela primeira vez em 1851 na obra The Archaeologv and Prehistoric Annals of Scotland, de Daniel Wilson, embora tenha sido popularizado fundamentalmente pela obra Prehistoric Times de John Lubbock, publicada pela primeira em em 1865. A obra de Lubbock constituiu um importante êxito, com numerosas edições e traduções. E particularmente importante, também, porque constituiu uma primeira «revisão» do modelo das «Três idades», pela subdivisão em duas da «Idade da Pedra». Demonstra igualmente, de um modo claro, a continuidade da inspiração darwinista no meio dos pré-historiadores.

Naturalmente, as concepções dos pré-historiadores de hoje são bastante diferentes das dos seus congéneres da segunda metade do século passado. Contudo, os princípios básicos estabelecidos naquela época constituiram, sem dúvida alguma, os fundamentos da moderna disciplina.

 

A Pré-história em Portugal

O estudo da antiguidade pré-histórica no actual território português conheceu geneticamente os mesmos desenvolvimentos que nos outros países da Europa e, embora não tenha revestido nunca o carácter inovador que rastreamos na Escandinávia, França ou Grã-Bretanha, apresentava nos finais do século passado um grau de desenvolvimento e rigor metodológico análogo ao daqueles países.

Os tempos remotos e obscuros

Quando os primeiros antiquários portugueses iniciaram os estudos sobre o mais remoto passado do actual território português adoptaram uma de duas atitudes: ou tentavam mi rebuscar tradições que justificassem essas antigas ocupações ou adoptavam uma mais prudente e reservada atitude, circunscrevendo a sua atenção ao período da conquista romana. Interessa-nos especialmente aqui a primeira atitude.

Embora os cronistas do século XVI admitissem que a Península Ibérica teria sido ocupada em época pré-diluviana, por dificuldade em encontrar dados sobre esses tempos, transpunham o «acto fundador» da «Civilização Hïspânica» para o período imediatamente posterior ao Dilúvio Universal. O «primeiro povoador» teria sido Túbal, neto de Noé, que teria viajado até às paragens ocidentais do Mediterrâneo. Para o reino de Portugal, localizava-se a primeira cidade em Tróia de Setúbal. Por um lado, porque o topónimo parecia evocar o nome bíblico, por outro, porque as ruínas do areal do estuário do Sado forneciam a «prova» material do povoamento. Esta tradição, ao que parece estabelecida pelo espanhol Floriano del Campo, encontra-se referida por Frei Bernardo de Brito no Livro Primeiro da Monarchia I.usitana, publicado em 1597.

No entanto, devemos sublinhar que esta leitura é construída não a partir de vestígios materiais, mas da tradição literária. Aqui, o vestígio material fornecido pelas ruínas de Tróia funciona, somente, como a ilustração material de uma explicação que se constrói independentemente dele.

Uma outra realidade, sem dúvida mais interessante, é a que se relaciona com a necessidade de explicar fenómenos observados, mas cujo real significado se desconhece. Neste domínio, o monumento megalítico constitui o vestígio pré-histórico que mais atraiu a atenção dos antiquários. Por um lado, porque se tratava de uma realidade que se impunha na paisagem e, por isso mesmo, não passava despercebida; por outro, porque resultava evidente que se tratava de um produto da acção humana.

Deste modo, pode dizer-se que as considerações em torno dos monumentos megalíticos constituem os primórdios daquilo a que hoje chamamos a Arqueologia Pré-histórica, na medida em que correspondem a uma tentativa de construção de um discurso explicativo sobre uma realidade humana não documentada por outras fontes de informação. Refira-se que nos outros países da Europa foi também o fenómeno megalítico que primeiramente despertou os antiquários para o estudo dos «tempos obscuros».

No entanto, como antes do século passado não existia um conceito de «Pré-história», a interpretação funcional dos monumentos e o seu enquadramento cronológico-cultural era, uma vez mais, procurado no âmbito da Bíblia. Assim, em termos funcionais, para os homens dos séculos XVII. XVIII e inícios do XIX, a anta era um altar destinado a sacrifícios. Encontramos esta interpretação em inúmeros textos, desde as memórias de viagem de Manuel Severim de Faria, datadas de 1609, até ao relatório de José Gaspar Simões dos fins do século XVIII, passando pelas conferências de Martinho de Mendonça e Pina e Afonso da Madre de Deus Guerreiro, apresentadas no âmbito dos trabalhos da Academia Real da História, no segundo quartel daquele século.

As opiniões correntes na época sobre tais monumentos demonstram claramente a convicção de que se tratava dos mais antigos monumentos existentes no território e que tinham sido construídos sem recurso a instrumentos metálicos. Quanto à interpretação funcional e cronologia, os estudiosos recorriam a um passo do Velho Testamento onde se recomenda que os altares onde se louva o verdadeiro Deus deveriam ser feitos de pedra onde não entrasse a acção de instrumentos metálicos. Deste modo, resultava evidente para todos que se tratava de antigos altares erguidos para louvar o Deus de Israel, erguidos no tempo da «Sagrada Lei Escrita».

Em Sines, regista-se um curioso caso de «cristianização» de um destes monumentos. Trata-se de uma anta existente no Cabo de Sines que, por tradição, se dizia ser o túmulo de S. Torpes. Foi escavado nos inícios do século XVIII e os materiais recolhidos no seu interior foram guardados como relíquias do Santo. Em outros casos, a dissociação entre o seu conteúdo e o monumento propriamente dito era particularmente notório. O já referido padre Gaspar Simões escavou uma anta na Beira Alta, tendo encontrado no seu interior diversos artefactos líticos que descreve sem, contudo os associar a uma eventual utilização, nem tampouco aos seus construtores.

 

As origens da Arqueologia Pré-histórica

Tal como se verificou nos outros países da Europa foram os ambientes dos «naturalistas». particularmente dos geólogos, que marcaram a grande ruptura onde poderemos identificar o nascimento da Arqueologia Pré-histórica portuguesa. De facto, homens como Carlos Ribeiro, J. F. Nery Delgado e Augusto Pereira da Costa, ligados à Comissão dos Trabalhos Geológicos e ao ensino na Escola Politécnica foram os responsáveis pelos primeiros estudos modernos, deste âmbito, em Portugal.

F. A. Pereira da Costa, em 1867, preparou uma exposição para enviar ao Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-históricos, que nesse ano se reuniu em Paris, intitulada Noções sobre o Estado Prehistorico da Terra e do Homem seguida da Descripção de Alguns Dolmins ou Antas de Portugal, que publicou no ano seguinte. Aí, o autor apresenta uma extensa exposição sobre as mais recentes perspectivas geológicas e biológicas, referindo-se detalhadamente à evolução das sociedades humanas. Este texto resulta tanto mais notável quanto desconhecemos em absoluto a existência de um particular acompanhamento por parte da investigação nacional dos progressos da Geologia e Biologia britânicas., embora se saiba que o jovem biólogo açoreano Francisco de Arruda Furtado, colaborador do Museu de Zoologia da Escola Politécnica, precocemente falecido, trocou correspondência com Charles Darwin.

A Pereira da Costa se devem também os primeiros estudos sobre os concheiros de Muge, particularmente sobre os restos antropológicos ali encontrados, publicados em 1865 na obra Da Existência do Homem em Epochas Remotas no Valle do Tejo. Notícia sobre os Esqueletos Humanos Descobertos no Cabeço Da Arruda. Aqui, o autor demonstra um notório conhecimento da obra de Lyell e dos princípios da nova Geologia.

Mas é nos trabalhos de Nery Delgado que a utilização de um método estratigráfico de escavação e registo das realidades observadas resulta mais notório, designadamente na sua obra Da Existência do Homem no nosso Solo em Tempos Mui Remotos Provado pelo Estudo das Cavernas. Notícia Acerca das Grutas de Cesareda, publicada em 1867, onde se regista a existência de duas utilizações distintas nas grutas do planalto dos arredores de Lisboa, uma mais recente, atribuída à «Época da Pedra Polida» e outra mais antiga, com um largo período de abandono de permeio.

Carlos Ribeiro tornou-se particularmente notado pelos seus estudos relacionados como «Homem Terciário» a que se referiu pela primeira vez numa comunicação à Academia das Ciências em 1871, tendo apresentado no VI Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas, que se realizou no ano seguinte em Bruxelas, uma exposição sobre o mesmo tema em âmbito internacional. Refira-se que o tema do ‘Homem Terciário», que acompanhou toda a obra do eminente geólogo, era um tema particularmente em foco na época, havendo investigadores belgas, franceses, italianos e mesmo um norte-americano que pretendiam ter recolhido, nos respectivos países, provas da sua existência. Ao director da Comissão Geológica deve-se, ainda, a publicação, em 1878, do primeiro estudo sobre um povoado pré-histórico do nosso território: a Noticia de Algumas Estações e Monumentos Prehistoricos.

A primeira obra de síntese sobre a Pré-história portuguesa deveu-se, contudo, a um médico de Coimbra, Augusto Filipe Simões que, em 1878, deu à estampa a Introdução à Arqueologia da Peninsula Iberica. Parte Primeira -- Antiguidades Prehistoricas. Os principais aspectos que podemos reter deste primeiro ensaio de síntese são: em primeiro lugar, a consciência de que a investigação nestes domínios resultava, basicamente, de um conjunto de esforços individuais empreendidos por poucos indivíduos; em segundo lugar, o reconhecimento de uma importante lacuna no âmbito dos mais antigos vestígios da presença humana, somente preenchida pelos dados sobre o «Homem Terciário» coligidos por Carlos Ribeiro; finalmente, resulta notória a actualização dos investigadores portugueses, relativamente aos progressos da disciplina em outras regiões da Europa, designadamente a Inglaterra, França e Escandinávia, aliás bem patentes nos estudos dos investigadores anteriormente citados.

Tinham começado, entretanto, as escavações sistemáticas de Martins Sarmento na Citânia de Briteiros e no Castro do Sabroso e Estácio da Veiga, destacado pelo Governo, no Algarve e no Baixo Guadiana iniciava as suas recolhas e investigações, na sequência das grandes catástrofes naturais do ano de 1876, que tinham posto a descoberto inúmeros vestígios de ocupações humanas antigas.

O corolário desta época fundadora da Arqueologia Pré-histórica portuguesa foi a realização em Lisboa, em 1880, do IX Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas, sob o alto patrocínio da Coroa. O evento, que conheceu ampla divulgação na imprensa da época, constituiu a consagração dos investigadores portugueses, com Carlos Ribeiro a apresentar novos dados, uma vez mais pouco conclusivos, sobre o o «Homem Terciário», as suas escavações em Muge e nas grutas do Poço Velho em Cascais; Pereira da Costa a tratar das questões relativas à colecção antropológica do Museu da Comissão Geológica; Nery Delgado, dando uma vez mais provas do seu excelente método estratigráfico, apresentado os dados das suas escavações na Gruta da Furninha de Peniche. Não faltaram também trabalhos dos investigadores do Norte, Martins Sarmento, José Caldas e Pereira Cabral, o contributo de Possidónio da Silva, sobre a Idade do Bronze, e o de Estácio da Veiga que apresentou o seu projecto da Carta Arqueológica do Algarve.

Deve sublinhar-se, porém, que, se o panorama do fim do século parecia de grande euforia e de crescente multiplicação de investigadores locais, aliás, claramente expresso na proliferação de estudiosos e museus locais, continuava sem existir um órgão nacional de coordenação destas actividades e não existiam também movimentos associativos, à semelhança do que aconteceu em outros países da Europa, que funcionassem como centros regionais de encontro e debate de ideias ou, se preferirmos, núcleos formadores para os novos entusiastas.

Consciente dos perigos que tais lacunas acarretavam, Estácio da Veiga, em dois textos estruturalmente idênticos, publicados em 1880 e 1891, alerta contra os perigos de uma excessiva centralização desta área da cultura, preconizando um extenso programa de regionalização, com divisões coordenadoras da actividade arqueológica, com museus, bibliotecas e programas editoriais próprios, com a finalidade de estabelecer as respectivas Cartas Arqueológicas regionais e zelar pelos patrimónios locais. A nível geral propõe, ainda, a introdução do ensino da Arqueologïa no âmbito da Instrução Pública. Tais advertências e projectos, porém, não encontraram eco...

As lacunas e deficiências da Arqueologia Pré-histórica portuguesa foram sendo supridas pelo esforço meritório de diversos investigadores:no Norte, o grupo da revista Portvgalia, criado sob os auspícios de Martins Sarmento; em Trás-os-Montes, Francisco Manuel Alves, abade de Baçal; em Coimbra, o Instituto, que teve em Virgílio Correia um dos seus vultos mais notáveis; na Figueira da Foz, Santos Rocha, o único a tentar criar na sua região um organismo análogo aos preconizados por Estácio da Veiga; em Castelo Branco, Tavares Proença Júnior; em Setúbal, Marques da Costa e em Lisboa (e em todo o País) José Leite de Vasconcellos, sem dúvida a maior figura da Arqueologia portuguesa, para só citar os mais notórios.

Com o seu labor individual, estes e outros investigadores foram suprindo as lacunas, cada vez mais gritantes, da nossa investigação. Contudo, à medida que a Arqueologia se foi desenvolvendo, especializando e refinando os seus métodos de trabalho, o amadorismo bem intencionado foi-se revelando cada vez mais insuficiente para acorrer às múltiplas solicitações impostas pelo desenvolvimento social e tecnológico. O fosso entre Portugal e os restantes países da Europa foi-se acentuando e, infelizmente, rapidamente se atingiu uma situação de inconcebível distância. Para mal do nosso património, para mal de todos nós...

 

Fonte:

Celso Fabião, "A Arqueologia pré-historica", História de Portugal, Vol.I, org. João Medina, Barcelona, Ediclube, 1994, pp. 108-115.