"A Europa moderna tem raízes na Idade Média"

HANS SCHLAMP E RAINER TAUB
[Lisboa, DN, 22 de Outubro de 2001


O título original de "Baudolino" era "Número Zero". Pensava noutro livro?

Sim, um romance sobre a redacção de um jornal, onde os jornalistas procuravam notícias sensacionalistas. Enquanto pensava qual seria a notícia sensacionalista na Idade Média, lembrei-me da lendária carta do Preste João.

Uma falsificação já cientificamente demonstrada.

Exactamente por isso. Esse documento falsificado pretendeu convencer as pessoas do século XII que no longínquo Oriente existia um reino cristão onde corria leite e mel. Como até agora ninguém identificou o autor dessa notícia sensacionalista, resolvi criá-lo, chamar-lhe Baudolino, e forjar-lhe uma biografia aventureira. A carta histórica nasceu no tempo do imperador Frederico Barba Roxa, na aldeia de Alessandria no norte de Itália, onde eu também nasci. Depois, transformei Baudolino num filho adoptivo e conselheiro de Barba Roxa, e os dois tiveram uma tarefa utópica: Durante toda a vida teriam de procurar o lendário reino do Oriente.

Também se aplica a "Baudolino" o esquema literário do seu primeiro romance, "O Nome da Rosa", uma colagem de fontes originais da Idade Média?

Sim, mas com uma diferença: Baudolino é filho de gente de camponeses, não se entretém com citações intelectuais, como as dos frades que no Nome da Rosa formavam a elite do tempo. Mas um narrador nunca poderá criar personagens ao nível dos dramaturgos e dos satíricos. Quanto mais investigamos a história, menos situações imaginárias encontramos. Apliquei esta regra a Baudolino, do mesmo modo que respeitei rigorosamente o que as fontes históricas relatam de Barba Roxa e de sua mulher Beatriz.

Segundo as teorias literárias clássicas, o escritor deverá ser útil aos leitores e divertir-se. Para si, destes dois objectivos, qual foi o mais importante?

Divertir-me a mim mesmo. Em latim, "delectari" - o infinito passivo.

Então o seu romance é uma viagem ao próprio ego?

Claro. Mas também pretendi ensinar. Mesmo ao escrever um livro de ficção, torna-se muito difícil a um professor universitário renunciar a ensinar.

Até que medida tem presente a actualidade ao escrever sobre mitos e fábulas medievais?

Não há autores históricos que não descrevam também a actualidade. Quem escrever, hoje, uma biografia de Napoleão, colocará questões diferentes das equacionadas num livro de há cem anos. Cada época tem sempre um olhar diferente em relação ao passado. Por isso é que as raízes da moderna Europa estão na Idade Média. Poderemos considerar o reino de Carlos Magno como uma forma embrionária da União Europeia. De um universo de várias línguas, nasceu a ideia de uma universalidade europeia, e a única diferença está no facto de, antigamente, a língua universal ser o latim e hoje, o inglês. Acho que os meus leitores vão descobrir mais paralelismos históricos entre o presente e o passado que eu próprio.

Baudolino procura sem desistir a utopia do reino do Oriente. Mas na Europa, pelo menos desde o fim do comunismo, o pensamento utópico é tido como anacrónico e obsoleto. A humanidade não pode viver sem utopias?

Estou inteiramente convencido disso. Logo que as grandes utopias históricas ruíram, começou o movimento contra a globalização. Isto é, um desejo de uma forma de vida totalmente nova. A actual oposição ecológica contra a globalização tem muita utopia. Mas não tenhamos dúvidas: a utopia só é boa enquanto não se transformar em realidade. Logo que Lenine tentou realizar a utopia de Marx, transformou-a num horror. A utopia não é um objectivo em sim mesmo, mas um horizonte em movimento.

Simpatiza com o movimento de protesto contra a globalização?

Concordo com os objectivos, repudio os métodos que utiliza.

Antes das últimas eleições italianas, escreveu um artigo em que apelava a um "referendo moral" contra Berlusconi. Mas ele agora é primeiro-ministro. Que fazer?

Perdemos. Lutei contra Berlusconi e outros por praticarem uma política que só beneficia os ricos. Tentei, em vão, recusar a oferta fiscal que ele ofereceu, a mim e a outros.

No mesmo artigo, atacou a "ideologia do espectáculo" que reina a nível mundial.

Isso começou em 1960, com a eleição de John F. Kennedy para presidente dos EUA. Ganha as eleições o candidato mais telegénico. E desde os anos 60, propagou-se um novo modelo de democracia nascido nos EUA: dois partidos, controlados pelas mesmas forças económicas, concorrem perante eleitores que decidem segundo a imagem mediática que eles transmitem. O conceito de democracia representativa está ameaçado de esvaziamento na era da globalização. Berlusconi foi só uma espécie de vanguarda.

Acredita que a democracia dos meios de comunicação social só fortalece as grandes empresas?

Veja os EUA. Se o presidente eleito não tivesse sido Bush, o resultado político seria o mesmo: as grandes empresas teriam rejeitado o protocolo de Quioto, e o presidente seria controlado pelos grandes grupos económicos que financiaram a campanha eleitoral. Além disso, só 50 por cento dos eleitores vão às urnas.

Isso significa que o presidente dos EUA só foi eleito por 25 por cento dos eleitores...

...o que equivale à situação que se vivia no Império romano: uma minoria de famílias ricas e de generais escolhiam o governo. Não pretendo ser profeta, mas tudo indica que o movimento democrático avança nessa direcção. Talvez seja possível, na era da Internet, descobrir uma nova forma da democracia representativa para substituir a que está em vigor há 300 anos: uma espécie de equilíbrio entre Estado e protesto, centro do poder e poder local. Mas será necessária muita fantasia.

Exclusivo adaptado

DN-"Der Spiegel"

Tradução de José Sousa Monteiro