Conversas à Volta dos Conventos
Por ANTÓNIO MARUJO
Lisboa, PÚBLICO, 29 de Outubro de 2000
O que fazer com um convento
em ruínas? Durante quatro dias, em Montemor-o-Novo, historiadores, frades,
arquitectos debateram os espaços, a espiritualidade, as sociabilidades e as
rupturas que aqueles lugares simbolizam. O PÚBLICO acompanhou os debates,
visitou alguns lugares conventuais e foi fotografar as monjas beneditinas do
Mosteiro de Santa Maria do Mar, em Sassoeiros. Para olhar a relação das
religiosas com o espaço que elegeram para uma vida inteira de relação com o
sagrado.
Portaria
Por aqui se entra. Hoje, a descrição
diz-se, muitas vezes, com liturgias de defuntos: património delapidado,
abandono, degradação, ruínas de muros e arbustos.
O que fazer com este convento? Já
foi armazém municipal e depósito de lixo. Agora, é estaleiro de criação
artística: escultura, olaria, pintura. Foi preciso empurrar lixo para os lados,
conquistar espaço, explica a escultora Virgínia Fróis.
Convento de São Francisco,
Montemor-o-Novo. As Oficinas do Convento, uma associação da cidade alentejana,
instalaram-se no que resta do antigo lugar religioso. E quer reflectir os
critérios de um eventual restauro. Para isso, durante quatro dias, de
quarta-feira até ontem, chamou frades, historiadores, arquitectos, monjas, e
organizou as "Conversas à volta dos conventos".
Tudo começou no deserto e nos
eremitérios. Bento de Núrsia congregou dezenas em mosteiros. Cister e Cluny
engrandeceram o espírito e a dimensão. O poder e a opulência estavam à
espreita. No século XIII, com os mendicantes - franciscanos e dominicanos -
nasce um novo conceito: conventum, as pessoas que se reunem para a pregação do
evangelho. A pobreza, a itinerância e as cidades ganham nova importância para o
cristianismo.
As ordens religiosas ajudam a dar
um centro às cidades, a construí-las e a metabolizá-las. Porto e Coimbra cresceram
com os franciscanos. Porque não - pergunta Francisco Pato de Macedo - criar em
Coimbra um itinerário mendicante que inclua Santa Clara-a-Velha, São Francisco,
Santa Clara-a-Nova (acabando com o quartel)? Em Lisboa, com Filipe II, vários
conventos no Caminho do Oriente e em Belém ajudam a tecer a cidade.
"É legítimo aludir a um
habitat beneditino ou a um habitat mendicante", nota Joaquim Cerqueira
Gonçalves, franciscano e professor de Filosofia. Mas não é apenas "o
estilo da pobreza o factor privilegiado para distinguir mosteiros e conventos;
também é ele que está no ponto de partida das metamorfoses, por vezes
dramáticas, da Ordem Franciscana."
Por aqui se entra. Aqui se
prescruta o espírito dos que estão dentro, aqui está a roda de ligação ao mundo.
Aqui, também, se toca o sino para convocar energias, hoje de novo necessárias.
Tempos houve, lugares ainda há, em que as grades separam, no locutório,
quem está e quem procura. "A comunicação é um problema", verifica
José Augusto Mourão, dominicano e professor em Ciências da Comunicação.
Também assim num convento. A comunidade, invisível por essência, é uma
"disseminação de heterogeneidades e singularidades". Nunca ninguém se
sentiria só, se não sentisse a falta. Mas é preciso "desconstruir a ideia
de que, numa comunidade, a comunicação é transparente" - "as línguas
são irreconciliáveis, como tudo o que é singular". Nem é necessário
"aderir a duas ideologias da comunicação: a pesquisa ecuménica do
entendimento a qualquer preço; e o privilégio da polémica." É que
"ambas arrostam pesadas perdas semânticas".
Com as grades, nem as mãos se podem tocar. Importante é lembrar, então, com
Cerqueira Gonçalves, que são os outros "o verdadeiro santuário onde Deus
está presente no mundo"
Em Montemor, abundam as diferenças: o claustro de São Francisco como lugar
de criatividade entre ruínas, o de Nossa Senhora da Saudação necessitado de
intervenção, o de São João de Deus recuperado para biblioteca e galeria
municipais. Um bom exemplo, diz a historiadora Ana Maria Borges, de
"reutilização feliz de edifício conventual".
No claustro, cruza-se a vida conventual e monacal. Lugar de trabalho,
meditação, folguedos, procissões, leituras, orações. Lugar de árvores, flores,
cisternas. A água sempre presente, um "símbolo da vida espiritual",
recorda a arquitecta Ana Lúcia Barbosa, que tem elaborado propostas para
recuperar o Convento de Nossa Senhora da Saudação. O claustro, lugar de
cemitério, também, onde a vida convive e se reconcilia com a morte.
Nasce aqui, recorda Bento Domingues, dominicano, a moderna "intuição
da democracia", o conceito um homem, um voto. Decisões, eleições, uma
comunidade sentada em volta. Fazer comunidade é ainda mais difícil quando as
freiras, exiladas, provêm de diferentes institutos - caso do Convento das
Flamengas, ao Calvário (Lisboa), construído por Filipe II para religiosas
católicas fugidas das guerras nos Países Baixos.
Sem uma determinante teológica, diz Cerqueira Gonçalves, "não se
compreenderia a estruturação comunitária da Igreja, a prática comunitária dos
três votos". Tão pouco se entenderia o mundo, em termos cristãos. Uma
visão "que não se consigna apenas na plasticidade, em forma ternária, da
matéria, quer da arquitectura quer da escultura quer de outras expressões
artísticas, mas que se revela, de modo emblemático, na vivência de relação das
pessoas".
Nas Flamengas, os painéis de azulejos de metro e meio de altura eram para
ser olhados de joelhos. No tecto (degradado), disposto como uma abóboda
celeste, 15 telas representam os mistérios do rosário. O apelo ao céu, por
oposição ao terreno e humano dos azulejos, define João Miguel Simões. (Num dos
altares, alguém fez uma limpeza com lixívia e estragou; em outro, há telas
recuperadas, mas colocadas em sítio húmido.)
A igreja, assembleia dos crentes reunidos para ouvir a palavra de Deus,
concretizou-se em edifícios. Na de São Francisco, em Montemor, ainda hoje se
percebe a excelente acústica. Ouvir bem era essencial. Que fazer, agora? Um
auditório para música, dança, teatro?
Sugestão da arquitecta paisagista Aurora Carapinha: coloque-se, em fundo,
música de Hildegard von Bingen, a mística do século XII. Ao coro vêm rezar,
cantando, frades e freiras, monges e monjas. Laudes, matinas, vésperas, completas,
a liturgia das horas sucede-se, dando sabor e sentido ao tempo.
Vozes e cantos despojados, em contraste com o envolvente. Pobre, em sentido
cristão, é quem vê a criação como dom de Deus, que será tanto mais sentido
"quanto mais esplendorosa" for a realidade, diz Cerqueira Gonçalves.
Não admira que um beneditino procure "refulgentes alfaias" para,
nelas, "contemplar a resplendência de Deus".
A isso, acrescenta, devemos espantosas "manifestações artísticas, pese
embora a crítica de sectores cristãos mais ascéticos", para quem elas são
uma "flagrante contradição com o espírito evangélico de pobreza".
"Ao contrário do beneditino, o franciscano nem com a riqueza das alfaias
litúrgicas, ainda que postas ao serviço de Deus, condescende."
A clausura, diz uma monja, "é para definir um espaço onde se pode
viver livremente, não para separar pessoas". Mas a vida religiosa, que
surgiu como contestação, recorda a irmã Maria, não foi mexida depois do
Concílio. Os valores de vida, as mundividências que lhe deram origem, continuam
a ser "uma interpelação fundamental", acrescenta Cerqueira Gonçalves.
Seria, por isso, "uma afronta e desperdício cultural" reduzir o
habitat das comunidades religiosas "a mero valor de património turístico".
"A pregação não é um acontecimento de sabedoria humana, mas da graça,
tem que assumir todos os saberes humanos. Fra Angelico foi um grande pregador,
pintando", diz frei Bento Domingues.