Indianização do Sudeste Asiático

 

Indianização ou expansão cultural da Índia são expressões usadas por George Coedès que foi o primeiro a identificar o império Srivijaya em Sumatra nos finais da segunda década do século XX. As relações entre a Índia e a Índia Distante (Farther India) vêm da pré-história. Mas nos tempos históricos resultaram em estabelecimento de reinos indianos no sudeste asiático peninsular e insular. Curiosamente, as mais antigas inscrições sânscritas do sudeste asiático são quase-contemporâneas das inscrições similares na Índia. Era o mesmo processo de “sanscritização” em curso no subcontinente e no ultramar.   No sudeste asiático resultou em culturas “Indo-Khmer”, “Indo-Javanesa”, etc. Antes dos sacerdotes brâmanes e escritores em sânscrito chegaram para aquelas paragens os navegadores-mercadores. A chegada dos indianos não se compara com as Descobertas dos europeus. Aqui não eram descobridores estranhos. Era a mesma Ásia monsónica e foi um influxo lento e multisecular. Os indianos estabeleceram os seus costumes e as suas leis, a sua escrita e a sua literatura, quase “colonizaram”, mas sem dependências políticas da Índia-mãe. Embora, quando Java ameaçou o reino Srivijaya nos finais do séc. X com uma invasão, o rei Srivijaya utilizou as suas alianças com China e Cholas de Tanjore na Índia meridional para resistir aos javaneses e manter a sua supremacia sobre o estreito de Singapore. Mas em 1025 Rajendrachola I irritou-se com as prepotências dos Srivijaya e enviou uma expedição que os levou a aliarem-se mais com a China e a reconciliarem-se com os javaneses.

 

Já antes do Arthasastra, os contos budistas de Jataka fazem menção dos navegadores e Budha é referido como Dipankara (acalmador das águas), e no épico Ramayana encontram-se referências a Java e Sumatra. Niddesa é o texto canónico budista mais antigo da era cristã em Pali, e contem referências às localidades com nomes indianizados e que tem sido identificadas no sudeste asiático. As mais antigas referências e esculturas budistas em Birmânia, Caboja e Vietnam datam de séc. IV da era cristã.  O mesmo se aplica à peninsula malaia. Encontraram-se inscrições sânscritas do séc. V em Kutei (Borneo=Kalimantan) e em Java Ocidental. Não existem inscrições anteriores, embora a Geografia do Ptolomeu (Séc. II da era cristã) já apresentava nomes sânscritos de localidades situadas na Índia trans-gangética. É possível que já houvesse contactos indianos durante os primeiros séculos da era cristã.

 

O que teria levado os indianos ao sudeste asiático apesar do tabú hindu de kala-pani (águas escuras) contra  viagens marítimas. Há quem diga que a conquista violenta de Kalinga (Klings em Malaca e Camboja) por Ashôka no séc. III antes da era cristã teria provocado uma onda de emigração.  Mas porque foi necessário esperar mais três séculos para sentir o fluxo? É também possível que os Kushanas exerceram uma pressão sobre a população indiana  no 1º século da era cristã. É uma outra hipótese. O que parece fazer mais sentido é uma explicação de natureza comercial. A rota de seda tinha criado uma rede de comércio que englobava Índia. Deu também a conhecer aos indianos as terras que produziam outras riquezas, particularmente o ouro. Índia obtinha o seu ouro de Sibéria por meio de caravanas de Báctria, mas as movimentações na Asia Central durante os dois séculos antes da era cristã dificultaram o acesso a esse ouro.  Índia começou a importar o ouro amoedado de Roma durante o 1º século da era cristã, mas o imperador Vespasiano (69-79) decidiu tomar medidas para controlar essa exportação de ouro. É a procura do ouro de Chersoneso (Suvanabhumi=terra de ouro) que explica melhor o interesse indiano pelo sudeste asiático.  Outros dois factores que favoreceram a procura eram: O desenvolvimento náutico da Índia e China nessa altura, e o aparecimento do Budismo que expurgou as diferenças das castas e os tabus ligados com a poluição.

 

O processo da indianização poderá ter sido atractivo para os grupos sociais locais no sudeste asiático que poderiam beneficiar dos conhecimentos e técnicas indianas de cultivo de arroz / irrigação e de calendário, bem como das doutrinas e rituais mágicos que lhe permitiam criar e legitimar novas estruturas de poder e organização social. O processo social deverá ter movido no sentido de adopção de alguns brâmanes pela sociedade local. Mas a indianização terá procedido também através dos naturais do sudeste-asiático que visitavam os portos da Índia e regressavam com novas ideias, tal como aconteceu com a islamização e está agora a acontecer com a ocidentalização dos costumes e instituições ocidentais no sudeste asiático.

 

Os contactos entre a Índia e o sudeste asiático não se fizeram somente por mar. Embora as viagens terrestres tinham as suas dificuldades, nem os desertos da Ásia Central ou os cumes nevados de Pamir impediram pessoas de os ultrapassarem para procurar o que eles queriam. Os piratas do mar não eram menos perigosos, e havia as políticas tirânicas  de alguns estados como Palembang ( em Sumatra), para além das conhecidas dificuldades de navegação. As descobertas arqueológicas revelam que todas as possíveis rotas terrestres foram utilizadas. Mas para as navegações utilizava-se o porto Tamralipti na costa leste da India, e os de Broach (Barygaza), Surat (Sopara) e Cranganore (Muziris)  na costa oeste. Quaisquer que sejam os pontos de ligação na India, a indianização partiu de toda a Índia, embora o sul tenha tido maior participação. Não se deve exagerar o papel dos Pallavas e dos Cholas, como foi feito até agora. Ainda Ceilão teve a sua influência, particularmente na Tailândia. A influência cingalêsa deixou marcas na arte de Sukhotai.

 

Os primeiros centros de difusão da cultura indiana situavam-se na península malaia onde se estabeleceram os primeiros reinos indianos.  Foi daqui o brâmane Kaundinya, o indianizador de Funan. O grande centro de difusão do Budismo era  Palembang no sul de  Sumatra. Os chineses iam lá fazer os seus estudos do budismo. Mas no século XVII Aceh e Fansur eram centros de estudos de islamismo muito apreciados e admirados pelos académicos do Islão. Académicos muçulmanos da Índia já tinham adquirido muito fama e admiração dos seus correligionários. Shaik ‘Ali Muttaqi era um deles. Ele e um outro discípulo dele eram admirados pelos Árabes e por muitos em Mecca e Medina em todos os ramos de teologia muçulmana, especialmente em Hadis. A Índia foi também berço de muitas ordens (silsilas) dos sufis com seus pir ou Khwaja.  A ordem Shattari foi estabelecida na península malaia por Safi-ud-Din Ahmad, melhor conhecido como Qushashi, que tinha sido inciado na ordem na Índia, antes de ele ir dirigir escolas em  Mecca e Medina. Um discípulo seu, Abdur Rauf de Singkel, nascido em Aceh em 1615, foi para Mecca em 1645, e estudou sob a direcção de Qushashi durante 19 anos antes de voltar a Aceh onde produziu obras importantes de sufismo em Árabe e Malaio.  No século XVII a ordem Naqshbandi dos Turcomanos de Asia Central tornou-se um canal importante para difusão de obras sufis, particularmente dos da Índia, em todo o mundo árabe e turco.  Uma figura importante dessa ordem era o Shaik Tajud-Din. Ele iniciou vários adeptos do sufismo em Java e Sumatra, e esses discipulos foram espalhando kanqhas ou escolas por todo o arquipélago. Vários desses discípulos tinham sido homens de comércio antes de entrarem na ordem. Os sufis preferiam os apoios independentes dos comerciantes em vez de ficarem dependentes exclusivamente dos governantes que os ajudavam em troca de apoio político e os consideravam com lashkar i-du’a ou tropas religiosas do Estado.

 

Através do sufismo já havia passado muita influência hindu ao Islão. Traduções de sânscrito para o arábico já se tinham começado a fazer desde o final do séc. VIII. Vários tratados de filosofia, astronomia e matemática  foram traduzidos na corte Abbasid, contribuindo dessa forma para a transferência do sistema decimal  e numerais para o mundo ocidental. Os conceitos teístas upanishádicos , tais como Brahmaasmi (Eu sou Brahma) e Tat tvam asi (Tu és aquilo) entraram no sufismo no século IX, Também a prática ioguica de controlo de respiração (pranayama) entrou na meditação dos  sufis iranianos e de Ghazni (Afeganistão) no século X.  A Índia deixou também marca importante na literatura persa, particularmente através da obra de Amir Kusrau (1253-1325) que era da ordem dos Chistis. A sua contribuição literária tomou a forma de ghazals, ou cantos religiosos que atraiam massas populares de todas as religiões e seitas. O próprio movimento reformador dos mahdis teve a sua origem na Índia com o Sayiyid Mohamet de Jaunpur (1443-1505). Foi a partir de Guzerate na Índia e mais tarde do resto da Índia, especialmente Deli, Agra e Bengala, que o Islão passou para o sudeste asiático da mesma forma como séculos antes tinha sido com o Hinduísmo e com o Budismo.

 

Qual foi o impacto da indianização sobre as populações indígenas? Não muito superficial, mas culturas locais  permaneceram.  O hinduismo era uma cultura das elites.  Era um culto da corte, e não se promovia muito entre as massas. Foi por essa razão que as massas acabaram por preferir o Budismo cingalês e o Islão quando o hinduismo foi desafiado na Índia pelas invasões muçulmanas e pelos móngois. Todavia o impacto do hinduísmo não foi nada insignificante: ficaram os alfabetos, bastante vocabulário, calendário lunar-solar, mitos cosmogónicos, épico Ramayana e os Puranas,  os modelos administrativos e jurídicos, e uma hierarquia social que reflecte as castas. Curiosamente, a China que está tão perto influenciou muito menos, excepto nos deltas de Tongking e de Vietnam. Isso explica-se pelos métodos de colonização. Os chineses fizeram-no por conquista e anexação, os indianos por infiltração e penetração pacífica. Os indianos não destruíram nada do que eles encontraram para imporem a superioridade das suas contribuições culturais que os naturais acharam úteis.

 

Os primeiros reinos indianos do sudeste asiático: Aparecem a partir do séc. III da nossa era. O reino de Funan ( Séc. I da nossa era) É conhecido pelas fontes chinesas. Deriva de “phnom” ou montanha. É tradução do sânscrito parvatbhupala ou sailaraja, rei da montanha. Ficava no Vietnam do Sul e Camboja, e estendia a sua influência até à península malaia. O seu fundador foi Kaundinya que foi da India ou da península malaia, onde se encontravam já vários pequenos estados indianizados, tais como Langasuka, Tambralinga, e Takkola. Outro reino ao sul de Funan era o reino Champa dos Chams. Os reis aqui consideravam-se descendentes da dinastia Bhargava do Mahabharata.  Praticavam o culto de Siva-Uma e aqui se guarda o mais antigo linga do sudeste asiático. O nome de Camboja é derivado de Kambu Swayambhuva que segundo a tradição cambojana se casou com a ninfa Mera.

 

Tanto na Indonésia como em vários reinos peninsulares prevaleceu o sistema matriarcal de sucessão. Provavelmente passou dos Nayars e das famílias Nambutris do sul da India. Surgem a partir do séc. VI os reinos Srivijaya em Palembang, e Sailendra na Java central. Eram budistas mahyana, com manifestações dos bodisatvas. Mas tanto em Camboja como na Indonésia o Hinduismo e o Budismo tântrico  conviviam em sincretismo. No século X juntaram-se os reinos indianos do centro e leste de Java com a designação de Matarão. Os monumentos de Prambanan, Borobudur, Plaosan e Sajivan testemunham essa situação. Camboja prestou vassalagem aos Sailendras, até que a dinastia Angkor  dos Jayavarmans nos séc. IX-XI  libertou-se dessa vassalagem criando novos rituais brâmanicos e o culto de Devaraja (Deus-Rei) para legitimar essa libertação e impor-se como chakravartin (senhor do universo). Multiplicaram-se chandis Javaneses ou templos Khmer que serviam para culto mas também como túmulos dos reis, simbolizando a ligação régia entre a terra e os espíritos. Enormes figuras do Deus-rei como em Angkor, representavam o poder e presença do rei sobre o território. O culto Devaraja continua vivo em Tailândia, embora o Budismo contribuiu para dar uma nova leitura ao karma do rei que podia ser deposto por um bodisatva com maior força de auto-libertação, declarando-se chakravartin. A teoria política de mandala com um centro de poder flutuante (política galáctica) é também da influência budista, mais do que de origem no Arthasastra de Kautilya. Em Bali apareceu o Budismo a partir do séc. VIII. As inscrições revelam certa autonomia da sociedade indo-balinesa , que usava um dialecto próprio e praticavam budismo e shavismo ao mesmo tempo. Já no século XI entrou a influência do hinduismo javanês em Bali. O culto de Shiva-Budha, veio de Bengala, passando por Nepal e Tibete. Era um culto de redenção das almas e foi muito bem aceite na Indonésia onde são venerados os espíritos dos antepassados.

 

As invasões mongóis de Gengis Khan no século XIII e o declínio dos reinos indianos no sudeste asiático na primeira metade do século XIV, começando com o reino Sukhotai em Thai (1350), e seguindo em Camboja (1430) , Birmânia, Champa (1471), e Java. Em Java desapareceu o reino  de Singhasari como consequência da invasão mongol de 1293, mas surgiu o reino Majapahit devido a um truque diplomático do sucessor legítimo da dinastia anterior. Uma das figuras importantes na regência de Majapahit era o Gajah Mada, que como pati e primeiro ministro tentou estabelecer a supremacia sobre o arquipélago.  Foi ele o responsável pela Javanização de Bali. Mas apesar da grande força dos Majapahit surge no continente o outro polo de poder em Ayuttaya. Os dois polos rivais encontravam-se na península malaia e foi na altura em que o poder chinês estava outra vez em declínio. Mas a verdadeira causa do declínio dos Majapahit foi o surgimento de Malaca como empório comercial a partir de 1403 e como centro da expansão do Islão. Conflitos internos de sucessão também não eram favoráveis. E também o imperador Chines Yung Lo decidiu suplantar a suzerania Javanesa no arquipélago e na península através das expedições do eunuco Cheng-Ho.

 

 

Islamização do Sudeste Asiático

 

 

Muito antes do Profeta Mohamet, os árabes viajavam entre o Mar Roxo e a China. O Islão deu um novo ímpeto a esse intercâmbio marítimo. No século VIII já havia muito árabes na China meridional para assaltar Cantão em 758. No século IX existiam já várias comunidades muçulmanas na rota da China. Há referências a comunidades muçulmanas em Champa no século XI, e alguns contactos dos comerciantes muçulmanos de Iemen meridional com o reino Kadiri de Java Oriental nos séculos XII-XIII. Mas não se conhece muita presença árabe no arquipélago indonésio, já que Java e Moluccas ficavam longe da rota da China. Mas a pouca presença já deu para palavras árabes entrarem na antiga língua javanesa e no poema épico Bharat Yudda, escrito durante o reinado de Jayabhaya (1137-1157).

 

Em 1292 os Polos visitaram Samatra no seu regresso da China. Estiveram no porto de “Ferlec”, identificado como Perlak. Segundo nos diz Marco, havia aí tantos mercadores muçulmanos, que já  tinham convertido os naturais da região. Poderia ter sido o começo da islamização na região. Na vizinhança de Perlak, ele ficou parado cinco meses no sultanato de Samudra, onde Islão não se tinha  ainda  instalado.  Deve ter acontecido logo mais tarde, porque a inscrição tumular  do sultão Malik al Saleh tem a data de 1297. A pedra veio de Cambaia em Guzerate,  Índia.

 

O Islão chegou a Guzerate com as campanhas militares de Mohamet de Ghor no século anterior. Conquistaram Cambaia em 1298. Enquanto a maioria da população continuava  Hindu, a corte e a classe dominante eram muçulmanas. Árabes e Persas já se tinham estabelecido em Cambaia nos séculos anteriores e mantinham bases comerciais desde o século IX.  A sua ligação comercial com a Indonésia era também dessa data. O Islão passou daqui para a Indonésia.

 

Conta-nos Ibn Batuta, que passou duas vezes por Samudra durante a sua viagem para a China em 1345-6 que o sultão professava o rito Shafi’ i . É o que os indonésios professam até hoje. Também segundo ele o Islão não se tinha enraizado em Samatra. Pasai foi a base de difusão do Islão no sudeste asiático. Segundo Ibn Batuta, a península malaia nessa altura não tinha ainda um governante muçulmano, e continuava a ser uma dependência de Majpahit. Islão não teria lá chegado antes do século XV. Foi o surgimento de Malaca que deu grande ímpeto à islamização da península. Segundo Lendas da Índia de Gaspar Correia, quando os portugueses chegaram a Malaca, ela já tinha sete séculos de existência. Mas o que aparece no Polo como Malayur e nos relatos chineses como  Ma-li-yu-eil não era Malaca, mas Malayu – ou, Jambi em Sumatra. Segundo uma tradição de Sumatra, Malaca foi fundada por Paramesvara, principe Sailendar casado com  uma princesa Majpahit de Palembang. Foi quando houve uma guerra de secessão de Virabumi de Java Oriental e o rei Vikaramavardhana de Majpahit. O principe refugiou-se em Singapura, matou o seu hóspede e tomou conta da região em 1401. Foi atacado e expulso pelo rei de Pahang / Patane, vassalo de Siam. Foi-se então refugiar em Malaca, que era uma pequena aldeia de piratas e pescadores. Os relatos de Tomé Pires que esteve aí entre 1512-15 e João de Barros (Década II) colocam a fundação de Malaca 250 anos antes da chegada dos Portugueses. Paramesvara conseguiu transformar Malaca num estabelecimento importante, forçando os mercadores de Samudra e Singapura a entrarem no seu porto. Tanto Siam como Majpahit consideravam Malaca como sua dependência, mas somente Siam tinha condições para fazer respeitar a sua suzerânia. Mas quando um enviado chinês visitou Malaca em 1403, Parameswara aproveitou a ocasião para pedir o reconhecimento chinês e o apoio Ming  contra Siam. Os Mings estavam na altura a tentar impor a sua suzerânia sobre os estados do sudeste asiático, e uma armada chinesa acompanhava essa política. Era quando Cheng-ho começava as suas expedições navais. Em 1409  Cheng Ho visitou Malaca,  e em 1411 o rei de Malaca foi pessoalmente a Peking para cumprimentar o imperador. Paramesware mudou o seu nome para Megat Iskandar Shah quando se casou com a filha do sultão de Pasé, que era também um recém-convertido ao Islão. Megat  Iskandar Shah tinha 72 anos de idade quando se converteu ao Islão, e morreu em 1424. O seu filho assumiu o título dos antigos Srivijaya, nomeadamente Sri Maharaj. Os documentos chineses referem ao Si-La Ma-ha-la. O seu filho assumiu o título de Sri Paramesvara Deva Shah, provavelmente para pacificar os elementos não-mucçulmanos, mas apesar disso foi assassinado pelos muçulmanos Tamil, porque tinha um irmão Raja Kasim, cuja mãe era filha de uma rica família de mercadores daquela origem étnica. Raja Kasim chamou-se Muzaffar Shah e governou até 1459. Um cunado dele, Tun Perak notabilizou-se na história de Malaca com campanhas militares contra Siam, Pahang e Pasé. As relações com China foram reatadas. O império Malaca conseguiu estender-se a Kedah, Trengganu, Pahang, Johre, Jambi, Kampar, e várias outras localidades circumvizinhas, onde os sultões vassalos adoptaram Islão. Malaca tornou-se o centro comercial mais importante do sudeste asiático e da expansão do islão. Depois da morte do bendahara Tun Perak c. 1498 os seus sucessores continuaram a ser os verdadeiros governantes do Estado. Malaca tornou-se um bastião muçulmano contra Siam budista, e continuou a resistir efectivamente as tentativas de Siam para repor a sua suzerânia, e as coisas estavam assim quando Malaca foi conquistada pelos Portugueses.

 

Tomé Pires deixou-nos uma descrição da fama e importância de Malaca. Quando os outros portos tinham um shabandar, Malaca tinha quatro deles. O mais importante era aquele que controlava os barcos que vinham de Guzerate. O segundo tratava dos barcos que chegavam da costa do Coromandel, de Bengala, do reino Mon de Birmânia, e de Pasai no norte de Sumatra.  O terceiro tratava dos barcos de Palembang, Java, Moluccas, Banda, Borneo e Filipinas. Ao quarto estavam confiados os mercadores que vinham de China e dos portos de Indo-China.

 

Cambaia era importante como passagem para os mercadores que iam de Cairo, Mecca, Adém e dos portos do Golfo Pérsico para o Oriente. Cambaia fornecia os tecidos para o sudeste asiático e recebia em troca as especiarias, sândalo, porcelana, metais e seda. Tudo isso era adquirido em Malaca. Como diz Tomé Pires, Malaca não podia viver sem Cambaia, nem Cambaia sem Malaca.

 

O primeiro governante  muçulmano de Pahang era filho do sultão de Malaca. Quando ele morreu em 1475, a sua morte foi registada numa pedra tumular em árabe. As pedras eram levadas já gravadas pelos mercadores de Cambaia. Deixavam-se espaços abertos para gravar os nomes e datas. Os portugueses encontraram várias dessas pedras e aproveitaram delas para a construção da sua fortaleza.

 

Para além do factor comercial no processo de islamização, houve um contributo importante dos mullahs ou Wali, como são conhecidos os missionários muçulmanos em Java. Esse grupo elite conhecia bem as culturas pré-muçulmanas. A expansão rápida do Islão no século XV coincidiu com o declínio do reino Majapahit nos inícios do século XVI.  A grande parte dos Wali eram membros da família real ou oficiais dos Majapahit na região.  Também conhecidos por Patihs , alguns eram donos de barcos, outros oficiais dos portos. Outros ainda possuiam muitas terras.  Na segunda metade do século XVI, Surabaya evoluiu como um empório comercial em Java Oriental, e também desenvolveu relações comerciais com Malaca. O Islão entrou através desses contactos javaneses que a partir do litoral subverteram o interior hindu-budista dos Majaphaits. Vartema registou no seu relato publicado em 1510 em Roma que Malaca era um grande empório de especiarias e outras mercadorias, e que Giavai (Javaneses) eram  comerciantes importantes da cidade. Isso confirma as notícias de Tomé Pires e o papel dos Patis na expansão política-religiosa do Islão.

 

Segundo um poema Siwatrikalpa, redigido c. 1470, Majapahit ainda dominava os portos importantes de Java Oriental, mas já refere à entrada do Islão na região. Esses portos ligavam Majapahit com o sul da Índia através do porto de Malaca . No século XIV Majapahit mantinha uma relação estreita com os centros budistas no sul da Índia, particularmente em Kanchi. O rei muçulmano mais importante no controle da rota do sul do arquipélago indonésio era o rei de Demak. Essa rota estendia-se de Malaca para Brunei, Java Oriental (Gresik e Surabaya) atá Maluco (Malaka, Kalimantan Ocidental, Java Oriental, Sulawesi Meridional, e Maluku). Demak e sua aliança com outros sultanatos do Norte de Java derrotaram os Majapahits em 1514, mas quando chegaram os holandeses ainda continuava no interior muita presenças hindu-budista. O reino Sundanês de Pajajaran em Java Ocidental foi derrotado pelo sultão de Bantão nos meados do séc. XVI. Os portugueses já tinham estado no seu porto Sunda Kalapa em 1522 para estabelecer um aliança. O estado hindu-budista de Panajuram em Java Oriental continuou a existir até 1614. Foi o contacto importante com Malaca para comércio e expansão do Islão na região. Demak e Aceh juntaram-se várias vezes para expulsar os portugueses de Malaca. Fizeram de Banten um novo centro para trocas de comércio na região. Os portugueses criaram uma nova rota para obter as especiarias de Maluku  entrando em contacto com o Sultão de Brunei para cobrir a região de Sulawesi Setentrional até às Ilhas de Banda, Ternate e Tidore.

 

Segundo a teoria de van Leur e Shrieke, foram os Portugueses que deram o maior ímpeto à expansão rápida do Islão. Em Meca já se conheciam os planos portugueses para destruir o Islão no Oriente, e até que Malaca fosse transformado em centro cristão para essa campanha, os muçulmanos já se tinham antecipado e estiveram sempre mais adiante na corrida. Expulsos de Malaca, Islão fez de Aceh e Pasai centros de estudos islâmicos.  A teoria de van Leur e Shrike parece interessante, mas não está confirmada como a única explicação da conversão rápida da região ao Islão. Houve conversões ao Islão já quando os Portugueses entravam em declínio, e isto por exemplo em Celebes (Sulawesi) , que apesar de longos contactos com Islão não aceitou Islão até os finais do século XVI. Explica-se como um caso de resistência conservadora e lealdade da população à sua adat ou lei costumária.  E quando Macassar aceitou Islão em 1603, foi por razões de ganhar maiores prestígio e sucesso políticos. O caso de Bali foi excepcional. Resistiu a todos os ataques dos sultões de Matarão, e permaneceu hindu e salvou o património que se perdia em Java.

 

Foram as escolas sufis da Índia que se organizaram em corporações mercantis em Samatra e Java, e influenciaram muito as sociedades da região. São conhecidos dois místicos de Samatra, Hamzah de Barus, e Shams-al-din de Pasai que disseminaram as suas doutrinas por todo o mundo malaio. O sufismo teve grande apelo no meio de tendências animistas e panteistas da região. Nao foi bem uma conversão que teve lugar, mas uma islamização dos costumes locais que nem sempre estão de acordo com a ortodoxia muçulmana. Os académicos e os  santos do  Islão deu grande apoio político aos governantes muçulmanos, criando um sentido de comunidade para resistir os avanços dos Portugueses e dos Holandeses. Aceh e Bantão tornaram-se centro de promoção de hajj para a Meca, de literatura islâmica e de propaganda anti-cristã. Académicos indianos, persas, árabes, malaios e javaneses  residiam nesses centros. Era através de Aceh que passava muita influência dos Mongóis da Índia para as cortes de Malaia e outras do arquipélago. Foi assim que a arquitectura, vestes e títulos honoríficos da influência mongol  entraram nessa região.

 

 

 

Bibliografia

 

George Coedès, The Indianizes States of Southeast Asia, Honolulu, East-West Centre, 1968. (trad. do original Les États hindouisés d’Indochine et d’Indonésie)

A.L.Basham, (Ed.) A Cultural History of India, Delhi, Oxford India paperbacks, 1998.

D.G.E. Hall, A History of South-East Asia, 4ª edição, Londo, Maacmillan, 1981.

 

Anexo

 

Que Islão Poderá Salvar a Indonésia?
Por FRANCISCA GORJÃO HENRIQUES
Lisboa, PÙBLICO; Domingo, 13 de Janeiro de 2002

No maior país muçulmano do mundo, discutem-se as formas de acabar com o caos económico e social. Vários grupos islamistas consideram que a resposta reside na religião. Mas as abordagens diferem, quanto a manter na Indonésia um regime secular, ou transformar o país num estado islâmico

Quantas faces tem o islão? Na Indonésia, pelo menos duas. Os que querem um estado secular, ainda que acreditando que os valores do islamismo poderão resgatar o arquipélago do caos, e os que, sob a mesma convicção, lutam por um estado religioso, onde serão aplicadas as regras da "sharia" (lei islâmica). O debate no maior país muçulmano de mundo acentuou-se depois dos ataques de 11 de Setembro.

Apesar de um número enorme de fiéis islamistas entre os seus 220 milhões de habitantes, a Indonésia tem conseguido manter um regime secular. É esse um dos pilares da "Pancasila", os princípios que acompanharam o nascimento da nação e que ainda hoje são respeitados. Mas no meio do caos económico, social e muitas vezes político em que o arquipélago mergulhou, há uma corrente cada vez mais forte que defende a religião como factor de união e, principalmente, de orientação.

É este o caso de Nursanita Nasution, política muçulmana e professora de Economia de 39 anos. Nasution acredita que a melhor forma de acabar com a violência sectária que se vive em várias regiões da Indonésia é criando um estado islâmico. Esta mãe de sete filhos fez com que milhares de mulheres saíssem à rua para acções contra o jogo e a pornografia, relatava esta semana o "Wall Street Journal".

Do outro lado está Syafii Maarif, líder da segunda maior organização muçulmana indonésia, formado no Ocidente. Não deseja que a política e a religião se unam, mas que o país viva sob os princípios religiosos, de paz e amor, do Corão. E espera que a maioria dos seus compatriotas continue a seguir um islamismo moderado.

A avaliar pelas manifestações que se seguiram ao início dos bombardeamentos americanos contra o Afeganistão (como retaliação contra o ataque a Nova Iorque e Washignton), pode ser que Maarif veja o seu desejo cumprido. Milhares de pessoas foram chamadas à rua pelos grupos mais radicais, mas a maioria acabou por ficar em casa e os protestos, apesar de quase quotidianos, foram menores do que alguns temiam.

A alternativa política

Durante o regime de Suharto "muitos muçulmanos indonésios sentiram que foram privados do seu direito de governar a nação", escreve o norte-americano Adam Schwarz, no seu livro "A Nation in Waiting" (1999). Não alimentar o islamismo - o que Suharto fez com a ajuda militar - era uma forma de cortar a voz aos movimentos separatistas. "Mas nos anos 80, um revivalismo da consciênca islâmica floresceu na Indonésia, especialmente entre os jovens. Cada vez mais, o islão começou a ser visto como uma alternativa para a estrutura política altamente circunscrita".

As tentativas da Nova Ordem (os 32 anos de ditadura) de despolitizar a Indonésia levou muitos a olhar para o islão como uma segunda arena de acção. Isso aconteceu sobretudo nos campus universitários do arquipélago. Nursanita Nasution estava na Universidade da Indonésia, em Jacarta, quando foi arrastada para a política. Relacionou-se então com uma série de estudantes e intelectuais que queriam mudar o país.

A importância dada aos grupos islâmicos começou a crescer ainda no tempo de Suharto, numa tentativa de garantir algum apoio que começava a vacilar pelo lado dos militares e de minimizar as críticas que os líderes muçulmanos lhe iam dirigindo cada vez mais assiduamente. Esta nova abordagem recebeu, no entanto, a contestação de líderes religiosos, como o ex-Presidente Abdurraham Wahid, na altura chefe da maior organização muçulmana do mundo, o Nahdlatul Ulama (NU), com 30 milhões de membros. Wahid defendia que as minorias, nomeadamente católica e chinesa, é que deviam ser protegidas - não só por serem vitais para a economia do país, como para evitar mais conflitos étnicos. "O islão deve ser uma ética social e não uma força política", dizia.

As novas tendências

A queda de Suharto, obrigado a deixar o poder em Maio de 1998, abriu definitivamente o caminho para que as tendências muçulmanas ganhassem voz. Entre os inúmeros grupos partidários criados então, nasceu o Partai Keadilan, o Partido da Justiça (PK), do qual Nursanita faz parte.

"Com as pressões para o pluralismo, é inevitável que os muçulmanos recebam mais poder político. A questão é: quanto mais, e que muçulmanos?", interroga Schwarz. "Na Indonésia, existem actualmente muitas faces do islão, mas estamos ainda a procurar a modernidade", explica Syafii Maarif ao diário norte-americano. "Precisamos de oferecer uma perspectiva alternativa para o futuro".

Para o PK, menos moderado, o futuro passa pela democracia. Mas os seus dirigentes culpam a corrupção e a decadência moral actuais pelo colapso da economia daquele que foi, durante décadas, um dos exemplos de crescimento económico na região.

Muitos dos membros do PK foram formados no estrangeiro, em países ocidentais, mas a maior parte tem reservas quanto a várias instituições financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). "A nossa conclusão sobre a crise é que existe uma falta de moralidade e responsabilidade na Indonésia", diz o seu fundador, Nur Mahmudi Isamail. "As respostas estão nos ensinamentos religiosos".

Nursanita Nasution quer que a mulher desempenhe um papel mais importante na reconstrução do seu país. Foi por isso que recrutou um exército de saias para policiar a moralidade. Em Novembro passado, enviou-o a dez cidades diferentes. Só em Bandung (em Java Ocidental), mil activistas, com lenços na cabeça, invadiram o escritório do presidente da Câmara, a assembleia local e um centro comercial numa campanha de destruição de vídeos com sexo explícito. "Salvem a nossa geração da pornografia", diziam.

"O Islão já não é visto como o ópio dos não-escolarizados ou dos economicamente desfavorecidos. Professionais e membros da classe média encaram-no cada vez mais como uma religião que lhes pode satisfazer as suas necessidades espirituais no contexto da sociedade contemporânea", escreve ainda o académico americano.

Há também quem o use como uma arma. O radical Laskar Jihad é responsável pela morte de milhares de pessoas nos conflitos entre cristãos e muçulmanos, que se travam sobretudo no Centro e Leste indonésio desde a queda de Suharto. O seu líder, Ja'far Umar Thalib, de 40 anos e filho de emigrantes do Iémen, recebeu instrução nas madrassas de Peshawar, no Paquistão, e envolveu-se na luta contra a invasão soviética, no Afeganistão. Diz-se que tem ligações à Al-Qaeda, de Osama bin Laden.

O historiador Maarif recorre à religião para obter outro tipo de respostas: uma forma de promover a democracia e a igualdade. O autoritarismo, diz ele, semeia a ignorância e suprime o pensamento. Aos 45 anos deixou a Indonésia para estudar em Chicago. Foi lá que tomou contacto com as várias abordagens do islamismo. E começou a defender que a "cultura do Islão" é preferível a um estado islâmico, um princípio proclamado pela organização muçulmana que dirige desde 1998, o Muhammadiyah (a segunda mais importante, a seguir ao NU). "Para entendermos verdadeiramente o islão, temos de perceber que ele tem muitas raízes diferentes", continua Maarif. "Então concluímos que ele defende a paz".

Maarif tem milhões de seguidores, aparentemente dispostos a percorrer o seu caminho. Mas o caos na lei e na ordem, o aumento do desemprego e a crise económica estão a dar terreno ao radicalismo. Pode ser que, como diz Syafii Maarif, "enquanto irmãos, concordamos em discordar". O historiador acredita que a Indonésia possa vir a ser "um modelo para o mundo islâmico". Mas muitos temem que as tendências de Nursanita Nasution e de Ja'far Umar Thalib venham a determinar o futuro da Indonésia.