C.J. Jung sobre o Zen

 

Reflexões extraídas dos seus ensaios compilados em Psicologia e Religião Oriental, 5ª edição, Ed. Vozes, Petrópolis, 1971, pp. 62-78.

----------

 

À luz do que sabemos a respeito da essência do Zen, trata‑se também aqui de uma concepção central de inigualável singularidade. Essa estranha acepção é designada pelo termo satori e pode ser traduzida por "iluminação". "Satori é a 'raison d'être' [a razão de ser] do Zen, e sem o satori não há Zen", afirma Suzuki.  Creio que não é muito difícil para a mente ocidental captar o que um místico entende por "iluminação" ou o que é conhecido como tal na linguagem religiosa. Satori designa uma forma e um caminho para a iluminação, que é quase inacessível à compreensão do europeu. Reporto‑me aqui à iluminação de Hyakujo (Pai‑Chang Huai‑Hai, 724‑814 DC) e à lenda de Kozankoku (Huang Shan‑Ku), poeta e estadista confuciano, tais como as que descreve Suzuki na obra em questão.

 

0 que se segue também poderá servir de exemplo: Certa vez, um monge foi ter com Gensha, desejando saber onde ficava a entrada do caminho que conduz à verdade. Gensha perguntou‑lhe: "Estais ouvindo o murmúrio do regato?" "Sim, estou ouvindo", respondeu o monge. "É lá que está a entrada", ensinou‑lhe o Mestre.

 

Contentar‑me‑ei com estes poucos exemplos que ilustram suficientemente a opacidade da experiência vital do satori. Mes­mo que citássemos muitos outros exemplos, acharíamos extre­mamente difícil saber como se chega a esta iluminação e em que ela consiste. Ou, em outras palavras, saber o que nos ilumina e a respeito de que somos iluminados. Kaiten Nukariya, professor do Colégio budista To‑Shú de Tóquio, nos diz, falando da iluminação: "Uma vez libertados da falsa concepção de si­ mesmo, temos de despertar nossa mais intima e pura sabedoria divina, chamada pelos mestres do Zen a mente de Buda (Mind of Buddha) ou Bodhi (o conhecimento pelo qual o indivíduo experimenta a iluminação) ou Prajnã (suprema sabedoria). É a luz divina, o céu interior, a chave de todos os tesouros do espírito, o ponto central do pensamento e da consciência, a fonte  de onde brotam a força e o poder, a sede da bondade, da justiça, da compaixão e da medida de todas as coisas. Quando conhecimento interior é plenamente despertado, estamos aptos para compreender que cada um de nós se identifica em espírito, essência e natureza com a vida universal ou Buda; que cada um de nós recebe a graça transbordante do Santo Ser (Buda); que ele suscita nossas forças morais, abre nossos olhos espirituais, desenvolve nossas capacidades, comunica‑nos uma missão, e que a vida não é um mar de nascimentos, de doenças, de velhice e morte, nem um vale de lágrimas, e sim o templo santo de Buda, 'a Terra Pura' (Sukhavati, a terra da bem‑aventurança), onde poderemos gozar as delícias do Nirvana. Então nosso espírito será totalmente transformado. Já não seremos perturbados pela cólera e pelo ódio, nem feridos pela inveja e pela ambição, nem incomodados pelas preocupações e cuidados, ou atormentados pela tristeza e pelas dúvidas".

 

É desta maneira que um oriental, e ainda por cima conhecedor do Zen, se expressa sobre a essência da iluminação. Temos de admitir que esta passagem necessitaria apenas de pequenas alterações para figurar tranqüilamente em qualquer devocionário místico cristão. Mas ela nos deixa insatisfeitos diante da tentativa de compreender a experiência vital do satori descrita nesta ampla dissertação. É provável que Nukariya se dirija ao racionalismo ocidental do qual ele próprio sorveu uma boa dose, e esta é a razão pela qual tudo soa tão banalmente edificante. É preferível a abstrusa obscuridade das historietas do Zen a esta adaptação "ad usum Delphini". Elas dizem pouco, mas, de certo modo, transmitem muito mais do que dizem.         

 

O Zen é tudo, menos filosofia no sentido ocidental da palavra. Esta é também a opinião expressa por Rudolf Otto em sua introdução ao livro de Ohasama sobre o Zen, quando afirma que Nukariya, identifica o "mágico mundo oriental das idéias com nossas categorias filosóficas ocidentais”, confundindo‑as entre si. "Caso se invoque o paralelismo psicofísico, que é a mais férrea das doutrinas, para explicar esta intuição mística da não‑dualidade, da unidade e da ‘coincidentia‑oppositorum seremos com certeza completamente expulsos da esfera do Koan, do Kwatsu e do Satori".' É preferível  a abstusa obscuridade das historietas do Zen e ter sempre presente que o satori é um "mysterium ineffabile", como aliás pretendem os próprios mestres do Zen. Entre as historietas e a iluminação mística há, em nosso entender, um imenso abismo. A possibilidade de transpô‑lo poderá quando muito ser indicada, mas nunca será atingida na prática.' 0 indivíduo tem aqui a impressão de tocar, por assim dizer, num verdadeiro mistério e não em algo apenas imaginado ou pretendido. Isto é, não se trata de um segredo mistificador e sim de uma experiência viva que bloqueia qual­ quer linguagem. 0 satori nos atinge como algo de novo, como algo que não esperávamos.

 

Quando, no seio do Cristianismo, surgem as visões da San­tíssima Trindade, da Mãe Santíssima, do Crucificado ou do Santo Padroeiro, depois de longa preparação espiritual, temos a impressão de que tudo isto deve ser mais ou menos assim. Também é compreensível que Jacob Bõhme num relance de olhos tenha penetrado no "centrum naturae" [coração da na­tureza] através de um raio de sol reflectido num disco de esta­nho. Entretanto, é mais difícil digerir a visão de Mestre Eckhart a respeito do "garotinho nu"', ou mesmo a visão de Sweden­borg sobre o "homem do manto vermelho" que queria livrá‑lo do vício da gula e a quem ele, apesar disso, ou talvez justamente por isso, reconheceu como o Senhor Deus." Tais coisas são difíceis de aceitar, pois se aproximam do grotesco. Muitas das experiências do satori, porém, não somente raiam pelos limites do grotesco, como são grotescas, parecendo completa­ mente sem sentido.

 

Mas, para alguém que se tenha dedicado com amor e com­preensão e por tempo considerável ao estudo da natureza do espírito do longínquo Oriente, muitas destas coisas surpreen­dentes, que levam o europeu comum de perplexidade em perplexidade, acabam por desaparecer. 0 Zen é, na verdade, uma das flores mais maravilhosas do espírito oriental docilmente impregnada pelo imenso mundo do pensamento budista. Porisso, quem se esforçou por compreender a doutrina do Budis­mo, até certo ponto ‑ ou seja, renunciando a certos precon­ceitos ocidentais ‑ chegará a captar determinadas profundi­dades por sob o manto bizarro das experiências individuais do satori, ou percebendo as inquietantes dificuldades que o Ocidente filosófico e religioso se acreditava até então autorizado a ignorar. Como filósofo, o indivíduo se Ocupa exclusivamente com aquela preocupação que, de sua parte, nada tem a ver com a vida. E como "cristão" nada tem a ver com o paganismo. ("Senhor, eu te dou graças porque não sou como aquele ali" (Lc. 18,11). Não há satori dentro destes limites ocidentais. Esta é uma questão puramente oriental. Mas será realmente assim? Será que não temos realmente satori?

 

Quando lemos atentamente os textos do Zen, não podemos fugir à impressão de que, apesar de tudo o que neles parece bizarro, o satori é, de fato, um acontecimento natural. Trata‑se de uma coisa tão simples" que não podemos ver a floresta por causa das árvores, e qualquer tentativa de explicá‑lo nos leva sempre a uma confusão maior. Nukariya tem razão, por­tanto, ao afirmar que toda tentativa de explicar ou analisar o conteúdo do Zen ou iluminação seria inútil. Mas, ainda assim, esse Autor ousa dizer que a iluminação comporta uma percepção da natureza do si-mesmo e é uma emancipação da cons­ciência em relação à ilusória concepção do si‑mesmo." A ilusão referente à natureza do si‑mesmo é a habitual confusão que se faz entre o eu e o si‑mesmo. Pelo termo "si‑mesmo" Nukariya compreende o Buda total, isto é, a totalidade pura e simples da consciência da vida. Ele cita Pan Shan que dizia: "A lua do espírito (mind) encerra todo o universo em sua luz", e acrescenta: "É a vida e o espírito (spirit) cósmicos e, ao mesmo tempo, a vida e o espírito (spirit) individuais".

 

Qualquer que seja a definição do si‑mesmo, ele é algo que difere do eu. E desde que uma compreensão mais elevada do eu nos conduz ao si‑mesmo, este último deve ser algo de maior e mais amplo que engloba a experiência do eu e, por isso mesmo, o ultrapassa. Da mesma forma que o eu é uma certa do meu próprio ser, assim também o si‑mesmo é experiência uma experiência de mim próprio, a qual, entretanto, já não é vivida sob a forma de um eu mais amplo ou mais alto, e sim sob a forma de um não‑eu.

 

Tais pensamentos são também familiares ao autor da Deutsche Theologie (Teologia Alemã): "A medida em que uma criatura se torna consciente desta sua perfeição, ela perde por completo seu carácter de criatura, sua índole de ser criado, sua qüidade, sua ipseidade”. Quando considero que existe algo de bom em mim mesmo, isto provém da ilusão de que sou bom. Isto é sempre um sinal de imperfeição e de tolice. Se estivesse consciente da verdade, também estaria consciente de que não sou bom, de que o bem não é meu nem provém de mim. Por isso, conclui o homem: “Que pobre tolo eu sou! Estava iludido de que era bom, mas eis que percebo que aquilo era e é realmente Deus".

 

0 que acima foi dito já nos dá uma ideia bastante satisfatória do "conteúdo da iluminação". 0 processo do satori é formulado e interpretado como uma ruptura e uma passagem da consciência limitada na forma do eu, para a forma do si‑mesmo que não tem um eu. Esta concepção corresponde ao Zen, bem como à mística do Mestre Eckhart. 0 Mestre diz no seu sermão sobre os "beati pauperes spiritu" [bem‑aventurados os pobres de espírito]: "Quando saí de Deus, todas as coisas diziam: Há um Deus! Mas isto não pode fazer‑me bem‑aventurado, pois juntamente com isso percebo que sou uma simples criatura. Mas é na ruptura ", quando desejo permanecer pura e simplesmente na vontade de Deus e livre também da sua vontade, de todas as suas obras e do próprio Deus, então é que sou mais do que todas as criaturas, pois não sou nem Deus nem criatura: sou o que era e o que permanecerei sendo, agora e para sempre! Então recebo um impulso que me eleva acima dos anjos. Este impulso me torna tão rico, que Deus já não pode me satisfazer, mesmo em face do que Ele é como Deus e de todas as suas obras divinas, pois nessa ruptura percebo que eu e Deus somos uma e mesma coisa. Eu sou então o que era ", pois nem cresço nem diminuo; sou um ser imóvel que move todas as coisas. Aqui Deus não habita mais no interior do homem, pois o homem, com sua pobreza, alcançou novamente o que sempre foi e será eternamente"."

 

Nesta passagem, o Mestre está realmente descrevendo uma experiência do satori, uma substituição do eu pelo si‑mesmo, que possui a "natureza de Buda", ou seja, a universalidade divina. Por modéstia científica, não pretendo fazer aqui uma afirmação metafísica e sim expressar a opinião de que uma mudança de consciência pode ser experimentada, além do que considero o satori sobretudo como um problema psicológico. Para aquele que não partilha ou não compreende este ponto de vista, tal "explicação" se reduzirá a meras palavras, inca­pazes de lhe oferecer, portanto, uma significação tangível. Não estará apto, então, a fazer destas abstracções uma ponte que o leve até os fatos relatados, ou melhor, não está em condições de compreender de que modo o perfume do loureiro em flor" ou um nariz adornado de pincenê  poderiam provocar mudança tão grande na consciência. A coisa mais simples seria, naturalmente, relegar todas estas estórias para o domínio dos divertidos contos de fada ou, caso aceitemos os fatos tais como são, considerá‑los pelo menos como exemplos de ilusão. (Seria preferível empregar aqui a expressão "auto‑sugestão”, este pobre traste jogado no arsenal dos conceitos espirituais inadequados!). Um estudo sério e responsável desse estranho fenómeno não pode passar tranquilamente ao largo do carácter real dos fatos. Nunca estamos em condições de decidir, definitivamente, se uma pessoa foi realmente "iluminada" ou "redimida", ou se apenas imagina que o tenha sido. Falta‑nos para isto qualquer critério. Além disso, sabemos muito bem que uma dor imaginária é muitas vezes mais dolorosa do que uma dor pretensamente real, pois é acompanhada de um sofrimento moral subtil, provocado por um sombrio e secreto sentimento de culpa pessoal. Não se trata portanto de um "fato concreto", mas de uma realidade espiritual, isto é, de um acontecimento psíquica do processo conhecido por satori.

 

Todo conhecimento espiritual é uma imagem e uma imaginação. Se assim não fosse, não haveria consciência nem feno­menalidade da ocorrência. A própria imaginação é também um facto psíquico. Por isso, é inteiramente irrelevante dizer‑se que uma "iluminação" é "real" ou "imaginária". 0 iluminado, ou o que alega sê‑lo, julga, em qualquer dos casos, que o é. A opinião dos outros nada significa para ele em relação à pró­pria experiência. Mesmo que esteja mentindo, sua mentira seria um facto psicológico. Sim, ainda que todos os relatos religiosos nada mais fossem do que invenções e falsificações conscientes, poderia ser escrito um tratado psicológico muito interessante a respeito de tais mentiras, com o mesmo rigor científico apresen­tado pela psicopatologia das ilusões. 0 fato de que exista um movimento religioso para o qual inúmeras e brilhantes capaci­dades trabalharam durante muitos séculos é motivo suficiente para fazer‑se pelo menos uma tentativa séria no sentido de trazer tais conhecimentos para a esfera da compreensão científica.

 

Levantei acima a questão de saber se entre nós, no Ocidente, existe algo que se assemelhe ao satori. Se exceptuarmos o que disseram os místicos ocidentais, a um exame superficial nada existe, nem de longe, que se possa comparar a tal processo. Nosso modo de pensar não leva em consideração a possibili­dade da existência de degraus no desenvolvimento da cons­ciência. A simples ideia de que há uma diferença tremenda entre a consciência da existência de um objecto e a "consciência da consciência" de um objecto já toca as raias de uma subtileza que mal se pode justificar. Dificilmente alguém se atreveria a tomar este problema tão a sério, percebendo plenamente as condições psicológicas que estão na base de tais problemas. Característico é o fato de que a formulação desta e de outras questões semelhantes não são devidas em geral a uma necessi­dade psicológica, mas ocorrem quase sempre quando se acham enraizadas em uma prática originariamente religiosa. Na Índia foi a ioga e na China o Budismo que proporcionaram a força propulsora para a tentativa de se desprender dos liames de um estado de consciência considerado imperfeito. Quanto ao que sabemos da mística ocidental, seus textos estão cheios de instruções indicando como o homem poderá e deverá libertar‑se do sentido da egoidade de sua consciência, de modo que, me­diante o conhecimento de seu próprio ser, possa elevar‑se acima de1e e alcançar o homem interior (divinizado). Ruysbroeck faz uso de uma imagem que a filosofia hindu também conhece, isto é, da árvore que tem as raízes em cima e a copa em­ baixo. " "Ele deve subir na árvore da fé que cresce para baixo, pois tem as raízes fincadas na divindade". " Ruysbroeck tam­bém se expressa como a ioga: "0 homem deve ser livre e sem imagens. Livre de tudo o que o liga aos outros e vazio de todas as criaturas". "Não deve ser perturbado pela luxúria e pelo sofrimento, Pelo lucro e pelas perdas, Pelas ascensões pelas quedas, pelas preocupações em relação aos outros, pelos prazeres e pelo temor, e não deve apegar‑se a qualquer cria­tura". É daí que resulta a "unidade" do ser, e esta unidade significa um "estar‑voltado‑para‑dentro‑de‑si". 0 estar voltado para dentro de si significa "que o homem está orientado para dentro de si mesmo, para dentro do próprio coração, de modo que pode sentir e compreender a acção interior e as palavras íntimas de Deus"." Esta nova disposição da consciência, surgida da prática religiosa, não se caracteriza pelo fato de que as coisas exteriores não afectam mais a consciência da egoídade da qual se originara uma recíproca vinculação, mas sim pela circunstância de que uma consciência vazia permanece aberta a uma outra influência. Esta "outra" influência não é mais sentida como uma actividade própria, e sim como a actuação de um não‑eu que tem a consciência como seu objecto. É por conseguinte, como se o carácter subjectivo do eu fosse transferido ou assumido por outro sujeito, que tomasse o lugar do eu. Temos aqui a conhecida experiência religiosa já formulada por Paulo. É fora de dúvida que se trata da descrição de um novo estado de consciência, separado do primeiro por um processo de profunda transformação religiosa.

 

Pode‑se objectar que a consciência em si não mudou, mas somente a consciência de alguma coisa. É como se tivéssemos virado a página de um livro e agora víssemos com os mesmos olhos uma figura diferente. Receio que este modo de considerar não seja mais do que uma interpretação arbitrária, pois não leva em conta a realidade dos factos. A verdade é que o texto não descreve apenas uma imagem ou um objecto, mas sim a experiência de uma transformação que ocorre muitas vezes sob as mais violentas convulsões. A extinção de uma imagem e sua substituição por outro é um fato muito quotidiano que nunca revela as qualidades de uma experiência de transformação. Não se trata de estar vendo outra coisa. É o indivíduo que vê de outro modo. É como se o ato espacial de ver fosse alterado por uma nova dimensão. Quando o Mestre pergunta: "Estás ouvindo o murmúrio do regato? ", certamente está se referindo a uma "audição" inteiramente diversa da ordinária. " A cons­ciência é algo semelhante à percepção e, como esta, também está sujeita a condições e a limites. Podemos, por exemplo, estar conscientes a diversos níveis, em uma esfera mais ou menos ampla, mais superficial ou mais profunda. Estas dife­renças de grau são muitas vezes diferenças de modos de ser, pois dependem do desenvolvimento da personalidade em seu todo, isto é, da condição do sujeito que percebe.

 

0 intelecto não se interessa pela condição do sujeito que percebe, na medida em que este pensa logicamente. 0 intelecto se ocupa, por sua própria natureza, com a assimilação dos conteúdos da consciência e talvez também com os métodos assimilativos. Torna‑se necessária uma paixão filosófica para forçar a tentativa de subjugar o intelecto e avançar até o conhe­cimento daquele que é o sujeito da percepção. Tal paixão difi­cilmente se distingue das forças religiosas propulsoras, e por isso todo esse problema faz parte do processo de transformação religiosa que é incomensurável ao intelecto. A filosofia antiga está indubitavelmente e em larga escala a serviço do processo de transformação, o que não se pode afirmar ampla­mente acerca da filosofia moderna. Schopenhauer ainda se acha condicionado, até certo ponto, pelo pensamento antigo. 0 Zara­trustra de Nietzsche já não é mais filosofia, e sim um processo dramático de transformação que engoliu completamente o inte­lecto. Não se trata mais de um modo de pensar, e sim do pensador do pensamento no mais alto sentido ‑ e é isto o que transparece em cada página do livro: um novo homem, um homem completamente transformado deve aparecer em cena, um ser que quebrasse as cascas do homem velho e não olhasse apenas para um novo céu e uma nova terra, mas fosse, ele mesmo, quem os criasse. Angelus Silesius exprimiu este facto, por certo mais modestamente do que Zaratrustra:

 

"Meu corpo é uma casca na qual um pintainho será chocado pelo Espírito da eternidade"."

 

No âmbito cristão, o satori corresponde a uma experiência religiosa de transformação. Como existem, entretanto, diversos graus e tipos desta experiência, não seria supérfluo designar com maior precisão a categoria que mais corresponde à expe­riência do Zen. Trata‑se, sem a menor dúvida, de uma expe­riência mística que se distingue de outras similares pelo facto de sua preparação consistir em um deixar correr, em um es­vaziar‑se de imagens, e coisas semelhantes. E isto em contraste com experiências religiosas que se baseiam, como os Exercícios de Inácio de Loyola, na exercitação e na imaginação de ima­gens sagradas. Eu gostaria de concluir também nesta última categoria a transformação que se realiza no Protestantismo mediante a fé, a oração e a experiência comunitária, pois tra­ta‑se aqui não de uma "vacuidade" ou de "uma libertação” mas de uma suposição claramente definida. A definição característica da "libertação": "Deus é um Nada", parece incompatível, em princípio, com a contemplação da paixão, da fé e da expec­tativa da comunidade.

 

Desta forma, a analogia do satori com a experiência ocidental se circunscreve àqueles poucos místicos cristãos cujos ditos, pelo amor do paradoxo, tocam as fronteiras da heterodoxia, ou até mesmo a ultrapassam. Foi esta a qualidade que, como se sabe, determinou a condenação, por parte da Igreja, das obras de Mestre Eckhart. Fosse o budismo uma "igreja" no sentido em que usamos esta palavra, o movimento Zen, por certo, teria sido um fardo intolerável para ela. A razão disto é a forma extremamente pessoal que se conferiu ao método, bem como à atitude iconoclasta de muitos de seus mestres. " Assim como é o Zen um movimento, formas coletivas têm sido modeladas no decurso dos séculos, tal como se pode ver no trabalho a respeito da formação dos monges zen‑budistas." Mas quanto à forma e ao conteúdo, elas se referem apenas ao exterior. A parte a característica do estilo de vida, o processo de formação e educação dos discípulos parece consistir no método do koan. Por koan se entende uma questão paradoxal, uma expressão ou acção do mestre. Pela descrição de Suzuki, parece que se trata principalmente de perguntas dos mestres transmitidas sob a forma de historietas. Estas são propostas por um instrutor à meditação de seu discípulo. Um exemplo clássico é a estória do Wu e do Mu: Certa vez, um monge perguntou ao mestre: "0 cão possui também a natureza de Buda?" Ao que o mestre respondeu: "Wu". Como observa Suzuki, este "Wu" significa simplesmente wu, isto é, o mesmo que o próprio cão teria dito em resposta à questão."

 

A primeira vista, parece que a proposta desta questão como objeto de meditação já é uma antecipação do resultado final e que o conteúdo da experiência estaria assim determinado , à semelhança dos exercícios jesuíticos ou de certas meditações cujo objecto é definido por uma tarefa indicada pelo mestre. Os koans, entretanto, são de tão grande variedade, de tal ambigüidade e, além do mais, tão tremendamente paradoxais, que mesmo um bom conhecedor do assunto não logrará atinar com aquilo que poderia emergir como solução adequada. Além disso, as descrições da experiência final são de tal modo obscuras, que em nenhum caso o indivíduo conseguiria perceber, sem objecções, uma conexão racional entre o koan e a experiência. Visto ser impossível provar qualquer sucessão lógica, é de supor‑se que o método do koan não coloca obstáculo algum à liberdade das ocorrências psíquicas e que o resultado, portanto, não decorre senão da disposição individual do iniciando. A completa destruição do intelecto racional, visada na formação do monge, cria uma falta de pressuposto quase absoluta da consciência. Mas por mais que se exclua este pressuposto, não se elimina o pressuposto inconsciente: a disposição psicológica existente, mas não percebida, é tudo, menos um vazio e uma falta de pressuposto. Trata‑se de um factor natural, e quando ele responde ‑ coisa que acontece, evidentemente, na experiência do satori ‑ é uma resposta da natureza que consegue canalizar directamente a sua reacção para a consciência. 0 que a natureza inconsciente do discípulo opõe ao mestre ou ao koan como resposta é, obviamente, satori. É este, pelo menos, o ponto de vista que me parece exprimir mais ou menos adequadamente a essência do satori, de acordo com o que nos dizem as descrições. Esta concepção se apoia também no fato de que "a visão da própria natureza", o "homem original" e a profundeza do ser constituem, em muitos casos, para o mestre do Zen, uma aspiração toda especial. "

 

0 Zen difere de todas as outras práticas filosóficas e religiosas de meditação pela ausência radical de pressupostos. 0 próprio Buda, muitas vezes, é severamente rejeitado e até mesmo quase blasfemicamente menosprezado, muito embora ou talvez precisamente pelo facto de poder ser apresentado como o exemplo mais frisante de um pressuposto espiritual à prática da ascese. Ele é também uma imagem e, portanto, deve ser rejeitado. Nada deve existir, a não ser o que realmente aí se encontra: tal é o homem com sua completa e inconsciente pressuposição espiritual, da qual não pode libertar‑se, precisamente por ser inconsciente. Por isso, a resposta que parece surgir do vazio, isto é, a luz que brilha do seio das trevas mais densas, sempre tem sido sentida como uma iluminação maravilhosa e beatificante.

 

0 mundo da consciência é, inevitavelmente, um mundo cheio de limitações e de muros que bloqueiam os caminhos. Ele é, por natureza, sempre unilateral e esta unilateralidade resulta da essência mesma da consciência. Nenhuma consciência pode abrigar mais do que um número diminuto de representações simultâneas. 0 restante deve ficar na sombra e subtraído à vista. Aumentar os conteúdos simultâneos provoca, de imediato, um obscurecimento da consciência, ou até mesmo uma perturbação que pode chegar à desorientação. A consciência em si pela própria essência não só exige, mas é uma delimitação rigorosa a um círculo diminuto e portanto bem definido de conteúdos. Devemos nossa orientação geral única e exclusivamente à circunstância de podermos pôr em andamento uma série de imagens comparativamente rápidas, graças à nossa atenção. Esta, porém, representa um esforço que não somos capazes de sustentar por muito tempo. Por isso, temos de nos arranjar, por assim dizer, com um mínimo de representações simultâneas e séries de imagens. Exclui‑se, portanto, constantemente, um grande campo de representações possíveis, ficando a consciência sempre limitada a um estreitíssimo círculo. Por isso, é absolutamente impossível imaginar o que aconteceria, se uma consciência individual conseguisse abarcar, de um só relance, o quadro simultâneo de tudo quanto se possa imaginar. Se o homem já conseguiu construir o edifício do mundo com as poucas coisas claras e definidas que foi capaz de ima­ginar simultaneamente, que espectáculo divino descortinaria se pudesse imaginar ao mesmo tempo e com clareza uma multi­dão de coisas? Esta pergunta só se aplica às representações possíveis para nós. Se acrescentarmos a estas os conteúdos inconscientes, isto é, aqueles que ainda não estão em condições ou não são mais capazes de atingir a consciência, e tentarmos então imaginar o espectáculo global, não o conseguiremos. Até mesmo a mais ousada fantasia fracassará. Esta incapacidade de imaginar é, naturalmente, impossível na forma consciente, mas é um fato na forma inconsciente, dado que tudo quanto está situado na zona subliminar é sempre virtualmente repre­sentável. 0 inconsciente é a totalidade, não passível de obser­vação directa, de todos os factores psíquicos subliminares, um "espectáculo total" de natureza potencial. Ele constitui a dis­posição total da qual a consciência só retira pequenos fragmen­tos de cada vez.

 

Quando a consciência é esvaziada, tanto quanto possível de seus conteúdos, estes cairão também em um estado de inconsciência (pelo menos transitório). Este recalque, via de regra, se produz no Zen, subtraindo‑se aos conteúdos a energia da consciência e transferindo‑a, ou para o conceito do vazio ou para o koan. Como estes dois últimos devem ser estáveis,  sucessão de imagens é abolida e conseqüentemente também a energia que alimenta o dinamismo da consciência. A quantidade de energia economizada é absorvida pelo inconsciente, reforçando a sua carga natural, até um certo valor máximo. Isto aumenta a facilidade com que os conteúdos inconscientes irrompem na consciência. Como o esvaziamento e o fechamento da consciência não são tarefas fáceis, requer‑se um treino (training) especial e um período indefinidamente longo", para produzir aquele máximo de tensão que levará à eclosão final dos conteúdos inconscientes no âmbito da consciência.

 

Os conteúdos que irrompem na consciência não são abso­lutamente destituídos de sentido. A experiência psiquiátrica com doentes mentais mostra‑nos que há relações peculiares entre os conteúdos da consciência e os delírios e ilusões que nela irrompem. Trata‑se das mesmas relações que existem entre os sonhos e a consciência de um homem normal em estado de vigília. A conexão é, em substância, uma relação compensatória.  Os conteúdos do inconsciente, com efeito, trazem à superfície tudo aquilo que é necessário,  no sentido mais amplo do termo, para a totalização, isto é, para a totalidade da orientação consciente. Se o indivíduo conseguir enquadrar harmonicamente na vida da consciência os fragmentos oferecidos ou forçados pelo inconsciente, resultará então uma forma de existência psíquica que corresponde melhor à personalidade individual e, por isso, também elimina os conflitos entre a personalidade consciente e inconsciente. É neste princípio que se baseia a moderna psicoterapia, na média em que pôde se libertar do preconceito histórico segundo o qual o inconsciente só abriga conteúdos infantis e inferiores. Nele existe certamente um recanto inferior, um quarto de despejo de segredos impublicáveis que não são propriamente inconscientes, mas dissimulados e apenas semi‑esquecidos. Mas isto tem tanto a ver com o conteúdo, tomado como um todo, quanto, por exemplo, um dente cariado com a personalidade total. 0 inconsciente é a matriz de todas as afirmações metafísicas, de toda a mitologia, de toda a filosofia (desde que esta não seja meramente crítica) e de todas as formas de vida que se baseiam em pressupostos psicológicos.

 

Cada irrupção do inconsciente na consciência é uma resposta a uma situação bem definida da consciência, e esta resposta promana das possibilidades reais de representação, isto é, da disposição global que, como foi explicado acima, é uma imagem simultânea "in potentia" [potencial] da existência psíquica em geral. A dissociação em unidades isoladas, seu carácter unilateral e fragmentário se radicam na própria essência da consciência. A reacção proveniente da disposição tem sempre o carácter de totalidade, pois reflecte uma natureza que não foi dividida por uma consciência discriminativa." Daí o seu efeito avassalador! É a resposta inesperada, abrangente, totalmente elucidativa, que actua como iluminação e como revelação quando a consciência foi parar num beco sem saída.

 

Quando depois de muitos anos da mais dura ascese e da mais enérgica e impiedosa devastação da compreensão racional, o devoto do Zen recebe a resposta ‑ a única verdadeira - da própria natureza, pode‑se compreender tudo o que foi dito a respeito de satori. Como qualquer um pode ver, o que transparece na maioria das estórias do Zen é a naturalidade das respostas. Sim, compreendemos com certa satisfação interior e primitiva a história do discípulo iluminado que desejou uma surra do mestre como recompensa. " Quanta sabedoria encerra a monossilábica resposta "wu" do mestre à pergunta sob a natureza búdica do cão! É preciso, porém, ter bem presente um sem‑número de pessoas que não sabem distinguir entre uma anedota espirituosa e um disparate, mas que são muitos também os que estão convencidos de sua inteligência e capacidade, a ponto de acreditarem só haver encontrado em suas vidas cabeças ocas e estúpidas.

 

Embora o valor do Zen‑budismo seja grande para a compreensão do processo de transformação religiosa, duvida‑se de sua aplicabilidade aos povos do Ocidente. Faltam ao Ocidente os pré‑requisitos espirituais para o Zen. Quem, dentre nós, se confiaria incondicionalmente à superioridade de um mestre e a seus métodos incompreensíveis? Este respeito e consideração por uma grande personalidade humana só se encontram no Oriente. Quem poderia se vangloriar de que acredita na possibilidade da experiência de uma transformação sumamente paradoxal, a tal ponto que estaria disposto a sacrificar muitos anos da sua vida na busca fatigante e monótona de tal objectivo? E, por fim, quem ousaria tomar sobre si a autoridade de uma transformação e de uma experiência tão heterodoxas? A menos que seja um homem que não mereça a menor fé, alguém que talvez por razões patológicas vivesse a proferir fanfarronadas. Um homem como esse não se queixaria, entre nós, de falta de seguidores. Mas se um "mestre" impõe uma tarefa mais árdua, que exige mais do que um mero papaguear, então o europeu começa a duvidar, pois a senda íngreme do auto-desenvolvimento parece‑lhe tão melancólica e sombria como o próprio inferno.

 

Não tenho dúvidas de que a experiência do satori ocorra também no Ocidente, pois entre nós existem igualmente pessoas que entrevêem finalidades últimas e não recuam diante de nenhuma fadiga ou trabalho para se aproximarem delas. Mas se calam a respeito das próprias experiências, não por pudor, mas porque estão conscientes de que é inútil qualquer tenta­tiva de comunicá‑las aos outros. De facto, em nossa civilização nada há que estimule e secunde estas aspirações, nem mesmo da parte da Igreja, a guardiã dos valores religiosos. Aliás, a "raison d'être" desta sua função é opor‑se a todas as experiências originais, pois elas não podem ser senão heterodoxas. 0 único movimento no âmbito de nossa civilização que tem ou deveria ter de algum modo certa compreensão destas aspirações é a psicoterapia. Por isto, não é mero acaso que seja precisamente um terapeuta a escrever esta introdução.

 

No fundo, a psicoterapia é uma relação dialéctica entre o médico e o paciente. É uma discussão entre duas totalidades psíquicas, uma disputa na qual o conhecimento é apenas um utensílio. 0 objectivo é a transformação, não algo predeterminado, mas uma mudança de carácter indefinível, cujo único critério é o desaparecimento do senso da egoidade. Nenhum esforço da parte do médico é capaz de forçar esta experiência. 0 máximo que pode é aplainar o caminho para ajudar o paciente a conseguir uma atitude que oponha a mínima resistência possível à experiência decisiva. 0 papel de primeiro plano que o conhecimento desempenha em nosso comportamento ocidental corresponde, em não menor grau, à importância que se atribui à tradicional atmosfera espiritual do Zen. 0 Zen e sua técnica só puderam germinar no solo da cultura espiritual do budismo e é esta que constitui o seu pressuposto permanente. Não se pode destruir um intelecto racionalista que jamais existiu. 0 adepto do Zen não é um fruto da ignorância e da incultura. Daí ocorre que entre nós, com certa frequência, um eu consciente e uma compreensão também consciente e cultivada têm de ser produzidos primeiramente por uma certa terapia, antes de pensar‑se em eliminar o sentido da egoidade ou o racionalismo. Além disso, a psicoterapia não trata de pessoas que, por amor à verdade, estão, como os monges do Zen, prontas a fazer qualquer sacrifício, e sim, na maioria das vezes, dos mais obstinados dos europeus. Deste modo, as tarefas da psicoterapia são, naturalmente, muito mais variadas e as fases individuais do longo processo muito mais contraditórias do que no Zen.

 

Por esta e muitas outras razões não é recomendável, e  nem mesmo possível, uma transplantação directa do Zen para as condições ocidentais.