A Função Social da História

no Mundo de Hoje

                 

José Mattoso

 

 

Conferência da  abertura do ano académico de 1998-1999 (15 de Outubro de 1998) da licenciatura em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L.

 

 

Servirá para alguma coisa hoje fazer uma licenciatura em História? Não é preciso ser muito perspicaz para saber que a pergunta baila na mente da maioria dos alunos que estão aqui nesta sala e que tiveram a paciência de me vir escutar. Estou do lado daqueles que ela não afecta directamente. Mas sei, como toda a gente, que o problema da utilidade do diploma em História constitui uma preocupação que acompanha os alunos deste curso ao longo dos seus quatro anos e se vai intensificando à medida que ele avança. Mesmo quando se atira para trás das costas e se consegue esquecer, no convívio do bar ou na agitação da discoteca, a pergunta lá está, insidiosa, pronta a alimentar todas as ansiedades. Por fim, quando se obtém a licenciatura, a vida encarrega-se de responder, muitas vezes da maneira que menos se espera. Umas vezes trazendo surpresas agradáveis e compensações, outras levantando dificuldades inesperadas ou impondo frustrações desesperantes. O que vos queria dizer neste princípio do ano académico é que a resposta às vossas perguntas não depende só dos outros, ou seja daquilo a que estou a chamar a vida, com os seus acasos e as suas conjugações de factores fortuitos; depende em grande parte, talvez até, na maior parte, de vós mesmos. Pareceu-me que merecia a pena expor-vos a minha opinião a este respeito.

 

é útil e necessária no mundo de hoje, e neste país em que vivemos

 

Queria, portanto, tecer algumas considerações sobre o tema, associando-me aos que estão intimamente persuadidos que merece a pena fazer uma licenciatura em História, mesmo nos dias de hoje, em que se diz que é uma «licenciatura para o desemprego». Persuadido, de facto, não em teoria e em abstracto, ou seja, porque em si a História é uma coisa, digamos, boa e bonita, mas porque ela é útil e necessária no mundo de hoje, e neste país em que vivemos. Serve, realmente, para alguma coisa. Não porém, a qualquer preço e de qualquer maneira. Estar persuadido disso é o primeiro passo para que assim seja de facto. Gostava de partilhar convosco as minhas ideias e convicções, hoje que abandonei o ensino, e que estou em condições de reflectir sobre o que a História tem sido para mim e pode ser para os outros. O facto de ter passado uma vida inteira a trabalhar em História, e de, a partir dela, ter feito e me ter interessado por muitas outras coisas, dá-me, talvez, algum direito a exprimir as minhas opiniões, não digo com autoridade (porque nunca gostei de a ter) mas com algum conhecimento de causa.

               

I

 

A História está presente, pois, em toda a parte

 

Começarei por algumas observações de carácter objectivo. Em 1992 a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra começou a editar um repertório intitulado Bibliografia anual da História de Portugal. O seu primeiro volume apresentava uma lista classificada dos livros e artigos sobre a História de Portugal publicados aqui e no estrangeiro no ano de 1989. Não incluía, portanto, as publicações sobre a História Universal, ou de outros países, de autores portugueses ou estrangeiros. Registou 1607 entradas diferentes. Em 1990 e 1991 estes números ascendiam a 2796 e a 2344, respectivamente (eds.1993 e 1995). Estou persuadido que nos anos seguintes o nível quantitativo se tem mantido, ou que tem, mesmo, aumentado. Infelizmente não disponho neste momento de meios para comparar estes dados com a produção historiográfica dos anos anteriores. Mas posso dizer, sem receio de me enganar, que por volta dos anos 60 não ultrapassaria umas escassas dezenas de publicações, mesmo incluindo os artigos de revistas. Não há dúvida a1guma: em poucos anos o número de publicações em História aumentou enormemente. A sua qualidade científica é também, no conjunto, muito superior à média do que se editava na mesma área no período anterior aos anos 60.

Outra informação objectiva.  A Universidade de Michigan, em Kalamazoo, nos Estado Unidos, organiza todos os anos um congresso internacional de medievalistas. Assisti ao de 1996. Reuniu mais de 2000 congressistas. As comunicações distribuíam-se por 439 sessões, cada uma delas com três ou quatro títulos. Recebi há pouco o programa prévio do congresso de 1999. Prevê agora quase 500 sessões (exactamente 492). o que constitui um aumento de mais de 12% em relação ao número, já enorme, de há três anos. É claro que não estamos nos Estados Unidos nem no Novo Mundo. Mas, não deixarei de recordar que no Congresso de Guimarães sobre Afonso Henriques, no ano passado, houve umas 130 comunicações. Se contabilizasse as comunicações feitas a todos os congressos de História que houve em Portugal no mesmo ano, creio que não estaríamos longe do milhar.

Uma última observação, para terminar este elenco de dados. A História de Portugal que eu coordenei e que foi publicada pelo Círculo de Leitores em 8 volumes vendeu, em quatro anos, uns 100.000 exemplares de cada volume, sem contar com as duas versões editadas pela Editorial Estampa, uma igual à do Círculo, outra sem as fotografias e para uso dos estudantes. Isto pouco depois de as Publicações Alfa terem no mercado uma História de Portugal de características semelhantes e de ao mesmo tempo sair outra em 15 volumes publicada pelo Ediclube. Ora não se editava nada de semelhante depois da década de 1930.

 

alargamento da projecção cultural da História

 

Estes dados não podem deixar de significar que não existe só uma grande oferta de textos historiográficos e de eventos que não se poderiam realizar sem o concurso dos historiadores, mas também que a essa oferta corresponde uma procura intensa e diversificada. Isto significa também que a licenciatura em História não serve só para a dar aulas nos diversos graus de ensino, como acontecia há uns vinte anos, mas também para responder a um enorme interesse e curiosidade por parte de um sector muito amplo da população. Se a História foi sempre considerada uma das disciplinas básicas de todo o ensino, ao nível da escola primária e da secundária, constitui hoje uma certa novidade ela ter-se transformado num dos domínios preferenciais da curiosidade do publico capaz de ler e um dos alvos mais procurados pela actividade editorial.

 

Este considerável alargamento da projecção cultural da História reflecte-se também no alastramento das perspectivas históricas a toda a espécie de actividades do mundo actual. Não são só as inúmeras comemorações de grandes eventos nacionais ou internacionais, como o Centenário da Revolução Francesa, o Descobrimento da América, o baptismo de Clóvis, ou os Descobrimentos Portugueses, com a quantidade de actividades a que dão lugar e que envolvem imensa gente. Não há instituição, colectividade ou Câmara Municipal que não considere dever imprescindível comemorar os seus centenários, e que não recorde, nessa altura, com o auxílio de «historiadores», mesmo improvisados e amadores, os acontecimentos mais prestigiantes da sua existência, longa ou breve. Também se deve notar uma consciência cada vez maior e mais exigente do valor do património histórico, artístico ou arqueológico que as colectividades e os indivíduos possuem e de cuja preservação têm que dar contas à comunidade. Mais: não se pode deixar de reparar que os jornalistas consideram fazer parte do seu dever profissional informarem-se e informarem os leitores sobre os antecedentes históricos dos acontecimentos que noticiam, sejam eles a guerra na antiga Jugoslávia, sejam as lutas entre as diversas facções muçulmanas xiitas ou sunitas, sejam as visitas dos chefes do Estado a outros países, sejam as decisões políticas anteriores sobre os mesmos assuntos; a ajuda dos historiadores foi indispensável para lhes fornecer pistas em questões tão candentes com a do ouro nazi; quando estava na Torre do Tombo, era rara a semana em que não recebia telefonemas ou pedidos de entrevistas da parte de jornalistas que precisavam de informações sobre os temas mais variados; tinha, a maior parte das vezes, de os remeter para colegas mais competentes nessas matérias. Enfim, os sociólogos, os economistas e até os etnólogos deixaram de tratar dos fenómenos sociais como se eles fossem rigorosamente contemporâneos; há anos que passaram a considerar imprescindível ter em conta a sua dimensão diacrónica e em situá-los em contextos históricos determinados. Acontece o mesmo com os nossos colegas das disciplinas literárias. A História está presente, pois, em toda a parte.

 

historiadores a exercer uma variada gama de profissões

 

Não admira, por isso, que vejamos historiadores a exercer uma variada gama de profissões. Como sabem, há licenciados em História que trabalham como conservadores de museus, como jornalistas, corno assessores de câmaras municipais, como responsáveis por movimentos associativos, como animadores culturais, como arquivistas ou bibliotecários, como operadores turísticos, como locutores radiofónicos, como diplomatas, como funcionários administrativos, como políticos profissionais, como gestores, como investigadores, como técnicos de informação. Se alguns se sentem deslocados e se queixam por terem de exercer uma profissão que não corresponde à sua formação académica, outros sentem-se suficientemente realizados e têm a consciência de serem úteis no lugar onde trabalham. Hoje a gama de ocupações abertas aos historiadores é muito maior do que no passado, mesmo num passado recente.

Finalmente, queria observar que há uns vinte anos quase só havia historiadores profissionais em Lisboa, Porto e Coimbra. Hoje eles estão um pouco por toda a parte, mesmo em cidades do Interior, e ocupam-se a investigar o passado de todos os lugares e de todas as regiões, em paralelo, de resto, com os arqueólogos, cujo conhecimento do território português é hoje muito mais completo e sistemático.



II

 

ter uma percepção clara da relação possível entre os conhecimentos

 históricos e as necessidades do mundo em que vivemos

 

Quer isto dizer que vivemos no melhor dos mundos? Que os licenciados em História têm à sua frente um futuro risonho? Que as suas angústias não têm razão de ser? Que podem estar certos de realizar todos os seus sonhos? Evidentemente que não. O emprego dos jovens diplomados é um problema com que a sociedade actual se defronta. Mas não é só no domínio das Ciências Humanas, é também no das Ciências Exactas e das Tecnologias. Não tenhamos ilusões: a dificuldade de emprego dos jovens abrange também as profissões técnicas como as engenharias, a arquitectura e a medicina. O facto de serem mais bem remuneradas torna-as, até, mais concorrenciais do que as das Ciências Humanas. O problema, como todos sabem, é talvez mais grave em Portugal do que noutros países, devido ao facto de o desenvolvimento cultural e tcnológico se ter processado a um ritmo mais lento do que o da democratização do ensino; mas verifica-se também noutros países em graus variados, o que obriga a um efectivo esforço de empenhamento e de imaginação para se conseguir uma saída profissional. Não é preciso esconder que os licenciados em História não têm grandes oportunidades, se contam exclusivamente com o seu diploma e se não se empenham em alguma outra actividade através da qual possam responder mais directamente às necessidades da sociedade. Mas seria insensato não reconhecer que o mundo de hoje oferece bem mais oportunidades aos historiadores do que aquelas que eles tinham há vinte ou trinta anos. Os dados que indiquei a princípio mostram-no claramente.

Acabo de mencionar as necessidades sociais. Aqui está um conceito que os jovens licenciados em História terão de consciencializar vivamente, se querem ter emprego. De facto, passou há muito a época em que as funções culturais da sociedade eram exercidas por uma pequena minoria, oriunda, na sua quase totalidade, de famílias da burguesia, que, pelo facto de pertencerem à classe dominante, não precisavam de mais do que o diploma para terem emprego garantido. Aos jovens burgueses que frequentavam a Universidade só se pedia que obtivessem classificações decentes para exercer urna profissão. A solidariedade de classe garantia o resto, incluindo a abertura das melhores oportunidades. Hoje, a multiplicação dos diplomados colocou no mercado de trabalho uma quantidade muito maior de candidatos ao emprego e aumentou enormemente a concorrência. Não nos queixemos: o desenvolvimento cultural tem destes custos. Seria absurdo lamentarmo-nos por as oportunidades se abrirem a um número maior de concorrentes, porque estamos na mesma corrida do que eles.

Temos de concluir, portanto, que, se é verdade que a História está presente em todo o lado e não jásó no ensino, o que alarga a possibilidade de emprego, o diploma só por si não constitui um trunfo suficiente. É preciso bem mais do que tê-lo na mão para conseguir enfrentar as dificuldades com alguma probabilidade de êxito. Quais são, então, as condições que se devem preencher para se colocar numa boa posição de partida? Resumi-las-ia todas numa só: ter uma percepção clara da relação possível entre os conhecimentos históricos e as necessidades do mundo em que vivemos.

 

informar-se cuidadosamente acerca da vida social

 

Isto implica várias coisas. Em primeiro lugar. informar-se cuidadosamente acerca da vida social, para perceber que possibilidades se tem de encontrar uma tarefa compatível com os conhecimentos adquiridos. É importante saber o que se passa no mundo para descobrir em que sector se pode ser útil. Não falo, é claro, de ler todos os noticiários, de estar a par das intrigas políticas ou empresariais, ou de saber quem e o que é que tem sucesso no momento presente. Ceder à simples curiosidade nestes pontos equivale a tomar-se membro passivo de uma sociedade que privilegia o efémero e o espectacular. Há trinta anos chamar-se-ia a isto «alienação». O que importa, é claro, são as reais necessidades do país em equipamento cultural, em informação objectiva acerca das estruturas produtivas e das condições sociais que é preciso ter em conta para qualquer projecto de desenvolvimento ou de preservação do património. Ora o conhecimento das condições históricas em que estas estruturas se desenvolveram até ao momento actual é um elemento essencial de apreciação.

 

a História prepara para considerar questões complexas

 

De facto, ao contrário de outras áreas do saber, que só preparam para dar respostas técnicas e unilaterais, do ponto de vista da informação necessária, a História prepara para considerar questões complexas, isto é que têm em conta uma grande quantidade de factores, pelo simples facto de se basearem em condições históricas, com tudo o que elas têm de determinante ou de condicionante. Não posso esquecer a minha surpresa quando em 1974, pouco antes do 25 de Abril fui procurado por um aluno, filho de um dos maiores capitalistas de então, e que estava a fazer o curso de História. Conversámos sobre as coisas mais variadas. Quando lhe perguntei o que tencionava fazer com o curso, disse-me que iria dirigir uma ou mais empresas do pai. Tencionava fazer uma especialização em gestão nos Estados Unidos, coisa que não existia ainda em Portugal, por essa altura; explicou-me que uma boa preparação em História era aí considerada como uma das melhores condições de ingresso, pela diversidade de conhecimentos das estruturas e das conjunturas sociais que proporcionava. Esta posição não era nessa altura comum em Portugal e obviamente não o é ainda. Suponho que não foi adoptada por nenhum curso de especialização em gestão, nem se poderão encontrar muitos candidatos a esses cursos que sintam a necessidade de ter uma boa preparação em História. Mas aqui a culpa é, na minha opinião, dos historiadores: não conseguiram ainda persuadir os gestores que têm alguma coisa a ganhar em saberem História.

Em segundo lugar, é preciso considerar o País como um todo, e não apenas como a capital, ou quando muito a capital mais os lugares onde existem universidades. Isto significa aceitar emprego na Província. Não como um mal menor, mas porque aí a necessidade de pessoas devidamente qualificadas é maior. Há aí muito que fazer, Bem sei que se invocam pretextos em contrário, para se recusar esta eventualidade. Alegam-se razões tais como a deficiência das condições de trabalho, a mediocridade do nível cultural, a escassez de informações ou a dificuldade de actualizar os conhecimentos. Há muito de verdade nestas objecções; mas elas não retiram, antes confirmam, a maior necessidade que o Interior tem de pessoas qualificadas. De resto, o desenvolvimento das comunicações suprime as distâncias; na actualidade as possibilidades de se manter informado e actualizado em todos os ramos do saber é muitíssimo superior à que existia há vinte ou trinta anos.

 

sem ela não se pode compreender o mundo em que vivemos

 

Em terceiro lugar é preciso esbater, na prática, a oposição que normalmente se estabelece entre a investigação em História e a sua aplicação às tarefas da vida corrente. A este respeito, começaria por dizer que tenho conhecido bastantes pessoas que se dizem vocacionadas apenas para a investigação, e que por isso se lamentam por a vida as obrigar a realizar tarefas do baixo quotidiano; a maioria delas, colocadas depois em condições de investigarem, não produzem nada de interesse ou mesmo absolutamente nada. Pelo contrário, outras que possuem um efectivo talento para a investigação, e que a fazem sem se deixarem vencer por condições adversas, acabam por assim conquistar, pelo seu mérito próprio, o direito a consagraram-se a ela mais plenamente. De resto, é preciso desmistificar aquilo a que vulgarmente se chama o «gosto pela História», como se isso fosse sinal evidente de vocação para a investigação. Não passa, muitas vezes, de pura ilusão. De resto o que interessa não é «gostar de História», mas estar convencido que sem ela não se pode compreender o mundo em que vivemos. Por outro lado, não se pode criticar a sociedade por não estar construída de modo a satisfazer os gostos de toda a gente, nem se pode acusá-la de crueldade porque nem sempre proporciona a conjugação dos gostos individuais com as funções que atribui a cada um. Se alguém quer ganhar a vida decentemente tem que saber encontrar o interesse daquilo que faz e realizá-lo com aplicação e empenho. Até um varredor de ruas pode fazer o seu trabalho com competência e consciência profissional. A sua felicidade não depende, obviamente, de gostar de varrer, mas de estar convencido que o seu trabalho é indispensável para a limpeza da cidade. É preciso ser critico para com as instituições; mas quando essa crítica só vê as fraudes, os erros, as incompetências e as anomalias e serve de pretexto para justificar a falta de rendimento, é porque alguma coisa está mal no sujeito que se considera uma vítima daquilo a que em tempos se chamava o "sistema".

  

ausência de centros de investigação em ciências humanas

 

Não queria passar a outro assunto sem abrir aqui um parêntesis para reconhecer muitas carências deste País que é preciso criticar e combater. Por exemplo, para não sair do nosso assunto, a quase absoluta ausência de centros de investigação em Ciências Humanas. É uma outra questão. Mas é preciso reconhecer também que os historiadores não têm, do seu lado, feito grande coisa para demonstrarem que o País precisa desses centros, e em que é que eles deviam desempenhar um papel importante no seu desenvolvimento global.

  

os verdadeiros problemas que a investigação deve prioritariamente resolver

são os colocados pelos problemas da actualidade

 

Fechando o parêntesis, retomo a minha ideia para dizer o que entendo por um esbatimento da fronteira entre investigação e aplicação de conhecimentos em História. Não se trata de pôr em causa a fundamental diferença de conceitos, de métodos e de objectivos de uma coisa e da outra. Estas diferenças são fundamentais e não se podem esquecer. Trata-se de ter constantemente presente que não podem existir uma sem a outra, isto é, que os verdadeiros problemas que a investigação deve prioritariamente resolver são os colocados pelos problemas da actualidade, e que a investigação, mesmo a altamente especializada, se destina, essencialmente, a compreender o passado na medida em que ele determina ou condiciona o presente. Só uma certa prática da investigação pode fundamentar o conhecimento dos fenómenos da duração; é preciso saber porque é que certos fenómenos duram mais do que os outros e porque é que outros não duram nada. Este conhecimento, por sua vez, é indispensável para perceber a utilidade da História na vida corrente e nas necessidades sociais. A um nível mais corrente, é preciso saber que documentos e que bibliografia se devem procurar para responder a uma questão prática, como, por exemplo, saber o valor de um monumento histórico que a Câmara Municipal não sabe se pode ou não alterar e se deve ou não valorizar; ou então, conhecer de uma região não apenas o que dizem as enciclopédias, cujas informações são quase sempre puramente livrescas (por exemplo, para dar parecer sobre um programa de turismo), mas também o que dizem os documentos e ter acerca das informações prestadas pela bibliografia corrente uma opinião crítica. O mesmo se diga, por exemplo, da debilidade de resultados que por vezes se atribuem a tentativas de aplicação da história local na aprendizagem da História geral, previstas nos actuais programas do ensino secundário. Estes métodos não trazem vantagem alguma se se limitam a repetir as vulgaridades dos guias turísticos.

 

capacidade para mudar de emprego

 Em quarto e último lugar é preciso não fazer da estabilidade do emprego um princípio sagrado. A capacidade para mudar de emprego e se adaptar a objectivos e condições diferentes de trabalho, é um trunfo importante na sociedade actual. Para explicar a minha ideia terei de aludir a duas coisas: primeiro à frequência crescente da instabilidade de emprego; segundo, à minha convicção de que o historiador deve estar especialmente bem equipado para enfrentar esta situação.

Que a instabilidade do emprego é um fenómeno cada vez mais corrente no mundo actual, toda a gente o sabe. É uma consequência da crescente velocidade com que se podem comunicar e difundir toda a espécie de informações a uma escala cada vez mais vasta e da consequente alteração constante das decisões estratégicas em todos os domínios. Aquilo em que se apostava ontem pode amanhã revelar-se obsoleto; o problema não está só na insegurança das empresas que não estão preparadas para fazerem face às alterações e no consequente desemprego, mas, também na capacidade de criar emprego novo com as possibilidades que 'as mutações tecnológicas abrem de um dia para o outro.

 

a História exige uma enorme amplidão de conhecimentos das ciências

 humanas

 

Que os historiadores estejam especialmente preparados para estas situações é  mais difícil de provar. Não é vulgar, embora também possa acontecer (mas não por serem historiadores), que tenham uma perspicácia especial para perceberem quais as inovações tecnológicas com melhores condições de sucesso. O que eu quero dizer é que a sua especial preparação para compreenderem de que modo se conjugam os factores históricos nos seus diversos níveis e escalas para daí resultarem os efeitos mais variados os deve preparar para não se surpreenderem com as alterações, para compreenderem o que, apesar de tudo, permanece, nem que seja devido à fundamental lentidão com que a natureza humana evolui, e ainda para descobrirem em que podem ser úteis num mundo diferente. Ao contrário da maioria das profissões técnicas, sobretudo as que exigem um adestramento específico, a História exige uma enorme amplidão de conhecimentos das ciências humanas. O seu aprofundamento não costuma fazer--se no domínio do aperfeiçoamento das técnicas de investigação, mas a partir da capacidade para integrar, no campo dos conceitos e das problemáticas, os contributos de ciências ou saberes alheios.

  

uma atitude pessoal francamente empreendedora

 

Tudo isto exige, portanto, um grande alargamento de interesses, uma atitude pessoal francamente empreendedora e uma percepção das necessidades concretas da comunidade em que se vive é na qual se pretende desempenhar um papel útil. Para isso é preciso estar convencido de que poucas disciplinas oferecem uma visão tão ampla. diversificada e crítica do mundo como a História. Será este o meu último ponto.

  

III

Habitua a descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças  e das doutrinas

 

A História oferece, quando abre os seus horizontes às dimensões do mundo e da Humanidade, uma visão ampla e diversificada da sociedade, não tanto de um ponto de vista estático, mas sobretudo, com é evidente, do ponto de vista temporal e dinâmico. Habitua a olhar para todos os acontecimentos como resultantes de causas e de condições muito variadas e que se conjugam, a uma certa escala, de maneira aleatória, ruas que também se organizam. a outra escala (digamos, a uma escala superior), segundo linhas de força suficientemente visíveis e racionais para que a sua descoberta seja parte essencial da sua explicação ou da descoberta do seu sentido global. Habitua a descobrir a relatividade das coisas, das ideias, das crenças e das doutrinas, e a detectar por que razão, sob aparências diferentes, se voltam a repetir situações análogas, se reproduz a busca de soluções parecidas ou se verificam evoluções paralelas. O historiador está sempre a descobrir no passado longínquo e recente o mesmo e o outro, a identidade e a variância, a repetição e a inovação. A prática na verificação destes dois aspectos da realidade, quando se desenvolve como um talento que outras formações não dão facilmente, dota-o de uma capacidade especial para atribuir aos acontecimentos do presente a sua verdadeira importância.

  

implica uma concepção da História que não se compadece com uma   mera memorização dos factos

 

Em segundo lugar a formação em História, ao aguçar o espírito crítico, habitua a aferir as informações recebidas segundo os seus diversos graus de credibilidade, a ler sempre em conta a posição dos seus autores para lhes atribuir um significado preciso, a compará-las entre si para tentar descobrir os factos objectivos que lhes deram origem, a saber onde ir buscar os testemunhos necessários para obter e documentar as informações desejadas.

Estes dois parâmetros de apreciação dos factos e dos seus testemunhos apetrecham o historiador de maneira especial para saber onde e como obter e seleccionar as informações em que se deve fundamentar uma decisão de carácter político, económico ou cultural, qualquer que seja a instância que tem de a tomar, desde a professora da escola primária até ao Presidente da Câmara ou ao Ministro. Isto na medida em que saiba utilizar os conhecimentos que tem para aplicar a situações diferentes, o que é um exercício fundamental em História. Na medida, também, em que faça da História uma fonte de conhecimento do Homem em sociedade e de compreensão da maneira como ele se situa perante a Natureza. Isto implica uma concepção da História que não se compadece com uma mera memorização dos factos, nem mesmo com a simples capacidade de explicação técnica dos fenómenos e acontecimentos. Neste sentido, é claro, também, que não basta ler muitos livros de História: é necessário ter um imenso interesse por todas as disciplinas das Ciências Humanas.

   

razões mais profundas para insistir na utilidade da História

Há, porém, razões mais profundas para insistir na utilidade da História não sópara a sociedade actual, mas para a sociedade de qualquer época. Para quem pense que no mundo de hoje se tem em pouca conta a tradição (o que, em parte, é verdade), lembro que apesar de a História não ter nenhum valor produtivo por si mesmo, se gasta imenso dinheiro em pesquisar o passado, aplicando à sua investigação técnicas sofisticadas e dispendiosas a que muitos historiadores se consagram a vida inteira, renunciando a prazeres, a afectos e até a necessidades. Aplicam-se somas muito consideráveis do erário público para guardar os testemunhos do passado em edifícios tão caros com a Biblioteca Nacional ou a Torre do Tombo. Valoriza-se enormemente o registo dos acontecimentos, das realizações e das opiniões de todos os dias, para que, de tudo aquilo que sucede de importante, nada fique esquecido. Considera-se verdadeiro crime destruir ou deixar deteriorar ou roubar documentos históricos, sendo a falta tanto mais grave quanto mais importantes são os acontecimentos ou o valor de obras únicas que recordam ou interpretam o passado. Compram-se e vendem-se textos e documentos por preços elevados ou até por verdadeira fortunas, como a que Bill Gates deu pelo códice de Leonardo da Vinci. Escrevem-se todos os dias muitas obras de História e o público compra-as e passa muito tempo a lê-las. Os grandes historiadores adquirem, um prestígio reconhecido por todos como se as suas obras tivessem prestado o maior beneficio à Humanidade. Enfim, os testemunhos do passado consideram-se património público pelo qual o Estado tem obrigação dezelar cuidadosamente, numa responsabilidade que os cidadãos partilham com dever cívico fundamental.

  

recordar o passado colectivo é, portanto, uma forma de lutar contra a morte

 

Tudo isto mostra que a nossa época, mesmo se pouco respeitosa de tradições, preserva o conhecimento e a compreensão do passado como um valor fundamental. Este fenómeno está ligado, creio eu, a uma associação fundamental do culto da memória com a luta pela sobrevivência. De facto, a 1-listória não pode deixar de presidir às manifestações mais importantes da cultura de qualquer sociedade, porque o homem tem necessariamente de viver no tempo. Ora a vivência do tempo está dependente da memória. Não, é claro, da memória concreta, que é também comum aos animais superiores. mas da capacidade de recordar e de evocar o passado de maneira abstracta, que é própria do homem. Além disso, o homem não recorda apenas o seu próprio passado individual, mas também o alheio, sobretudo o da colectividade em que está inserido. É a memória que permite a reconstituição global e retrospectiva do passado. Registada em suportes perduráveis pela escrita, torna-se um património comum. uma memória colectiva. Os grupos humanos cultivam-na como expressão da sua própria continuidade e permanência, ou seja. como um fio que a morte dos seus membros individuais não consegue romper: os membros morrem, mas o grupo permanece. Recordar o passado colectivo é, portanto, uma forma de lutar contra a morte. Daí que a história comum seja tão importante para qualquer sociedade.

 constitui também o fundamento da consciência de identidade

A memória que liga entre si os factos do passado individual ou colectivo constitui também o fundamento da consciência de identidade: o relato das acções do mesmo sujeito em momentos sucessivos da sua existência demonstra a sua capacidade de superação do tempo. Guardar a memória do agir colectivo, corresponde, portanto, a demonstrar que o grupo existe, isto é que não é ummero agregado de indivíduos, que se pode distinguir de outros grupos, que mantém a sua coerência, que é capaz de vencer ataques externos ou dificuldades internas, e de subsistir como suporte dos indivíduos que o compõem.

Mas a memória não regista apenas as acções individuais ou colectivas como o agir de sujeitos identificáveis. O seu sentido não é apenas o de demonstrar que ele se mantém idêntico a si mesmo através do tempo. O relato das acções alheias é também fundamental para que o indivíduo possa apreender como se vive em sociedade, ou como os grupos se relacionam entre si, conhecer os vínculos que o unem ou separam dos seus semelhantes, descobrir os traços que definem os grupos humanos e que se exprimem em acções e comportamentos, isto é, os factos históricos.

 a História contribui mais do que muitos outros saberes para se adquirir a noção da infinita complexidade das formas de sociabilidade

Ora quanto mais vastos são os horizontes da História dos vários grupos a que o sujeito pertence -- a família, o sector profissional, a classe social, a cidade, a região, o país, o continente, a humanidade inteira -- mais o seu conhecimento lhe permite apreender as dimensões espaciais e temporais de cada um deles e as relações que os unem entre si ou separam uns dos outros. Assim, a História contribui mais do que muitos outros saberes para se adquirir a noção da infinita complexidade das formas de sociabilidade pelas quais o homem se foi adaptando ao mundo, da relatividade das soluções encontradas através dos tempos pelas diversas culturas na sua relação com a Natureza.

O exercício da memória parece, portanto, indispensável à vida em sociedade. O historiador é aquele que tem o encargo social de a cultivar. Não quero fazer disto uma espécie de sacerdócio. Isto traduz-se, de forma multo concreta, em tarefas de consequências práticas tão imediatas como a aferição dos fenómenos da duração, a que já aludi.

 optimismo e espírito empreendedor

Só me resta terminar. É verdade que se verifica actualmente uma evidente difusão do interesse pela História e o aumento da capacidade de intervenção dos profissionais da história na vida social. A este dado optimista parece opor-se uma efectiva dificuldade de emprego. Tentei mostrar que isso se deve, ao menos em parte, a uma visão pouco dinâmica e um tanto estreita do oficio de historiador por parte dos jovens que procuram trabalho. Tentei incutir-lhes algum optimismo espírito empreendedor, mostrando o seu interesse em responder a necessidades sociais, nem sempre evidentes, mas suficientemente objectivas para fundamentar esse optimismo.

É essa a missão de todos aqueles que cultivam a História. Á persuasão de que ela é fundamental para que a sociedade atinja os seus objectivos, que são, no fundo, a preservação da vida dos seus membros e a criação de condições favoráveis ao seu desenvolvimento, deve incutir confiança em quem inicia o curso de História. Resume-se a isto o que vos queria dizer no princípio deste ano académico. Só me resta acrescentar: boa sorte a todos; aos meus colegas, para que saibam traduzir estes princípios da maneira mais completa e mais persuasiva; aos alunos, para que iniciem o ano com todo o entusiasmo e para que o terminem com os melhores resultados.