É Ainda Possível Uma Teoria Crítica?

 

EDUARDO PRADO COELHO

Lisboa: PÚBLICO, Sábado, 15 de Abril de 2000

 

Para Boaventura Sousa Santos, faz sentido falar em  "pós-modernismo", uma vez que ele considera que a  grande oposição tenderá crescentemente a ser, não entre  o moderno e o pós-moderno, mas entre o que ele designa como "o  pós-moderno de oposição" e o "pós-moderno celebratório".

 

1. Para assinalar os vinte anos da "Revista  Crítica de Ciências Sociais", publicação do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, dirigida por Boaventura de Sousa Santos e António Sousa Ribeiro, organizou-se um   colóquio intitulado "Sociedade, Cultura e Política no Fim do Século - A Reinvenção da Teoria Crítica", que ocorreu em 16 e  17 de   Abril de 1999, e que andou todo à volta de  duas questões articuladas entre si: qual é o futuro da teoria crítica? Qual é a  teoria crítica do futuro?

 

Deste encontro resultou um número da revista, mais precisamente o nº 54,  com data de Junho de 99, e que é o mais recente aparecido nas livrarias. Se  juntarmos a isto a anunciada publicação do primeiro volume de uma "Crítica  da Razão Indolente", obra maior de Boaventura de Sousa Santos, a lançar  em 4 tomos ao longo deste e do próximo ano (e que desde já surge como um  dos grandes acontecimentos editoriais de 2000, quer em Portugal, onde  aparece editada pela Afrontamento, quer no Brasil, onde surge sob a  chancela da Cortês), existem logo diversas razões convergentes para irmos  procurar ver o que de importante está a acontecer neste momento.

 

O número da "Revista Crítica de Ciências Sociais" parte de um texto de Scott Lash, que é comentado por Manuel Vilaverde Cabral e Francisco Louçã, e depois organiza-se em blocos temáticos. O primeiro intitula-se "Justiça e  cidadania - por uma justiça mais democrática", e nele colaboram José Manuel  Pureza, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Francisco Teixeira da Mota e Maria  Manuel Leitão Marques. O segundo chama-se "Novas desigualdades, novas solidariedades e a reforma do Estado", e nele intervêm Pedro Hespanha,  Manuela Silva, Pedro Adão e Silva e José Reis. Temos depois "Ciências /  humanidades - grandes esperanças ou ligações perigosas?", com Arriscado Nunes, Cristiana Bastos, Maria da Conceição Ruivo e Maria Irene Ramalho.  O bloco seguinte é sobre "Os novos espaços públicos: identidades e práticas  culturais", e tem a presença de Carlos Fortuna, Alexandre Alves Costa, João Teixeira Lopes e António Sousa Ribeiro. Por fim, com Fernando Ruivo, Helena Roseta, Telmo Caria e Maria Ioannis Baganha, fala-se de "Cidadania  activa, movimentos sociais e democracia participativa". Por aqui se pode  aferir a riqueza deste volume.

 

 2. Mas a grande interrogação aparece no texto final de Boaventura de Sousa Santos: "Porque é tão difícil construir uma teoria crítica?" O ensaio inicial de Scott Lash (que resume algumas das perspectivas mais provocatórias do seu recente livro Another Modernity, A Different  Rationality, Blackwell, Oxford, 1999) responde redondamente que não só é  difícil como é praticamente impossível.

 

Trata-se de um texto muito interessante, na medida em que nos ajuda a  pensar um certo número de transformações que se passam à nossa volta, mas que, dado o espírito de sistematização que o caracteriza, tende a radicalizar  as hipóteses e a torná-las demasiado rígidas. No entanto, o modo como coloca os problemas (num plano mais de teoria cultural do que sociologia tradicional) é francamente estimulante. A pergunta de Boaventura de Sousa Santos ganha aqui uma outra formulação: como é possível a teoria crítica na sociedade de informação?

 

E logo aqui se assinala uma divergência de vulto. Para Sousa Santos, faz  sentido falar em "pós-modernismo", uma vez que ele considera que a grande oposição tenderá crescentemente a ser, não entre o moderno e o  pós-moderno, mas entre o que ele designa como "o pós-moderno de oposição" e o "pós-moderno celebratório". E se isto não é ainda tão visível quanto deveria ser é porque se tem verificado "uma intrigante convergência  entre o discurso de modernistas irredutíveis e o discurso de pós-modernistas  hiperdesconstruídos".

 

Donde, "uma atitude pós-moderna de oposição tem que assentar numa articulação crítica da modernidade com a crítica da teoria crítica da modernidade".

 

Já Scott Lash tem duas razões para justificar o abandono da noção de  "sociedade pós-moderna" (que utilizou durante algum tempo, tendo depois começado a falar em "modernização reflexiva"). Em primeiro lugar, a noção  de "pós-moderno" limita-se a dizer o que vem depois sem encontrar um  princípio para a sua emergência. Em segundo lugar, dá conta apenas da desordem e não da nova ordem emergente.

 

 A noção de "informação" que Lash utiliza parte de uma primeira tese, que tem  consequências radicais: o poder simbólico já não é hoje um poder ideológico,  mas, sim, informacional. Ou por outras palavras: a noção de ideologia já não  parece ser pertinente para dar conta do modo como o poder simbólico se  exerce através da informação. Ora a noção de informação implica fluxos,  descontextualização, compressão espácio-temporal, relações em tempo real.   Tem um carácter imediato de violência simbólica. Ao contrário do discurso  ou da narrativa, não perdura - dispara: tem uma "natureza pré-consciente, ilegítima e não discursiva". Salta sobre qualquer forma de relação triádica (que Scott Lash, por equívoco, apresenta como dualismos). A teoria crítica  moderna podia basear-se na tradição dialéctica alemã, que implicava um               momento transcendente de reconciliação e superação. Ou (na sua vertente  mais pós-moderna) numa tradição do chamado "pós-estruturalismo" que  desemboca numa aporética: indecidibilidade do momento terceiro em que se passa para a transcendência.

 

Mas a informação não sai da pura imanência. Com a informação, desaparecem os transcendentes. Tudo se passa no plano geral da imanência.  Donde, "como é que a teoria crítica funciona nesta imanência geral de  informação, na qual já não existe um exterior? Na qual nada é condição primordial ou transcendente de outra coisa?".

 

 3. Manuel Vilaverde Cabral sente-se manifestamente incomodado com este  tipo de discurso e põe em causa as "teorias", chegando mesmo a propor  "uma crítica das teorias disponíveis feita a partir das aquisições das ciências  sociais existentes, e daquilo que elas produzem de conclusivo", uma vez que, na sua óptica, "toda a boa ciência social será crítica". Nesta perspectiva, só resta a Manuel Vilaverde Cabral o trabalho infinitamente paciente de matizar  todas as afirmações cortantes de Scott Lash, a partir de conclusões que  poderão insinuar que "não é bem assim...". Recorre para efeitos de               pluralização resistente à "diferenciação funcional e à estratificação social da informação", e abre assim frestas para o exercício "ético e heurístico" da  crítica.

 

Francisco Louçã, apoiado sobretudo no jogo de ambivalências de Walter  Benjamin, chega ao que ele chama "a aposta de Pascal", o que envolve um voluntarismo militante face à inclemência dos tempos: "Não sabemos se é  possível uma crítica da informação e receamos que ela seja inacessível - mas queremos criá-la, para impor uma bifurcação que nos permita pensar nós  próprios".

 

Quanto a Boaventura de Sousa Santos, a sua resposta é extremamente pormenorizada e não ilude nenhuma das dificuldades que hoje se levantam. Qual a hipótese de uma Teoria Crítica quando nos confrontamos com a    ressaca das promessas da modernidade não cumpridas, com a apropriação e  indistinção das bases e ícones das posições críticas, com a indefinição da  figura do inimigo, com o domínio do conhecimento-emancipação pelo conhecimento-regulação, com a passagem de uma hegemonia por consenso para uma hegemonia invisível por resignação ou com a generalização de uma  atitude de espera sem esperança? A resposta é também pormenorizada mas baseia-se numa posição de princípio: "O objectivo central é, pois, o de desenvolver teorias, horizontes analíticos e conceptuais que credibilizem esta  atitude crítica sobretudo junto daqueles, presumivelmente muitos, que sentem que as razões da indignação e do inconformismo não estão apoiadas pela  indignação e o inconformismo da razão”.