A objectividade da verdade histórica

  (Adam Schaff, História e Verdade, Lisboa, Ed. Estampa, 1994, pp. 229-253)

 

O historiador vulgar e medíocre que também pensa talvez e que pretende que a sua atitude é puramente receptiva, que se submete ao conhecido, não é de nenhum modo passivo no seu pensamento, traz as suas categorias, ao ver os factos de través...

G. W. F. HEGEL

(Leçons sur la philosophie de I’histoire)

 

O poeta cria o seu mundo arbitrariamente, de acordo com a sua ideia, e por isso pode apresentá-lo de maneira perfeita e acabada; o historiador está limitado, porque lhe é preciso construir o seu mundo de maneira a que se adaptem a ele todos os fragmentos que a história nos trouxe. Assim, não poderá nunca criar uma obra perfeita, transportará sempre as marcas visíveis do esforço das investigações, da recolha e da reunião dos factos.

GOETHES GESPRA ECHE

(Gesprach mit H. Luden)

 
Na primeira parte desta obra, consagrada aos pressupostos gnoseológicos das nossas análises sobre a verdade histórica, distinguimos três acepções do adjectivo «objectivo» empregado para qualificar o conhecimento. Lembremos essas acepções:

1) É «objectivo» o que vem do objecto, ou seja o que existe fora e independentemente do espirito que conhece; portanto, é «objectivo» o conhecimento que reflecte (numa acepção particular desta palavra) este objecto;

2) é «objectivo» o que é cognitivamente válido para todos os indivíduos;

3) é objectivo o que está isento de afectividade e, portanto, de parcialidade.

O adjectivo «subjectivo» designa respectivamente:

1) o que vem do sujeito;

2) o que não possui um valor cognitivo universal;

3) o que é emocionalmente colorido e, por este motivo, parcial.

Comecemos pela primeira acepção da palavra «objectivo». O conhecimento é objectivo, dissemos nós, quando vem do objecto quando constitui um reflexo especifico dele. Para um materialista esta tese é banal; mas as complicações começam a manifestar-se, mesmo para um materialista, talvez mesmo sobretudo para um materialista (para o idealismo subjectivista, o problema não se põe), desde que se encare o papel do sujeito que conhece ou, noutros termos, o papel do factor subjectivo no conhecimento.

Ao apresentarmos os nossos pressupostos gnoseológicos, assinalámos o risco de uma interpretação mecanicista do processo do conhecimento, ou seja do caso em que se concebe o primeiro termo da relação sujeito-objecto como um elemento passivo. E, com efeito, ao longo da nossa análise das determinações do conhecimento histórico, pudemos ver a que ponto uma tal concepção estava errada. O sujeito desempenha um papel activo no conhecimento histórico, e a objectividade desse conhecimento contém sempre uma dose de subjectividade. Senão, esse conhecimento seria a-humano ou sobre-humano.

Apesar do que sugere o qualificativo empregue, o conhecimento objectivo comporta sempre conteúdos que é impossível reduzir apenas ao objecto, mas que estão ligados à qualidade do sujeito dado, determinado historicamente (mais concretamente — socialmente). Se concebemos adequadamente o processo do conhecimento, a última verificação cai sob o senso comum, mas também, na perspectiva desta concepção, não há razão nem para «recearmos» o papel do sujeito, nem para nos encarniçarmos a eliminá-lo artificialmente. De resto, como eliminá-lo, visto que não pode haver conhecimento sem sujeito que conhece; este deve necessariamente estar implicado no processo do conhecimento. O verdadeiro problema consiste em compreender o seu papel, porque é apenas nesta condição que se pode reagir eficazmente contra as deformações potenciais, disciplinar ,de certa maneira o factor subjectivo do conhecimento. Só este objectivo é real na nossa procura do conhecimento que qualificamos objectivo. Como o observa muito justamente H. M. Lynd no seu ensaio sobre a objectividade do conhecimento histórico, quanto melhor sabemos precisar o que o sujeito traz ao conhecimento do objecto, melhor nOS apercebemos do que esse objecto é na realidade.

«Quanto mais conscientes estamos da ordem que reside no nosso método de observação, tanto mais estamos em condições de apresentar claramente qualquer ordem existente no mundo exterior. A precisão a que podemos pretender é acessível apenas na condição de tomar consciência do papel de observador apreendido como elemento do processo de observação: não abstraindo desse observador, mas incluindo-o no cálculo. Mesmo em fisica épreciso tomar em consideração o facto de que a coisa medida éalterada pelo instrumento de medida, e vice-versa. Não há maior obstáculo no caminho que leva á objectividade que a confusão da «subjectividade» com o facto de ter em conta a posição do observador. »

Paul Ricoeur desenvolve e concretiza esta ideia no seu livro Histoire et Vérité. Depois de ter analisado as formas principais do factor subjectivo no conhecimento histórico: juízos de valor em relação com a selecção dos materiais históricos, explicação causal e hierarquização dos diversos tipos de causas históricas, imaginação histórica e factor humano como objecto da história — Paul Ricoeur concretiza a tese segundo a qual o historiador constitui uma parte da história. É isto enfraquecer a objectividade da verdade histórica? De modo nenhum. A objectividade dita pura é uma ficção; o factor subjectivo é introduzido no conhecimento histórico pelo próprio facto da existência do sujeito que conhece. Em contrapartida, há duas subjectividades: a «boa», ou seja aquela que provém da essência do conhecimento como relação subjectivo-objectiva e do papel activo do sujeito no processo cognitivo; a «má», ou seja a subjectividade que deforma o conhecimento por causa de factores tais como o interesse, a parcialidade, etc. A «objectividade» é a distância entre a boa e a má subjectividade, e não a eliminação total da subjectividade.

«. . .A objectividade apareceu-nos primeiramente como a intenção científica da história; marca agora a distância entre uma boa e uma má subjectividade do historiador; de "lógica" a definição da objectividade tornou-se "ética".»

Esta concepção tão simples e ao mesmo tempo tão profunda conduz-nos ao nosso problema principal: como atingir a objectividade do conhecimento histórico ultrapassando a «má» subjectividade?

Trata-se aqui, antes de mais nada, da objectividade na segunda e terceira acepções propostas atrás: da objectividade no sentido de imparcialidade e do valor universal dos juízos.

Comecemos por lembrar uma verdade banal, mas da qual não se tem sempre plenamente consciência: a identificação da objectividade do conhecimento com a imparcialidade total, com a homogeneidade absoluta dos juízos de valor feitos sobre o processo histórico — é um equívoco. Demos momentaneamente a palavra a um dos clássicos da historiografia polaca, Michal Bobrzynski.

«O que é a imparcialidade do historiador de que se fala tanto? Não se pode nunca exigir do historiador a imparcialidade no sentido estrito deste termo. Apenas o facto histórico que o historiador estuda pode ser imparcial. Quanto ao historiador, se quer avaliar esse facto, tem de tomar posição... A posição do historiador pode e deve ser científica, pode ser elevada e cada vez mais elevada, mas será sempre uma posição, um ponto de vista. O seu sucessor, que subirá a uma posição ainda mais elevada, terá um horizonte mais largo, fará um juízo mais imparcial e mais fundado, mas, por sua vez, encontrará alguém para o ultrapassar. O historiador que aspirasse ao impossível, quer dizer que desejasse ser absolutamente imparcial e não tomar nenhuma posição, parecer-se-ia com o homem que vagueia numa floresta, esbarra contra as árvores, toca-as, cheira-as, vê os seus troncos e raízes, mas não consegue aperceber-se de uma coisa, da própria floresta.

O que nós chamamos a imparcialidade do historiador, no sentido positivo e favorável deste termo, são unicamente os esforços que desenvolve para guardar as distâncias, nos seus juízos, em relação às finalidades estranhas à verdade histórica, à sua convicção científica... Esta obrigação é a mais dificil... Do mesmo modo, o que definimos como a imparcialidade do historiador, é apenas a tentativa sincera, coroada de um êxito maior ou menor. Um saber profundo, um bom método de estudo e um trabalho perseverante ajudam o historiador nesta tentativa, mas o êxito desta nunca é completo, porque o historiador é sempre um homem.»

Para voltar às palavras de Paul Ricoeur, há pois duas subjectividades: a que está naturalmente ligada ao papel activo do sujeito no conhecimento e não pode, por este motivo, ser inteiramente eliminada, apesar dos seus efeitos particulares poderem ser transpostos no processo infinito do aperfeiçoamento do conhecimento; assim como a subjectividade que provêm de fontes extracientíficas, como o interesse pessoal, a animosidade em relação a uma pessoa, os preconceitos contra certos grupos humanos, nacionais, étnicos ou sociais por exemplo. Apesar destes dois tipos de subjectividade não estarem rigorosamente delimitados e se interpenetrarem, é no entanto possível e necessário distinguir a subjectividade extracientífica, «má», resultante de certa maneira da vida quotidiana, pedindo — como o faz P. Ricoeur — que o historiador aborde os acontecimentos históricos sine ira et studio. Este postulado é claro e simples, apesar da sua realização não ser nada fácil e se reduza na prática a um processo. Mas o mais complicado é o problema da subjectividade dita «boa», ou seja daquela que está pela sua natureza ligada ao papel activo do sujeito no conhecimento.

O historiador — sujeito que conhece — é um homem como qualquer outro e não pode libertar-se das suas características humanas: não é capaz de pensar sem as categorias de uma língua dada, possui uma personalidade socialmente condicionada no quadro de uma realidade histórica concreta, pertence a uma nação, a uma classe, a um meio, a um grupo profissional, etc., com todas as consequências que tudo isto implica no plano dos estereótipos que aceita (inconscientemente, em geral), da cultura de que é ao mesmo tempo uma criação e um criador, etc. Se se juntarem a isso os factores biológicos e psicossomáticos que constituem um poderoso agente de diferenciação individual, obtemos uma quantidade de parâmetros possuindo, além disso, uma estrutura complicada e cuja resultante define o indivíduo como sujeito no processo do conhecimento. É evidente que obtemos assim uma especificidade individual e a especificidade de certas classes de indivíduos que, além das diferenças individuais, possuem certos traços comuns podendo ser extrapolados como traços colectivos. Se a objectividade do conhecimento devesse significar a exclusão de todas as propriedades individuais da personalidade humana, se a imparcialidade devesse consistir em fazer juízos de valor renunciando ao seu próprio ponto de vista e ao seu sistema de valores, se o valor dos juízos universais devesse consistir na eliminação de todas as diferenças individuais e colectivas, a objectividade seria pura e simplesmente uma ficção, porque implicaria que o homem fosse um ser sobre-humano ou a-humano.

Mas a objectividade do conhecimento histórico, no sentido da sua imparcialidade e, portanto, do seu valor universal, não se reduz, como o queria Bobrzynski, apenas aos esforços do historiador com o objectivo de «guardar as suas distâncias em relação às finalidades estranhas à verdade histórica e à sua convicção científica». Este cepticismo é excessivo e explica-se aliás pelo estado da teoria do conhecimento na época em que esta opinião foi formulada. Hoje, sabemos que o factor subjectivo no conhecimento do historiador não é redutível apenas à intervenção de fins extracientíficos: é inerente ao próprio conhecimento científico, às suas múltiplas determinações sociais. O verdadeiro problema, o problema mais interessante, pelo menos, consiste precisamente em estudar as condições e os meios que permitem ultrapassar esta forma da subjectividade; ultrapassagem que só pode ser um processo.

O trabalho do historiador, como o diz H. Pirenne, é ao mesmo tempo uma síntese e uma hipótese: uma síntese na medida em que o historiador tende a reconstituir a totalidade da imagem a partir do conhecimento dos factos particulares; uma hipótese na medida em que as relações estabelecidas entre esses factos não são nunca absolutamente evidentes nem verificáveis. Seria mais indicado dizer que a produção do historiador é uma síntese hipotética, porque os dois aspectos do trabalho do historiador — a síntese e a hipótese — só podem ser distinguidos pela abstracção; na realidade, constituem uma unidade. Sublinhar o carácter hipotético dos resultados do trabalho do historiador, é apreender noutros termos o papel que desempenha o factor subjectivo neste trabalho.

Pirenne atribui o carácter hipotético das relações estabelecidas entre os factos a diversas causas, mas estas exprimem todas a influência do factor subjectivo sobre o conhecimento histórico: os fundamentos teóricos, o conhecimento da realidade social e das suas leis, a imaginação criadora, a compreensão das condutas humanas, etc. É o que faz com que cada historiador apreenda à sua maneira os mesmos materiais históricos. Nestas condições será possível superar a influência do factor subjectivo? A resposta é sim, se se tem em conta o carácter cumulativo do saber que se enriquece acumulando verdades parciais.

«Cada autor esclarece um elemento, põe em relevo alguns traços, considera certos aspectos. Quanto mais numerosas são estas contribuições, estas apreciações, tanto mais a realidade infinita se liberta dos seus véus. Todas estas apreciações são incompletas, todas são imperfeitas, mas todas contribuem para o progresso do conhecimento.»

A solução consiste pois em passar do conhecimento individual ao conhecimento considerado como um processo social. O conhecimento individual é sempre limitado e agravado pela influência do factor subjectivo; verdade parcial, só pode ser relativa. Em contrapartida, o conhecimento considerado à escala da humanidade, concebido como um movimento infinito consistindo em ultrapassar os limites das verdades relativas pela formulação de verdades mais completas, mais cheias, é um processo tendendo para o conhecimento integral. Esta «receita» indica como dominar o factor sujectivo num processo infinito de aperfeiçoamento social do saber e coincide com as teses desenvolvidas por Engels sobre a verdade relativa e absoluta, no Anti-Dühring. O mesmo tema de pensamento reaparece em K. R. Popper que sublinha igualmente a necessidade de nos situarmos ao nível social com vista a resolver o problema da objectividade do conhecimento: esta objectividade pode ser garantida apenas pela colaboração de numerosos cientistas (a objectividade do conhecimento equivale à intersubjectividade do método científico) e por uma crítica científica consequente que permite o progresso constante do conhecimento.

Assim, é possível superar a acção deformante do factor subjectivo no e pelo processo social do progresso da ciência, na e pela acumulação de verdades parciais. Isto não significa no entanto que seja impossível ultrapassar os limites do conhecimento do indivíduo: a ontogénese científica de um dado cientista pode também ser considerada como processo. Foi particularmente por este problema que Mannheim se interessou na sua sociologia do conhecimento.

A acção do sujeito sobre o conhecimento é inevitável: eliminar o sujeito da relação cognitiva é suprimir esta última. A conclusão torna-se então evidente; se a tendência para a objectividade do conhecimento não pode consistir na eliminação do factor subjectivo, deve ser realizada por e na superação do factor subjectivo, das suas manifestações concretas e das deformações que introduz; superação que constitui necessariamente um processo infinito. Donde o descontentamento daqueles que queriam um resultado tendo o valor de uma verdade absoluta, sem ter em conta o facto de que esta não é acessível senão sob a forma de um movimento infinito em direcção a ...; donde, por outro lado, o optimismo daqueles que, ao considerarem o progresso do saber humano como uma acumulação de verdades parciais, vêem uma nova fase deste progresso em cada superação de um dos limites do conhecimento. O único meio de dominar a acção deformante do factor subjectivo é tomar consciência da sua natureza e da sua acção. Quanto mais conhecemos os conteúdos e as modalidades da intervenção do sujeito no conhecimento, melhor conhecemos, quantitativa e qualitativamente, as propriedades do objecto. A nossa situação é análoga à do fisico que, conhecendo as interferências entre o objecto físico a medir e o instrumento de medida, pode introduzir as correcções que se impõem, eliminando ou reduzindo o erro ao mínimo.

Tal é, em resumo, a base da concepção de Mannheim sobre a «tradução e a síntese das perspectivas». Do mesmo modo que, conhecendo as regras da perspectiva geométrica (espacial), estamos sempre em condições de colocar a imagem noutra perspectiva, de ver o objecto doutro ponto de vista, se bem que se trate sempre de uma certa perspectiva e de um certo ponto de vista e, multiplicando essas perspectivas e esses pontos de vista, de obter uma visão do objecto mais completa, mais global; assim, nos outros domínios, podemos fazer progredir o nosso saber. Evidentemente, é indispensável conhecer o que rege as perspectivas e as modalidades da sua «tradução», da passagem de um ponto de vista que nos mostra um aspecto, uma visão do objecto, para um outro ponto de vista a partir do qual veremos outro aspecto, etc. Este conhecimento das «perspectivas», das «fórmulas da sua tradução e da sua síntese», necessariamente objectivo, está fundado no nosso caso preciso no conhecimento das propriedades do sujeito que conhece, modalidades segundo as quais realiza o acto do conhecimento e do que traz a esse acto por e nas suas operações cognitivas; noutros termos, é indispensável conhecer o instrumento (o agente) do conhecimento, os seus parâmetros e as modalidades da sua acção sobre o objecto estudado. Se a tarefa está relativamente facilitada no caso de um instrumento utilizado na física, é consideravelmente mais complicada e mais penosa quando se trata de «medir» a incidência do aparelho perceptivo do homem sobre a imagem do objecto apercebido, sobre a perspectiva da percepção; é infinitamente mais complicada ainda e mais delicada quando se trata de apreciar o papel activo do sujeito que conhece, a influência do factor dito subjectivo sobre o conhecimento da realidade social variável.

Se a tarefa é tão difícil e complexa, a ponto de poder parecer impossível, é antes de mais nada porque o número de parâmetros é muito maior que no caso das medidas físicas ou no da simples percepção visual; além disso, o objecto estudado muda no próprio decurso do conhecimento. Tal é, em especial, a razão por que é impossível, neste domínio, codificar quaisquer regras em vista da «tradução e da síntese das perspectivas»; é impossível estabelecer previamente as modalidades de superação das diferentes manifestações da deformação cognitiva, engendradas pela acção do factor subjectivo. Com efeito, não se sabe antecipadamente o que serão esses factores, o seu número e a sua acção em condições dadas; é pois impossível prever a maneira de os superar. Podemos unicamente formular a tese geral segundo a qual é preciso antes de mais nada tomar consciência da situação geradora de deformações e descobrir o factor que a determina. A partir dessa tese geral, é possível construir uma doutrina metodológica adequada sobre o comportamento cognitivo a adoptar tendo em vista remediar o mal. Era precisamente o fim que perseguia Mannheim na sua doutrina sobre «a tradução e a síntese das perspectivas» e na sua teoria sobre a intelligentsia como grupo vector de uma função cognitiva particular. Estas proposições constituem um dos principais méritos teóricos de Mannheim, mérito inegável não obstante as fraquezas e os erros da sua sociologia analisados ulteriormente.

A directiva: «Tomai consciência do factor subjectivo que introduzis no conhecimento, e do perigo de deformação cognitiva que isso significa» pode parecer ingénua; não será um voto piedoso? Com efeito, como podemos aperceber-nos dos nossos próprios limites cognitivos e superá-los em seguida, visto que, como resultado das determinações sociais, os pontos de vista escolhidos parecem ser «naturais»? No entanto, esta ingenuidade é apenas aparente, porque esta directiva, como algumas outras teses da sociologia mannheimiana do conhecimento, possui um valor gnoseológico e epistemológico apreciável; a sua realização não é um simples voto piedoso, votado antecipadamente ao falhanço, visto que esta directiva provém do conhecimento de certas regularidades do processo cognitivo.

A intervenção de factores deformantes no conhecimento é um facto do qual os filósofos têm há muito tempo consciência: já Bacon o formulava teoricamente na sua concepção do «ídolo». O mérito do marxismo consiste principalmente, neste domínio, em ter posto em evidência as implicações teórico-gnoseológicas deste problema na teoria da infra e da superestrutura, assim como na teoria da ideologia. A sociologia contemporânea do conhecimento situa-se neste quadro de ideias que desenvolve e concretiza. E é precisamente o facto teórico que consiste em reconhecer que o condicionamento social do conhecimento humano e a acção deformante do factor subjectivo são regularidades — e não fenómenos fortuitos — que é o ponto de partida das operações que visam superar constantemente as formas concretas sucessivas sob as quais se manifestam os limites e as deformações do conhecimento.

O ponto de partida não é aqui o aspecto individual, mas — pelo contrário — o aspecto social do processo do conhecimento. A aparência de ingenuidade das directivas da sociologia do conhecimento pode precisamente tornar-se uma realidade quando sem fundamento se situa este problema a nível estritamente individual. Com efeito, neste caso, estamos autorizados a fazer a pergunta: «Como se pode ter consciência da acção do factor subjectivo, visto que essa acção, no contexto do condicionamento social do conhecimento individual, é tal que se verifica na nossa experiência interior, como um factor objectivo?»

O sujeito que conhece, socialmente condicionado e portador do factor subjectivo no conhecimento, não é um átomo isolado, semelhante à «mónada sem janelas» de Leibniz, hermética a toda a acção exterior. Pelo contrário, determinado pelo seu meio, é igualmente determinado pela ciência contemporânea, na medida, evidentemente, em que é suficientemente instruído. E é precisamente por esse canal que, o mais naturalmente do mundo, penetram igualmente na consciência do sujeito que conhece as informações sobre o factor subjectivo no conhecimento e sobre o seu papel deformante. É por essa razão que nós dizemos da sociologia do conhecimento que realizou uma verdadeira revolução no domínio teórico-gnoseológico.

O total de conhecimentos, graças ao qual o homem contemporâneo considera como evidentes numerosas descobertas e invenções revolucionárias, não é uma aquisição individual mas social. Esta asserção diz respeito igualmente à consciência cada vez mais generalizada de o nosso conhecimento estar submetido às determinações mais diversas que, se não implicam a deformação absoluta do conhecimento, implicam pelo menos o seu carácter unilateral, parcial, limitado, implicam por conseguinte o facto de que as verdades atingidas nesse conhecimento não são totais e definitivas, absolutas (com excepção de um domínio relativamente restrito do conhecimento onde as verdades parciais absolutas são acessíveis), mas limitadas, parciais, relativas (inclusive as verdades parciais absolutas quando se consideram num contexto mais vasto). Os efeitos psicológicos deste «metaconhecimento» são consideráveis: desconfiança relativamente às pretensões, qualquer que seja o seu autor, ao conhecimento absoluto, «puramente» objectivo; tendência para analisar este conhecimento a fim de lhe descobrir os limites; tolerância aumentada relativamente às opiniões divergentes que não se devem identificar com a vontade de renunciar à defesa das suas próprias posições, mas com a «boa fé», a vontade de reconhecer as verdades relativas contidas nas ideias do adversário. Tudo isto constitui precisamente a «bagagem» intelectual do homem contemporâneo, em particular da intelligentsia, «bagagem» destinada às operações que visam superar o factor subjectivo e que autoriza um certo optimismo quanto aos resultados obtidos. Evidentemente, esta superação nunca será absoluta: visa sempre uma manifestação concreta do factor subjectivo, uma limitação concreta do conhecimento, e não a acção em geral do factor subjectivo, ou o conjunto das parcialidades e limites do conhecimento.

Esta superação da acção deformante do factor subjectivo é um processo social, e isto por duas razões: a primeira é que a tomada de consciência pelo sujeito que conhece do carácter limitado e socialmente condicionado do seu conhecimento é de origem social, porque a consciência teórica deste estado de coisas é trazida «do exterior», como saber socialmente constituído que o sujeito assimila na e pela educação, pela instrução; a segunda razão é que o processo em questão, a superação da acção do factor subjectivo, é ele próprio social na medida em que implica a cooperação dos homens de ciência, em particular a crítica científica. Este último problema não se reduz no entanto ao simples facto de que outra pessoa — o critico — perceba e supere os limites e as deformações das opiniões da pessoa criticada; apesar deste facto ser o mais frequente. Mas, o que nos interessa aqui principalmente, é a autocrítica, a auto-reflexão sobre os limites do seu próprio conhecimento, a capacidade para superar por si próprio a acção deformante do factor subjectivo. Este problema, particularmente importante para a procura da objectividade do conhecimento, é precisamente o objecto da teoria da «tradução» e da síntese das perspectivas», das directivas respectivas da sociologia mannheimiana do conhecimento.

O sujeito que conhece, o historiador no nosso caso, está portanto dependente das determinações sociais mais diversas, em função das quais introduz no conhecimento elementos de subjectividade diversos: preconceitos, opiniões preconcebidas, predilecções e fobias, os quais caracterizam a sua atitude cognitiva. Mas o seu conhecimento é sobretudo função de outros factores, igualmente determinados socialmente, tais como: a sua visão da realidade social, ligada à teoria e ao sistema de valores que aceitou; o seu modo de articulação da realidade, articulação que o leva a construir, a partir de fragmentos, factos significantes no sistema de referência dado; a sua tendência para esta ou aquela selecção dos factos históricos, ou seja dos factos considerados como importantes do ponto de vista do processo histórico, etc. Desta propriedade objectiva que é o condicionamento social do conhecimento, não pode o sujeito que conhece desfazer-se; não pode escapar-lhe simplesmente porque é um homem e porque a personalidade humana só se pode desenvolver em sociedade, pelas diversas mediações sociais das quais a mais importante é a educação. Mas se não se pode desfazer desta propriedade, inerente de certa maneira à sua «essência», o sujeito que conhece pode tomar consciência dela, compreender que ela é indissociável de todo o conhecimento. Não só pode, mas, em certas condições, quando o saber respectivo foi adquirido e socialmente generalizado, deve fazê-lo, sob pena de ver desqualificado o nível da sua reflexão científica.

O cientista (o intelectual) pode ser e é em geral permeável às fobias, aos preconceitos, aos modelos de interpretação e de avaliação dos factos e dos homens, características da sua época, da sua classe, do seu grupo social, do seu meio profissional, etc. Todos estes factores moldam essencialmente a sua concepção do mundo, as suas atitudes e as suas opiniões em matéria de problemas sociais, o que impregna portanto a sua visão do processo histórico, o modo como constrói e selecciona os factos históricos, sem falar da sua interpretação quando passa às sínteses históricas. Tais são os conteúdos concretos que se escondem sob o criptónio «o factor subjectivo no conhecimento histórico».

Concordamos pois que a intervenção deste factor no conhecimento histórico é inelutável, se bem que as suas formas sejam das mais variadas. Mas pesa irremediavelmente um fatum sobre o historiador que foi condicionado por estas ou aquelas determinações sociais? A personalidade do historiador, uma vez formada, será necessariamente imutável, estática, congelada de uma vez por todas? A limitação das suas opiniões, resultado do factor subjectivo dado a que está sujeito, poderá ser superada apenas pela crítica científica formulada exclusivamente por outros pensadores, sobretudo por aqueles que representam pontos de vista diferentes, determinados por outros condicionamentos sociais, tais como uma mudança das condições gerais da época ou dos interesses divergentes de classe?

Todas estas questões são retóricas, e a resposta é evidentemente negativa. Sabemos por experiência que o homem é um ser maleável, apto a transformar-se, a adaptar-se, a evoluir conscientemente. É de resto nesta capacidade que consiste principalmente a sua superioridade sobre o mundo animal. Sabemos por experiência que os pontos de vista teóricos são maleáveis, modificáveis, e que os pensadores são muitas vezes capazes não apenas de fazer «retoques» mais ou menos importantes nas suas opiniões, o que é absolutamente normal (quanto mais não fosse em função do saber e da experiência acumulados com a idade), mas também de modificá-las em profundidade, de proceder a uma critica científica que pode levá-los a abandonar as opiniões professadas anteriormente. Um dos poderosos motores da autocrítica científica, que deveria caracterizar em permanência a obra do cientista e ser a garantia da sua vitalidade, é a consciência do condicionamento social e das limitações subjectivas do conhecimento; consciência que, sensível em primeiro lugar sob a sua forma teórica geral, conduz em seguida o cientista a pôr em questão a sua própria obra, a uma reflexão mais sistemática sobre o condicionamento social das suas próprias posições, sobre os limites e as deformações eventuais dos seus próprios pontos de vista sob o efeito do factor subjectivo. Evidentemente, isto não é uma panaceia, e esta consciência teórica, este metaconhecimento no domínio da sociologia do conhecimento não garante de maneira nenhuma que a acção do factor subjectivo seja superada até ao fim. Seria demasiado simples: bastaria difundir entre os cientistas os ensinamentos da sociologia do conhecimento para que reinasse na ciência a verdade objectiva «pura», que sabemos por outro lado ser impossível. Não se trata pois aqui de procurar fazer milagres, mas de obter efeitos reais no progresso do saber, o que encontra a sua expressão no postulado do progresso da objectividade do conhecimento. Este progresso não é apenas possível, mas efectivo na prática científica, numa prática secundada pela auto-reflexão metodológica que desperta e alimenta a sociologia do conhecimento. Dirigido ao cientista em geral, ao historiador em particular, pode pois formular-se o postulado realista de uma investigação da objectividade do conhecimento, no sentido de um processo visando superar as influências limitativas, coercivas e deformantes do factor subjectivo. Damos a este postulado uma dupla interpretação: a primeira, mais «primitiva», consiste em considerar o pedido de escrever a história sine ira et studio como um apelo para passar além das animosidades e dos interesses extracientíficos que contrariam a verdade histórica; a segunda, mais subtil e complicada, reduz-se a pedir ao historiador para proceder a uma auto-reflexão sobre o condicionamento social dos seus pontos de vista, como meio de transportar as influências limitativas e deformantes do factor subjectivo.

Mas como conciliar esta exigência de superar as influências do factor subjectivo no processo social do conhecimento com o princípio de uma tomada consciente de posições de classe no estudo dos fenómenos sociais?

A coisa é relativamente simples quando o postulado da superação da acção do factor subjectivo é acompanhado da asserção sobre o condicionamento de classe do conhecimento dos fenómenos sociais. O condicionamento de classe do conhecimento é com efeito uma das manifestações do factor subjectivo, e é especialmente porque esse condicionamento se produz que somos levados a postular a superação da acção desse factor na nossa marcha para degraus superiores do conhecimento objectivo. A situação é muito mais complicada quando — simultaneamente — se postula a superação do factor subjectivo no processo infinito da progressão do saber, por um lado, e que se assenta no princípio de tomar posições de classe no estudo dos fenómenos sociais, por outro lado, ou seja a exigência consciente de deixar o factor subjectivo manifestar-se plenamente. Nesta posição teórica dos marxistas, visto que são precisamente eles que reconhecem estas duas necessidades, não se desenhará uma contradição? Na minha opinião, a contradição é só aparente: provém da forma insuficientemente concreta e precisa do enunciado sobre a necessidade de tomar conscientemente as posições de classe no estudo das realidades sociais.

É incontestável que o progresso realizado no domínio do conhecimento, progresso que podemos apresentar igualmente como um aumento da objectividade do conhecimento, é função da superação dos factores limitando essa objectividade, causando a unilateralidade ou a parcialidade do conhecimento, até mesmo a sua deformação. É preciso admitir que o conhecimento objectivo só pode ser um amálgama do que é objectivo e do que é subjectivo, dado que o conhecimento é sempre obra de um sujeito; mas é preciso também admitir que o progresso no conhecimento e a evolução do saber adquiridos graças a ele só são possíveis se se transpõem as formas concretas, sempre diferentes, do factor subjectivo. O condicionamento de classe do conhecimento obedece à mesma regra: as formas de deformação, de parcialidade, de limitação do conhecimento que esse condicionamento origina, devem ser transpostas no processo de progressão do saber, sob pena de estagnação e petrificação.

Tal é o ponto de partida das nossas análises e assim deve sê-lo se não se quer ser levado a enunciar — caindo em contradição com os fundamentos da gnoseologia marxista — que qualquer conhecimento incluindo pois o conhecimento condicionado pelos interesses de classe do proletariado, é um conhecimento perfeito, é uma verdade absoluta. Mas se é assim, que significa o principio de adoptar posições de classe no estudo dos fenómenos sociais, de fazer prova de espírito de partido; como conciliar esse princípio com a luta para a objectividade do conhecimento?

Observemos em primeiro lugar que se trata de um enunciado elíptico, ou seja de uma proposição que não contém todas as definições e os parámetros necessários, levando a eventuais equívocos pelo facto da sua formulação aparentemente universal e supratemporal. Vejamos, com efeito, como é formulada esta directiva: «Se desejam chegar nos vossos estudos à verdade objectiva, adoptem conscientemente as posições de classe e um espírito de partido conformes aos interesses do proletariado.» O que é que isto significa? Que queremos dizer com isto e o que é que não queremos dizer?

Em primeiro lugar, enunciamos uma directiva que não é universal, não é supratemporal, mas concretamente histórica, se bem que isso não esteja estipulado expressis verbis. O nosso raciocínio é o seguinte: cada conhecimento está socialmente condicionado; numa sociedade de classes, o conhecimento sofre necessariamente um condicionamento de classe. É ilusório esperar evitar o condicionamento social, porque o sujeito que conhece é um produto social (numa acepção determinada da palavra «produto»); portanto, numa sociedade de classes, este sujeito é um «produto» submetido ao determinismo de classe. Nessa situação, a única solução é a escolha entre os condicionamentos de classe possíveis, e não a tentativa de lhes escapar em geral. Do ponto de vista da objectividade do conhecimento (na sua única concepção real, ou seja como objectividade relativa e não absoluta), a solução óptima é adoptar as posições determinadas pelos interesses de classe do proletariado, da classe revolucionária. O condicionamento pelos interesses da classe revolucionária não conduz às deformações conservadoras; subentende, pelo contrário, uma atitude aberta ao progresso social e à mudança. Depois deste raciocínio necessariamente reduzido ao essencial, vemos que a nossa directiva está concretamente ligada a uma situação social histórica, à sociedade de classes do tipo capitalista. Trata-se pois de uma directiva que tem em conta o grau de verdade do conhecimento condicionado pelas posições de uma ou de outra classe; portanto, provém do princípio que a verdade é relativa e não absoluta.

Em segundo lugar, a directiva recomendando a adopção das posições de classe do proletariado, consideradas como as posições óptimas cognitivamente na situação social dada, não implica de maneira nenhuma que se julgue o conhecimento assim atingido como perfeito, integral, e a verdade que ele contém — como absoluta. Sabemos que se passa de outra maneira. Mesmo se constitui o maior êxito do espírito humano nas condições dadas (falamos do modelo e não da realização que, em geral, se afasta consideravelmente dele), o conhecimento submetido ao condicionamento de classe impregnado, evidentemente, do factor subjectivo é apenas uma verdade relativa que, desde o momento em que o conhecimento se eleva a um nível superior, deve ser superada. Assim, em relação ao conhecimento condicionado pelos interesses das outras classes, as posições de classe do proletariado asseguram, em certo sentido, a superioridade do conhecimento empreendido a partir delas e na sua perspectiva; mas este conhecimento não será nunca perfeito, a sua verdade não será nunca absoluta. De onde a necessidade de tender continuamente para um conhecimento mais integral, mais rico e, neste sentido, superior.

Não há pois contradições entre as duas directivas mencionadas atrás. Neste caso, porque pareciam contraditórias, de onde vem o mal-entendido? Vem principalmente do facto que nós somos induzidos em erro por uma formulação que situa no mesmo plano e associa directamente uma directiva autenticamente universal e supratemporal, por um lado, e uma directiva concretamente histórica, relativa a um tipo definido de relações sociais, por outro lado. De um lado, o postulado de aperfeiçoar o conhecimento, de caminhar para uma objectividade óptima pela e na superação do factor subjectivo, equivale efectivamente a urna directiva universal, supratemporal: o conhecimento é um processo infinito ao longo do qual se podem transpor os seus limites concretos, aparecidos num dado momento, mas não se podem superar todos os seus limites, o que significa ir ter ao termo final de uma coisa que, pela sua essência, é infinita. Por outro lado, a recomendação de adoptar as posições de classe do proletariado é uma directiva concretamente histórica, ligada a um sistema dado de relações sociais. A formulação geral desta segunda directiva, a sua associação directa com a primeira directiva universal sobre a condição fundamental do progresso do conhecimento em todas as situações sociais; tais são as razões pelas quais tínhamos a impressão errada de se tratar de duas directivas igualmente universais e supratemporais, o que sugeria uma contradição.

Quando dizemos a um homem de ciência: «Se, nas condições do capitalismo, quereis chegar ao conhecimento objectivo, quando estudais as realidades sociais, é-vos preciso adoptar conscientemente as posições de classe do proletariado», de maneira nenhuma afirmamos com isso que essa via leva à verdade absoluta; pretendemos apenas que as ditas posições são um melhor ponto de partida e uma melhor perspectiva na procura da verdade objectiva, decerto relativa, mas optimamente integral, optimamente completa em relação ao nível de desenvolvimento do saber humano dado. Não damos portanto a este cientista nenhuma garantia; indicamos-lhe apenas as possibilidades de êxito, asseguramos-lhe que pode deste modo chegar à verdade, não absoluta, mas relativa. E é por isso que não lhe sugerimos o considerar o conhecimento adquirido como um ideal, como o conhecimento perfeito; precisamos que se trata unicamente de um patamar no desenvolvimento do saber, patamar depois do qual será preciso transpor outro, graças, particularmente, à consciência da necessidade desta marcha de limite em limite.

Quando, na sua polémica com Strouvé, Lénine faz o elogio do espírito de classe e de partido no conhecimento histórico, dizendo especialmente que o materialista que adopta as posições de uma classe definida realiza mais plenamente o objectivismo do conhecimento do que o «objectivista», não está de maneira nenhuma em contradição com a directiva de visar a verdade objectiva na ciência, a superação dos limites que são obstáculo a esta objectividade, cujos limites estão em relação com o conhecimento de classe das perspectivas cognitivas. Apesar das aparências, Lénine não identifica aqui o «espírito de partido» das posições tomadas (o que recomenda) com a objectividade do conhecimento sem mais nada. Diz simplesmente (como resulta do contexto) que a posição «de partido» que toma em consideração a estrutura de classes da sociedade dá como resultado uma verdade objectiva de uma ordem superior (implicando que se trata sempre de verdades relativas, diferentes do ponto de vista do grau de adequação da representação em relação à realidade representada), comparada com a posição que ignora esta estrutura e a sua acção, pretendendo deste modo à qualidade de conhecimento «objectivista».

Interpenetram-se aqui duas questões que se impõe nitidamente distinguir. Uma é de carácter verbal, terminológico, e deve ser explicada a fim de evitar eventuais mal-entendidos. Porque emprega Lénine relativamente a Strouvé o nome de «objectivista» num sentido pejorativo, quando considera a objectividade do conhecimento como uma coisa positiva, afirmando especialmente que os materialistas aplicam precisamente o objectivismo melhor que os outros? O equívoco vem do facto de Lénine usar a palavra «objectivista» não em relação àqueles que realizam realmente o objectivismo cognitivo, mas àqueles que aspiram à objectividade pelo facto de recusarem o princípio do condicionamento de classe do conhecimento. Na realidade, fazendo abstracção da estrutura de classes da sociedade, estes últimos introduzem o subjectivismo no conhecimento, falseiam a objectividade do conhecimento. Assim, o sentido pejorativo em que Lénine emprega a palavra «objectivista» não significa que ele censure a tendência do conhecimento para a objectividade (pelo contrário, aprova-a); este cambiante pejorativo significa na realidade que Lénine condena as tentativas visando camuflar o subjectivismo cognitivo de classe atrás de frases ocas sobre a verdade objectiva que se pretende defender excluindo o factor subjectivo ligado à estrutura objectiva da sociedade. O mal-entendido é tanto mais compreensível quanto, no texto de Lénine, as palavras «objectivista» e «objectivismo» estão juntas, quando funcionam em significados muito diferentes, apesar da sua origem etimológica comum.

Depois de ter precisado o aspecto terminológico dos enunciados de Lénine, passemos à sua substância. Na altura da crítica de Strouvé, Lénine estabeleceu uma distinção entre o ponto de vista do marxista e o ponto de vista de um objectivista do tipo de Strouvé. O objectivista limita-se a verificar o processo histórico dado e a sua necessidade, além disso com o risco de desviar e de cair numa apologia sensaborona dos factos observados. Pelo contrário, o marxista estuda concretamente a formação dada e as forças sociais em presença; não verifica apenas as «tendências históricas invencíveis», mas «as classes definidas que determinam o conteúdo do regime». E Lénine conclui:

«Assim pois o materialista é, por um lado, mais consequente que o objectivista; o seu objectivismo é mais profundo, mais completo... Por outro lado, o materialismo supõe de certa maneira o espírito de partido; obriga-nos, em qualquer apreciação de um acontecimento, a conservarmo-nos abertamente e sem equívoco no ponto de vista de um grupo social determinado.»

Assim, por um lado, não há oposições entre a directiva do espírito de partido e a directiva da procura da objectividade da verdade; por outro lado, só se pode fazer um juízo negativo contra os «objectivistas», ou seja contra aqueles que pretendem que a negação do carácter de classe do conhecimento contribui para a objectividade deste. Já expusemos uma das razões deste juízo negativo; por detrás da camuflagem das palavras sobre a objectividade que, por assim dizer, seria alterada se se lhe reconhecesse o condicionamento de classe, dissimula-se na realidade um subjectivismo cognitivo, negando dogmaticamente as realidades sociais, deformando o conhecimento dos fenómenos sociais. A outra ideia contida neste juízo negativo merece igualmente ser posta em relevo. Como se sabe, a objectividade do conhecimento realiza-se no processo de superação dos seus limites ligados à acção do factor subjectivo sob as suas formas e nas suas manifestações mais diversas. Um dos meios desta superação é a auto-reflexão que permite ao investigador tomar consciência das formas do factor subjectivo que actuam no caso concreto, e depois vencer a sua influência. Deste ponto de vista, a diferença é considerável entre o pensador que percebe a influência da estrutura de classe da sociedade sobre o conhecimento, e o «objectivista» que, negando essas realidades, não está à altura de compreender o mecanismo do seu funcionamento. O primeiro está evidentemente mais apto que o «objectivista» para tomar consciência da sua situação cognitiva e para superá-la. O primeiro não só conhece melhor a realidade social (e, neste sentido, «o seu objectivismo é mais profundo, mais completo»), mas ainda tem melhores possibilidades de continuar a desenvolver o seu valor.

Para concluir: não só a teoria marxista não implica contradições entre a directiva do aperfeiçoamento da objectividade do conhecimento e a directiva de adoptar posições de classe, um espírito de partido, mas ainda o marxista, tendo como objectivo a verdade objectiva, realiza-se através da superação dos seus limites cognitivos, inclusive dos limites ligados ao ponto de vista da classe que adopta. Por mais paradoxal que isto pareça à primeira vista, a directiva de adoptar as posições de classe nos seus trabalhos, longe de o incomodar, ajuda-o pelo contrário. Em todo o caso, a dominante para o investigador marxista, o seu objectivo final, permanece sempre a verdade objectiva, e tudo o resto constitui unicamente o meio servindo para atingir este fim. Como escreve Marx:

«O primeiro dever de quem quer que procure a verdade não éo de avançar directamente à verdade, sem olhar nem à esquerda nem à direita? Não me esquecerei de dizer a própria coisa quando me é preciso esquecer ainda menos de a dizer nas formas pedi-das? A verdade é tão pouco discreta como a luz. Aliás com quem o seria ela? Com ela própria? Verum judex sui et falsi. (A verdade é o seu próprio critério, e o critério do falso — Espinosa.) Portanto com o erro?»

A verdade atingida no conhecimento histórico é uma verdade objectiva relativa. Todo o decorrer do nosso raciocínio visava até aqui demonstrá-lo. O subjectivismo especula sobre esta relatividade, confundindo o problema da verdade objectiva com o problema da verdade absoluta. Já falámos disso no princípio deste livro, mas a importância da questão é tal que se impõe voltar a ela neste novo contexto.

Comecemos por uma tese geral: a concepção da verdade relativa objectiva apresentada nos nossos desenvolvimentos difere e, num certo sentido, opõe-se à concepção da relatividade objectiva que defendem os partidários do presentismo na metodologia da história. Para ver em que consiste esta concepção da relatividade objectiva, damos a palavra a J. H. Randall, um dos seus principais partidários.

«O historiador deve fazer uma escolha. Na infinita variedade das referências que descobrem os acontecimentos passados, deve escolher aquelas que são importantes ou fundamentais para a sua história particular. Se essa escolha não se deve fundar unicamente no que lhe parece importante; se não deve ser "subjectiva" e "arbitrária", é preciso que tenha um núcleo "objectivo" numa tarefa qualquer, no que o historiador considera como imposto aos homens, numa coisa que deve ser realizada. A história do que é importante e significativo para essa coisa... será então perfeitamente "objectiva", na medida em que nunca teria podido ser objectiva a simples relação de "factos" arbitrariamente escolhidos.

Tal é o "relativismo objectivo" característico do saber histórico, como de todos os tipos de saber. O saber é "objecto" num único contexto definido: é sempre o conhecimento da estrutura e das relações essenciais nesse contexto.»

Prosseguindo este raciocínio, Randall conclui com uma fórmula particularmente explícita: «A "objectividade" significa sempre ser objectivo para qualquer coisa, da mesma maneira que a "necessidade" significa ser necessário a qualquer coisa. A "objectividade" não pode existir sem uma relação com qualquer coisa de objectivo...»

Analisemos os pontos de vista de Randall de maneira a isolar o que os distingue da concepção da verdade relativa objectiva. Randall parte da observação do espírito de partido do historiador que, ao proceder à selecção dos materiais históricos e aos juízos respectivos, está condicionado pelos interesses da sua época, etc. Isso não exerce no entanto uma influência negativa na objectividade do conhecimento, pelo contrário — é a garantia dessa objectividade: «...É apenas ao adoptar uma posição definida, pelo menos intelectualmente, que podemos esperar compreender ou escrever "objectivamente" a história do que quer que seja.» Porque será isto assim? Que significa, segundo Randall, a «objectividade» assim obtida?

O presentismo, de que conhecemos já a argumentação, responde à primeira pergunta. O historiador deve seleccionar os materiais históricos, é preciso pois que lhes avalie a importância. Implica-se portanto que exista um sistema de referência em relação ao qual o critério dado da importância seja viável. Este sistema de referência é um objectivo determinado, uma tarefa que o historiador põe como um dever social. Quando esse dever organiza o trabalho do historiador, o risco da arbitrariedade e de subjectividade na escolha dos materiais está eliminado, o trabalho do historiador torna-se objectivo. Trata-se aí de um relativismo que garante a objectividade dos estudos históricos referindo-se a um objectivo de investigações escolhido; de onde o seu nome -- relativismo objectivo.

E que significa, segundo Randall, a «objectividade»? Segundo os textos citados, vê-se que confere a esta expressão um sentido particular. Randall interpreta a objectividade do conhecimento no espírito de um relativismo radical. «O conhecimento é objectivo para um único contexto determinado» — diz Randall. Assim, tudo depende do ponto de vista escolhido ou do sistema de referência: um único conhecimento será objectivo num caso e não será noutro. A objectividade não pode existir em relação com um objectivo — explica Randall, usando um jogo de palavras possível igualmente em inglês: a relação de objectivity com objective. Assim, a objectividade significa «adaptação a um objectivo determinado». Tendo aceitado essa acepção do termo «objectividade», Randall está fundamentado para afirmar que não se pode escrever «objectivamente» a história a não ser que se tome uma posição «parcial», que se adopte um espírito de partido. Uma vez que o sentido que ele confere aos termos respectivos é claro, as aparências de um paradoxo caem por terra.

Quais são as convergências e as diferenças entre esta concepção do «relativismo objectivo» e a nossa concepção da verdade relativa objectiva no conhecimento histórico? Comecemos pelas convergências. As duas concepções abordam o problema da verdade na história sob o aspecto do seu carácter relativo ou absoluto; ambas admitem que as verdades históricas são relativas.

Mas, se as duas concepções reconhecem a relatividade da verdade histórica, cada uma delas encara este problema sob um ângulo diferente e, portanto, desenvolve-o de modo diferente.

Segundo a nossa concepção da verdade relativa objectiva, o problema consiste em comparar a verdade histórica, considerada como uma verdade parcial, incompleta e, neste sentido, relativa, com o conhecimento ideal que dá um saber total, exaustivo e, portanto, absoluto do objecto. Ao afirmar que o conhecimento histórico dá verdades relativas e que só o processo infinito do conhecimento tende para a verdade absoluta com limes adopta-se para ponto de partida a tese que a verdade histórica, se bem que relativa, é sempre uma verdade objectiva na medida em que reflecte, representa, a realidade objectiva.

A concepção da realidade objectiva encara o problema sob outro aspecto e sem partir da tese exposta atrás. A qualificação da verdade, isto é, se se trata de uma verdade parcial ou total, exaustiva, não lhe interessa; procura estabelecer se o nosso conhecimento está ligado a um objectivo, se se situa no quadro de um sistema de referência, sendo nesse caso relativo, ou se é independente de qualquer sistema de referência, de qualquer objectivo, e nesse caso é absoluto. A questão é importante, se bem que banal em certos casos. Assim, quando é posta por um partidário do presentismo ou pelo partidário de qualquer teoria do condicionamento social do conhecimento histórico, a questão é retórica: neste caso, com efeito, a verdade histórica é evidentemente relativa, visto que o conhecimento histórico depende sempre de certos condicionamentos e, portanto, é posta em relação com certos objectivos. Randall põe nesta tese evidente toda a bagagem do presentismo, mas este facto não modifica a legitimidade da tese preliminar sobre a relatividade do conhecimento histórico (no sentido da sua relação com...), nem a legitimidade da conclusão, paradoxal na sua formação, que dela foi deduzida e segundo a qual só um tal conhecimento relativo pode ser objectivo: com efeito, quando se aceitou um sistema de referência e se estabeleceu um objectivo de investigação, obtém-se automaticamente um critério de selecção dos materiais históricos, selecção que já não pode ser arbitrária, subjectivista, mas que é objectiva por causa do sistema de referência dado. Tal era a ideia de Randall quando, na passagem já citada, escreve:«a objectividade não pode existir sem relação com o objectivo definido». Isto é incontestavelmente verdade e poder-se-ia, aliás, deduzi-lo a partir da negação do carácter absoluto do conhecimento histórico.

Até aqui, além das convergências, expusemos as diferenças entre a concepção da verdade relativa e a concepção da relatividade objectiva, mais particularmente no que diz respeito á história. No entanto, estas diferenças resultavam da diversidade das perguntas postas acerca do problema e não opunham estas duas concepções permitindo considerar os seus resultados como complementares. Mas há entre estas duas concepções outras divergências que devemos analisar de mais perto.

Já dissemos que o ponto de partida, de certa maneira o princípio da concepção da verdade relativa objectiva no conhecimento histórico, é a tese segundo a qual a verdade relativa, assim como a verdade absoluta, é objectiva: o problema da objectividade da verdade e o problema do absoluto da verdade são duas questões diferentes, se bem que ligadas. É claro que este ponto de partida tem um fundamento filosófico adequado de que é a consequência: este fundamento é a filosofia materialista, de acordo com a qual o conhecimento verdadeiro é o reflexo (numa acepção particular deste termo) da realidade objectiva. A teoria da verdade relativa objectiva possui pois nítidas implicações dependentes da Weltanschaung e está ligada à posição materialista na teoria do conhecimento. O que é que se passa com este ponto de vista da teoria da relatividade objectiva?

Esta teoria passa estas questões em silêncio, e isto, como o prova o contexto, não porque as considere como evidentes, mas porque defende as posições do idealismo. A teoria da relatividade objectiva insiste sobre a argumentação do relativismo cognitivo; quando emprega o termo «objectivo», trata-se exclusivamente da adequação da selecção dos materiais históricos do ponto de vista do objectivo do estudo; «objectivo», neste caso, significa «adaptado às necessidades dadas» e, nesse sentido, «não arbitrário». O problema da relação do conhecimento com a realidade não é formulado. E não é um acaso:o presentismo, com todo o conhecimento de causa, referia-se a Benedetto Croce e, portanto, estava sob a influência do seu idealismo.

Verifica-se pois que as duas teorias têm decerto um ponto de contacto, que diferem essencialmente pela sua concepção recíproca da objectividade. A teoria da verdade relativa objectiva concebe a objectividade como o reconhecimento da existência objectiva da realidade que o conhecimento reflecte; a teoria da relatividade objectiva concebe a objectividade como uma «adaptação às necessidades dadas», como «a adaptação ao objectivo dado», abstraindo do problema da relação do conhecimento com a realidade.

Ao compararmos estas duas teorias da relatividade do conhecimento histórico, a nossa intenção principal não era proceder a um estudo comparativo ou a uma análise semântica de certas expressões, mas antes expor um problema concreto e importante ao nosso contexto: ao introduzir o factor subjectivo na análise do conhecimento histórico, ao abordar esta análise dando um grande lugar ao factor antropológico, a obrigação do marxista é opor-se ao subjectivismo tradicionalmente ligado à especulação sobre o factor subjectivo, e defender sem equívoco a tese sobre a objectividade do conhecimento e da verdade. Por «obrigação», entendo as consequências que resultam das posições tomadas em filosofia, ou seja das posições materialistas; esta obrigação estende-se igualmente à consciência dos perigos incorridos no empreendimento tentado aqui e que consistia em «enriquecer» a teoria da verdade objectiva graças à compreensão do papel activo do sujeito no conhecimento, com a ajuda de elementos tais que permitem perceber melhor o processo real do conhecimento, exprimir e aprofundar essa percepção. No entanto, não é em caso nenhum nosso «dever» fazer concessões aos nossos adversários idealistas que usam muitas vezes o argumento do papel activo do sujeito no conhecimento a fim de negar a objectividade deste. Evidentemente, a solução do diferendo depende, em última instância, das posições filosóficas gerais que adopta o investigador dado; neste caso preciso, a teoria precede nitidamente a história. Quando estas posições filosóficas prévias são decididamente divergentes, não se pode, num dado momento, senão verificar as divergências de opiniões; mas isto também tem importância para a consciência teórica e, como tal, constitui um passo indispensável para um eventual progresso neste domínio.

Para fechar todos estes raciocínios, voltemos a pôr a questão com a qual começámos a presente obra: os historiadores mentem quando, se bem que dispondo dos mesmos materiais históricos acessíveis a uma época dada, escrevem histórias diferentes? Administram a prova da não cientificidade da história quando, como resultado de uma mudança das condições da época, e não apenas a seguir a um enriquecimento dos materiais factuais, reescrevem a história e, além disso, fazem-no reinterpretando-a noutros termos?

No termo das nossas análises, a resposta negativa a estas duas perguntas está fundamentada: apoiámo-la em todos os nossos desenvolvimentos consagrados ao condicionamento social do conhecimento histórico, ao papel assumido neste conhecimento pela actividade do sujeito, aos aspectos particulares da objectividade do conhecimento que abordámos em diversas perspectivas. Agora, não temos mais do que acrescentar algumas notas de natureza mais geral.

O problema aparentemente impressionante da variabilidade da visão histórica nos historiadores vivendo na mesma época e, com maioria de razão, pertencendo a épocas diferentes, é, na realidade, um problema banal: a aparência de complexidade teórica nasceu do ponto de partida falso aceite no raciocínio.

O ponto de vista geral, considerado na realidade como um axioma, é que o historiador começa pelos factos e que são precisamente eles — os factos históricos — que são o objecto do seu estudo e do seu conhecimento; a palavra «facto» designando aqui um acontecimento concreto do passado. Ora, é falso que o historiador comece o seu empreendimento científico pelos factos; é igualmente falso que os factos constituem o objecto do seu empreendimento, o objecto sobre o qual exerce o seu estudo e o seu conhecimento. Estes erros são sequelas da fé positivista num modelo da história escrita wie es eigentlich gewesen, a partir de um mosaico de factos constituídos que o historiador se contenta com reunir e expor. É nesta falsa premissa que se encontra a chave permitindo decifrar o problema que estudamos.

No seu trabalho, o historiador não parte dos factos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos os factos históricos. Constrói-os na medida em que selecciona os materiais disponíveis em função de um certo critério de valor, como na medida em que os articula, conferindo-lhes a forma de acontecimentos históricos. Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os factos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado. Por conseguinte, não há nada de espantoso em que os mesmos materiais, semelhantes nisto a uma matéria-prima, a uma substância bruta, sirvam para construções diferentes. E é aí que intervém toda a gama das manifestações do factor subjectivo: desde o saber efectivo do sujeito sobre a sociedade até às determinações sociais mais diversas.

A coisa complica-se ainda mais quando se considera que o estudo e o conhecimento histórico podem apenas ter por objecto não factos particulares tomados separadamente, mas processos históricos apreendidos na sua totalidade. O que nós chamamos um «facto», no sentido de um acontecimento histórico concreto, é o produto de uma abstracção especulativa: um fragmento da realidade histórica é isolado, separado das suas múltiplas correlações e interdependências com o processo histórico. Quando um historiador assegura que parte de tais factos, essa certeza é apenas ilusória; mesmo se o pensa subjectivamente, como bom historiador procede de maneira diferente. Com efeito, o estudo e o conhecimento histórico têm sempre como objecto um processo histórico na sua totalidade, se bem que nos apercebamos desse objecto através do estudo de fragmentos dessa totalidade. O nosso caso é uma simples ilustração de um problema mais vasto, o da relação entre o todo e a parcela: podendo a parcela ser tomada apenas no quadro do todo acessível ao conhecimento apenas pela mediação das suas partes. Quanto mais um historiador é competente, melhor sabe desempenhar esta tarefa; quanto mais o historiador é consciente das implicações metodológicas da relação do todo e da parte, mais fácil é a relação desta tarefa.

Este estado de coisas implica no entanto consequências importantes mesmo na prática da historiografia. Se o objecto do conhecimento histórico efectivo é o processo histórico na sua totalidade e se esse processo é o ponto de partida dos estudos do historiador, se bem que este não esteja sempre plenamente consciente disso, então a variabilidade da visão histórica é uma necessidade. Um todo, um todo além do mais variável, dinâmico, não podendo ser apreendido senão por e nos seus fragmentos, nas suas partes, mesmo se estamos conscientes da necessidade de combinar esses fragmentos no quadro da totalidade do processo, o resultado obtido será sempre imperfeito, visto que é sempre parcial. O conhecimento toma necessariamente o carácter de um processo infinito que — aperfeiçoando o nosso saber caminhando a partir de diversas aproximações da realidade apercebida sob os seus diferentes aspectos, acumulando as verdades parciais — não termina apenas numa simples adição dos conhecimentos, em mudanças quantitativas do nosso saber, mas também em transformações qualitativas da nossa visão da história.

Que os historiadores percebam diferentemente a imagem da história, quando dispõem de materiais e de fontes idênticas, que esta percepção se diferencie à medida que estes materiais se enriquecem e que evolui a aptidão dos historiadores para fazerem perguntas e para descobrirem os problemas dissimulados atrás desses materiais, o fenómeno é normal e compreensível se se apercebe em termos adequados o processo do conhecimento histórico.

Mentem os historiadores? Isto pode produzir-se quando perseguem fins extracientíficos e vêem na história um instrumento de realização de necessidades práticas actuais. Numerosos são os casos deste tipo, mas apesar da sua importância social e política, este problema é teoricamente desinteressante. Em compensação, são teoricamente interessantes os casos onde a variabilidade da visão histórica segue a par com a probidade científica e uma investigação competente da verdade histórica. Os historiadores não mentem, se bem que sustentem discursos diferentes, por vezes mesmo contraditórios. Este fenómeno é simplesmente o resultado da especificidade do conhecimento que tende sempre para a verdade absoluta mas realiza essa tendência no e pelo processo infinito da acumulação de verdades relativas.

Será isto uma prova da inferioridade do conhecimento histórico em relação às matemáticas por exemplo? Esta pergunta põe imediatamente um problema que, desde há séculos, é objecto de litígio: o valor das ciências sociais e das ciências humanas em relação às ciências exactas da natureza. A resposta a esta pergunta implica conte(idos mais ricos do que os que deixa supor a sua formulação banal: tudo o que dissemos sobre o conhecimento histórico e sobre a verdade histórica, todas as nossas conclusões impregnadas de cepticismo provam apenas que tratamos com outro tipo de conhecimento do que no caso das ciências da natureza. E todas as tentativas visando refutar o valor das ciências sociais, tais como são, todas as tentativas para as «reformar» conferindo-lhes a forma de ciências dedutivas, estão — como a experiência o provou —votadas ao fracasso, sendo o seu único efeito infligir numerosos prejuízos às ciências assim «aperfeiçoadas». Quanto às pretensões à «superioridade» deste ou daquele domínio de estudos e dos métodos que aí são empregues, tudo depende do sistema de referência, dos objectos fixados, dos critérios de avaliação aplicados, etc. Em todo o caso, não há a este respeito nem respostas, nem juízos unívocos. Supondo um sistema de referência, objectivos de investigação e critérios definidos, o conhecimento histórico pode ser «superior», por ser mais complexo e estar ligado à vida da sociedade. Mas não é certamente disso que se trata: querer estabelecer uma «emulação» deste tipo seria não apenas fazer prova de falta de seriedade, mas ainda confirmar que as comunidades científicas sofrem por vezes de complexos. O que interessa pelo contrário afirmar e reafirmar é que o conhecimento histórico é diferente, específico; é, sobretudo, postular que esse conhecimento seja adquirido de maneira competente, quer dizer com a inteira consciência da sua especificidade.
 
 

Teorias de Histσria