Jean Baudrillard, “A cirurgia da alteridade” ,
O Crime Perfeito, Lisboa, Relógio d’Água, 1996, pp. 151-160
A liquidação
do Outro é duplicada por uma síntese artificial da alteridade, cirurgia estética
radical, de que a do rosto e do corpo não é senão o sintoma. Porque o crime só é perfeito quando as próprias marcas da destruição do Outro
desapareceram.
Com a
modernidade, entra‑se na era da produção do outro. Não se trata já de o
matar, de o devorar, de o seduzir, de rivalizar com ele, de o amar ou odiar ‑ trata‑se em primeiro lugar de o produzir. Já
não é um objecto de paixão, é um objecto de produção.
Acaso não
será que o Outro, na sua singularidade irredutível, se tornou perigoso ou
insuportável, e seja preciso exorcizar‑lhe a sedução? Acaso não será que,
muito simplesmente, a alteridade e a relação dual desaparecem progressivamente
com a ascensão em força dos valores individuais? A verdade é que a alteridade
vai faltando, e que é preciso absolutamente produzir o Outro como diferença, em
lugar de viver a alteridade como destino. Isto é igualmente válido para o
corpo, o sexo, a relação social. É para escapar ao mundo como destino, ao corpo
como destino, ao sexo (e ao outro sexo) como destino, que se inventa a produção
do Outro como diferença. É o que se passa com a diferença sexual. Querer
desintrincar a inextricável alteridade do masculino e do feminino para entregar
cada um à sua especificidade e à sua diferença é um absurdo. Todavia, esse é o
absurdo da nossa cultura sexual de libertação e de emancipação do desejo. Cada
sexo com as suas características anatómicas, psicológicas, com o seu desejo
próprio, e todas as peripécias insolúveis que se seguem, inclusivamente a
ideologia do sexo e a utopia de uma diferença fundada ao mesmo tempo no direito
e na natureza.
Essa
invenção da diferença coincide com a de uma nova imagem da mulher, e portanto
uma mudança do paradigma sexual. Trata‑se da produção pela histeria
masculina, na viragem do séc. XIX e da modernidade,
de uma imaginação da mulher em lugar da feminilidade roubada. (Christina von Braun ‑ Nicht‑Ich
e Die schamlose
Schoenheit des Vergangenen ‑
1985, 1989.) Nessa
configuração histérica é de algum modo a feminilidade do homem que se projecta
na mulher e a modela como figura ideal à sua semelhança. Já não se trata, como
na figura cortês e aristocrática da sedução, de conquistar a mulher, de a
seduzir ou ser por ela seduzido, trata‑se de a produzir como utopia
realizada ‑ mulher ideal ou mulher fatal,
metáfora histérica e sobrenatural. É obra do Eros romântico o ter posto em cena
esse ideal: a mulher como ressurreição projectiva do mesmo, figura gêmea quase incestuosa ‑
artefacto votado doravante à confusão amorosa, ou seja, a uma patética da
semelhança ideal dos seres e dos sexos. A diferença sexual, o conceito de
diferença sexual que se instala no mesmo movimento, é apenas um desvio da forma
incestuosa. Homem e mulher não são mais que a miragem um do outro. Eles só são
separados e diferentes para melhor se tornarem o espelho, muitas vezes
indiferente, um do outro. Toda a mecânica erótica muda de sentido, porque a
atracção erótica que emanava anteriormente da estranheza e da alteridade passa
doravante para o lado do idêntico e da semelhança.
Assim, 0 Mundo sem Mulheres [Il Mondo senza donne,
1935], de Virgílio Martini, não é tão alegórico como isso. Graças à invenção
de uma feminilidade que torna a mulher supérflua, que faz dela uma encarnação
suplementar, a mulher desapareceu realmente, senão fisicamente pelo menos sob a
influência de uma feminilidade de substituição.
Aliás, isto
também é válido para o homem, porque é a sua própria feminilidade roubada que
ele transpõe no espelho teatral do papel e da ideia da mulher. E se a mulher
real parece desaparecer nessa invenção histérica, é preciso ver que também o
desejo masculino se torna assim completamente problemático, porque passa a ser
apenas capaz de se projectar na sua imagem e de se tornar assim puramente
especulativo.
Todas as
glosas sobre o privilégio sexual do masculino não são portanto senão
disparates. Na ilusão sexual do nosso tempo, há uma espécie de justiça imanente
que faz com que, nessa diferença em trompe‑Voeil, os
dois sexos percam igualmente a sua singularidade, culminando a sua diferença
inexoravelmente na indiferenciação. 0 processo de
extrapolação do Mesmo, de gemelização dos sexos (se a
gemelidade é um tema tão actual é porque reflecte
esse modo de clonagem libidinal) resulta numa
assimilação progressiva que vai até ao ponto de fazer da sexualidade uma função
inútil. Antecipando‑se aos clones futuros, inutilmente sexuados, porque a
sexualidade deixará de ser necessária à sua
reprodução.
0 surgimento
da problemática do "género" ("gender"),
substituída à do sexo, ilustra esta diluição progressiva da função sexual. É a
era do Transexual, em que os conflitos ligados à
diferença, e até mesmo os signos biológicos e anatómicos da diferença, se
perpetuam até muito depois de a alteridade real dos sexos ter desaparecido.
Quando os sexos
olham de soslaio um ao outro, um através do outro. 0 masculino olha de soslaio
o feminino, o feminino olha de soslaio o masculino. Já não é o olhar da
sedução, é um estrabismo sexual generalizado, que reflecte o dos valores morais
e culturais: o verdadeiro olha de soslaio o falso, o belo olha de soslaio o
feio, o bem olha de soslaio o mal, e vice‑versa. Conectam‑se entre
si, numa tentativa de desvio dos seus signos distintivos. De facto, são
cúmplices para pôr em curto‑circuito a diferença. Funcionam como vasos
comunicantes, segundo novos rituais maquínicos de
comutação. A utopia da diferença sexual cumpre‑se na comutação dos pólos
sexuais e na troca interactiva. Em vez de uma relação dual, o sexo torna‑se
uma função reversível. Em vez da alteridade, uma corrente alternativa.
É na
sedução, na ilusão, no artifício que é a intensidade máxima, que cada sexo é
fatal para o outro, isto é, portador de uma alteridade radical. Em termos
naturalistas, em contrapartida, nos quais se funda a nossa diferença, e por
conseguinte a nossa "libertação", os sexos são menos diferentes do
que se pensa. Eles têm sobretudo tendência para se confundirem, ou até mesmo
para se permutarem. 0 que se "libertou" não foi justamente a sua
singularidade, mas a sua confusão relativa, e evidentemente, uma vez passada a
orgia e o êxtase do desejo, a sua indiferença recíproca. Onde é que se fala de
paixão presentemente? Muito mais facilmente se falaria de compaixão sexual. Já
nem sequer se ouve falar de desejo. 0 seu declínio no firmamento dos conceitos
foi rápido. Tornou‑se o tema astral de uma gíria psicanalítica e
publicitária.
A libertação
é sempre naturalista: ela naturaliza o desejo como função, como energia, como
libido. E essa naturalização dos prazeres e das diferenças conduz também
"naturalmente" à perda da ilusão sexual. 0 sexo afastado do
artifício, da ilusão, da sedução, devolvido à sua economia consciente ou
inconsciente (muito astuto aquele que puder dizer se é essa a
"realidade" do sexo). A mulher separada da sua condição artificial e
restituída ao seu ser natural, ao seu estatuto "legítimo" de ser
sexual, ao mesmo tempo que a um reconhecimento de direito. Ora, a sedução, a
paixão, não têm nada a ver com o reconhecimento do outro. Também a
singularidade não tem nada a ver com a identidade ou a diferença ‑ ela joga‑se como singularidade, ilegal, e é
tudo, ponto final. 0 reconhecimento vai a par com a diferença, e ambos são
virtudes burguesas.
De qualquer
maneira, nesta história de diferença, há sempre um termo que é mais diferente
que o outro. A mulher é efectivamente mais diferente que o homem. E não só mais
diferente que ele mas mais que diferente. 0 homem é apenas diferente, a mulher é outra:
estranha, ausente, enigmática, antagónica. E é para esconjurar essa alteridade
radical que se inventou a diferença biológica, mas também psicológica,
ideológica, política, etc. Tudo isto pode ser negociado numa oposição
regulamentada, nem que seja em termos de relações de forças. Mas, propriamente
falando, essa oposição não existe ‑ ela não é
senão a substituição de uma forma dual e dissimétrica por uma forma simétrica e
diferencial. 0 mesmo é dizer que essa forma de compromisso "natural"
não podia ser mais frágil. Não se pode confiar na natureza.
A mulher
fatal, essa, não o é nunca enquanto elemento natural. É o enquanto artifício,
como sedutora ou como artefacto projectivo da histeria masculina. A mulher
ausente, ideal ou diabólica, mas sempre fetichizada,
essa mulher construída, essa Eva maquínica, esse
objecto mental, troça da diferença entre os sexos. Ela troça do desejo e do
sujeito do desejo. Mais feminino que o feminino: a mulher‑objecto.
Mas não se trata de alienação, trata‑se de um objecto mental, de um
objecto puro (que não se toma por um sujeito), um ser irreal, maquilhado,
cerebral, devoradora de matéria cinzenta e libidinal.
Através dela, é o sexo que nega a diferença sexual, é o desejo que a si próprio
arma uma cilada, é o objecto que se vinga. A mulher‑objecto,
a mulher fatal, troça dessa feminilidade histérica essencialmente masculina.
Ela troça dessa imagem especulativa por uma especulação incondicional, por uma
escalada do poder da sua própria imagem. Por um encarecimento da sua condição
de objecto, devém fatal para si própria, e é assim que o devém para os outros.
É o feminino que transparece através das próprias feições do ideal artificial
que lhe forjaram ‑ não para regressar à mulher
"real" que é suposta ser, mas para a afastar ainda mais da sua
natureza e fazer desse artifício um destino triunfante.
Mas os sexos
têm um destino assimétrico. A mesma jogada sobre o tipo ideal de virilidade que
lhe é imposto não é possível ao homem. Ele não pode senão baldar‑se ao
jogo, em lugar de cobrir o lanço. E se há cada vez menos mulheres fatais, é
porque já não há homens para poderem ser as suas presas.
De qualquer
modo, essa histerização mútua dos papéis decresce à
medida que a crença na natureza se desvanece na época contemporânea e que
eclode, com a sua "libertação", o carácter problemático e ambíguo
dessa diferença. A histeria foi a última forma de estratégia fatal da
sexualidade. Não é pois por acaso que ela desaparece hoje, depois de ter
fomentado as figuras extremas da mitologia sexual de todo um século. As
estratégias fatais apagam‑se perante a solução final.
Um novo
espectro de dispersão surgiu, e neste jogo sexual de baixa definição (Low Definition Sexual Game), parece evidente que
deslizamos do êxtase para a metástase, a de inu.meráveis
pequenos dispositivos de transfusão e de perfusão libidinal
‑ microcenários da insexualidade
e da transexualidade sob todas as suas formas.
Resolução do sexo nos seus membros dispersos, nos seus objectos parciais, nos
seus elementos fractais.
A única
alternativa, nesta viragem sexual da indiferença, estaria do lado da mulher.
Porque ela quer produzir‑se a si própria como diferente, porque não quer
já ser produzida enquanto tal pela histeria masculina, compete‑lhe
produzir o outro em compensação, produzir uma nova figura do outro como objecto
de sedução ‑ tal como o masculino o conseguiu em certa medida ao produzir
uma cultura da imagem sedutora da mulher. Esse é o problema de uma mulher
tornada sujeito de desejo, mas não encontrando já o outro que ela poderia
desejar enquanto tal (é o problema mais geral da nossa época, o de devir‑sujeito num mundo em que entretanto o objecto
desapareceu). Porque o segredo nunca está na troca equivalente dos desejos, sob
o signo de uma diferença igualitária, mas sim no inventar do outro que saberá
jogar e troçar do meu próprio desejo, diferi‑lo, suspendê‑lo, e
portanto suscitá‑lo indefinidamente. Será o feminino hoje capaz de
produzir, pois que já não a quer encarnar, essa mesma alteridade sedutora? Será
o feminino ainda suficientemente histérico para inventar o outro?
Infelizmente,
parece que nos aproximamos do extremo inverso, isto é, da forma exacerbada da
diferença, isto é, da solução final: o enfado sexual. Desenvolvimento último da
histeria feminina ‑ sendo a pornografia o
desenvolvimento último e caricatural da histeria masculina. São no fundo as
duas vertentes da mesma indiferença histérica.
0 enfado
sexual: caricatura fóbica de toda a aproximação
sexual, recusa incondicional de seduzir e ser seduzido. Será essa compulsão
apenas o alibi da indiferença ou será que esconde,
como todo o sintoma alérgico, uma hipersensibilidade ao outro? A verdade é que
qualquer veleidade de sedução, qualquer expressão do desejo, é alvo da
inculpação de violação. Haveria presunção de violação em cada fase da relação,
mesmo a conjugal, se ela não é expressamente consentida. A lei italiana prevê
como passível de imputação a indução, isto é, não o forçar o desejo do outro,
nem sequer a sedução, mas o simples facto de induzir ao seu consentimento por
qualquer gesto ou sinal que seja. Seria preciso, ademais, segundo a mesma
lógica, pôr o espermatozóide no índex, porque o seu esforço para penetrar no
óvulo é exactamente o protótipo do assédio sexual (mas acaso não haverá indução
por parte do ovário?).
Onde começa
a violação, onde começa o assédio? Uma vez traçada a linha de demarcação, a de
uma diferença inexpugnável entre os sexos, deixa de haver outra possibilidade
de aproximação que não seja a da violência. Assim é num filme de Bellochio, 0
Veredicto, a questão é a de saber se ele a violou verdadeiramente, já que
ela teve um orgasmo. A acusação pretende que sim, a defesa invoca o
consentimento final da vítima. Mas ninguém se questiona se o orgasmo não será
uma circunstância agravante. Com efeito, pode‑se defender que forçar o
prazer do outro, forçar o seu arrebatamento, é mesmo o cúmulo da violação, mais
grave do que forçar o outro a dar‑nos prazer. De qualquer modo, isto
ilustra o absurdo de toda essa problemática. 0 assédio sexual marca a entrada
em cena de uma sexualidade vitimária e impotente ‑ impotente para se constituir como objecto ou como
sujeito de desejo na sua vontade paranóica de identidade e de diferença. Não é
já o pudor que é ameaçado de violação, é o sexo, ou melhor, a estupidez
sexista, que faz justiça a si própria.
Isto ilustra
ao mesmo tempo o impasse da diferença. 0 problema da diferença é insolúvel pela
razão que os termos em presença não são diferentes mas incomparáveis. Os termos
que temos o hábito de opor são simplesmente incompatíveis, o que faz com que o
conceito de diferença não tenha sentido. Assim, o Feminino e o Masculino são
dois termos incomparáveis, e se não há, no fundo, diferença sexual é porque os
dois sexos não são oponíveis.
Isto vale
para todas as oposições tradicionais. 0 mesmo se pode dizer do Bem e do Mal.
Eles não estão no mesmo plano, e a sua oposição é um logro. 0 mal, é justamente a estranheza, a impermeabilidade radical do
Bem e do Mal, que faz com que não haja reconciliação, nem ultrapassagem, nem
portanto solução ética para o problema da sua oposição. A alteridade inexorável
do Mal atravessa a eclíptica da moral. Assim sucede
com a liberdade confrontada com a informação ‑
tema da nossa ética mediática: esse conflito é um falso conflito, pela razão de
que não há verdadeiro confronto, dado os dois termos
não estarem no mesmo plano. Não há ética da informação.
0 que define
a alteridade não é que dois termos não sejam identificáveis, mas que eles não
sejam oponíveis um ao outro.
A alteridade é do domínio das coisas incomparáveis. Ela não é permutável segundo
uma equivalência geral, não é negociável, e contudo circula no modo da
cumplicidade e da relação dual, seja na sedução ou na guerra.
Ela nem
sequer se opõe à identidade: joga com ela, tal como a ilusão não se opõe ao
real, mas joga com ele, ou como o simulacro não se opõe à verdade, mas joga com a verdade ‑portanto, para além do
verdadeiro e do falso, para além da diferença ‑ tal como o feminino não
se opõe ao masculino, mas joga com o masculino, algures para além da diferença
sexual. Os dois termos não se correspondem: o outro joga sempre com o primeiro.
0 segundo é sempre uma realidade mais subtil que envolve o primeiro com o signo
da sua desaparição. Todo o esforço vai estar em reduzir esse princípio
antagónico, essa incompatibilidade, a uma simples diferença, a um jogo de
oposição bem temperada, a uma negociação da identidade e da diferença em lugar
da alteridade roubada.
Tudo o que
se quer singular, incomparável, e que não entra no jogo da diferença, deve ser
exterminado. Seja fisicamente, seja por integração no jogo diferencial, onde
todas as singularidades se dissipam no campo universal. 0 mesmo acontece com as
culturas primitivas: os seus mitos tornaram‑se comparáveis sob o signo da
análise estrutural. Os seus signos tornaram‑se permutáveis ao abrigo de
uma cultura universal, em troca do seu direito à diferença. Negadas pelo
racismo, ou digeridas pelo culturalismo diferencial,
tratava‑se, em qualquer dos casos, da solução final. 0 pior está nessa
reconciliação de todas as formas antagónicas sob o signo do consenso e da convivialidade. Não se deve reconciliar nada. É preciso
manter abertas a alteridade das formas, a disparidade dos termos, é preciso
manter vivas as formas do irredutível.