O capitalismo nasceu na Europa

[Jacques Adda, "500 anos de relações tortuosas entre o Estado e o mercado", in Gerard Vinndt, 500 anos de Capitalismo -- A Mundialização: De Vasco da Gama a Bill Gates, Lisboa, Temas e Debates, 1999, pp. 12-19]

O capitalismo nasceu na Europa. Que o seu acto de nascimento tenha origem na revolução industrial, no grande desencravamento planetário dos séculos xv e xvi ou na revolução comercial da Idade Média, que seja antes de mais um sistema de produção ou uma estrutura mental, pelo menos uma coisa é certa: é na Europa, e não em terras do islão ou na China, que a ascensão da classe mercantil implicará a formação de uma ordem mercantil, isto é, de um sistema social estruturado pelas leis da troca mercantil.

Esta evidência histórica constitui há já muito tempo uma fonte de grande perplexidade. Mercadores em busca de lucro sempre os houve, ou quase sempre. Em todo o caso, a Europa não inventou nem o comércio nem a paixão pelo lucro. Muito antes de Veneza, Génova, Lubeck e Hamburgo, Roma e Atenas nada ignoravam das técnicas do comércio externo e da finança Internacional, desenvolvidas muito mais cedo pelas cidades fenícias que as haviam herdado elas próprias das cidades sumérias. Nunca, porém, o surto das trocas havia arrastado o desenvolvimento de um sistema económico estruturalmente orientado para a acumulação ilimitada do capital, segundo a definição do capitalismo proposta por lmmanuel Wallerstein. Por mais que a China, até ao século xvi, estivesse adiantada relativamente à Europa no plano tecnológico, a sua economia permanecia pré-capitalista. Da mesma forma, por muito que os comerciantes árabes usufruíssem em outros aspectos de uma consideração social muito mais favorável que a dos seus colegas da Europa cristã, no islão florescente do segundo milénio eles continuavam a ser simples comerciantes e jamais se tornaram capitalistas.

O que tinha então de particular esta Europa Medieval, não obstante o seu atraso em muitos aspectos relativamente às civilizações rivais, para se tornar a terra de eleição do capital? A esta questão, Jean Baechler deu, em 1971, uma resposta que não cessou desde então de fecundar a pesquisa histórica2. A extrema dispersão do poder político constitui o traço mais significativo da civilização europeia que emergiu dos destroços do Império romano.

A Europa do século V ao século X, como lembra Fernand Braudel, é uma cidadela cercada que faz frente como pode às invasões dos Hunos a Leste, dos Árabes a Sul e dos Vikings a Norte. O seu enorme espaço interior, em vias de arroteamento, pulveriza-se numa infinidade de minúsculos senhorios isolados uns dos outros, cada um constituindo uma unidade económica e política autónoma.

O grande desencravamento planetário dos séculos XV e XVI

Lentamente, e apenas nas orlas marítimas do Mediterrâneo e do mar do Norte, a vida mercantil vai renascendo graças ao comércio, primeiro com Bizâncio e pouco depois com os impérios muçulmanos e escandinávios em decadência. Escapando ao controlo de um poder central enfraquecido, mas também libertas dos pesados constrangimentos, do controlo territorial, as cidades costeiras, consituídas em Cidades-Estados, fornecem à actividade económica a oportunidade para se desenvolver em perfeita liberdade. A expansão das redes mercantis que daí resultou está na origem do grande desencravamento planetário dos séculos XV e XVI. A acumulação de riquezas, que no contexto imperial constituia apenas uma via para aceder à vida pública, torna-se pela primeira vez um fim em si mesmo. A lei do mercado sobrepõe-se à lei imperial que tanto entravava o comércio na época romana ou na China. Doravante, estatuto social e acumulação de riquezas confundem-se.

Esta libertação do económico face ao político e ao religioso constitui a mutação fundamental que torna possível a emergência do capitalismo. Numa obra luminosa, Karl Polanyi mostrou como, nas sociedades pré-capitalistas, a economia não existe nunca enquanto esfera autónoma, encontrando-se sistematicamente embutida nas relações sociais. O sistema económico nas suas dimensões de produção e de repartição do produto, assenta não sobre a expansão de uma racionalidade individual orientada para a busca do ganho, mas sobre uma lógica colectiva, geralmente fundada nos princípios de reciprocidade, de redistribuição, e sobre um ideal de autarcia.

Historicamente, o desenvolvimento de uma esfera económica autónoma não resulta de uma inclinação natural para trocar e permutar todas as coisas por outras, ao contrário do que Adam Smith havia imaginado, mas do desmantelamento das regras de organização social que conferiam às sociedades tradicionais a sua estabilidade. Este desmantelamento não é fruto de perturbações políticas anteriores, mas de uma lenta penetração das leis do mercado num movimento que vai do exterior para o interior das sociedades. Significativamente, é nas franjas da sociedade cristã, no espaço aberto pelas trocas com o mundo exterior, e não regulamentado pelos Estados, que se lança o capitalismo. Na sua origem, encontra-se não o comércio interno, mas o comércio externo.

de comércio. Nas cidades, os mercadores internacionais não podiam participar do comércio a retalho, que era objecto de uma rigorosa regulamentação que visava a defesa dos interesses dos produtores. Esta regulamentação, que abrangia todos os aspectos da actividade profissional, desde o recrutamento dos trabalhadores até às normas de qualidade dos produtos, era estabelecida pelas corporações dos ofícios, em conformidade com as prescrições morais da Igreja, em particular as que diziam respeito ao preço justo e ao justo salário. Fora das Cidades-Estados, a economia medieval permanecia então largamente embutida no social. A solução, para a economia mercantil, viria dos campos. Adquirindo as terras dos antigos senhores feudais, os mercadores acabaram por conseguir contornar os monopólios das corporações urbanas, instalando nas periferias das cidades as indústrias que viriam a provocar a sua desagregação, transformando, do mesmo passo, a economia rural.

A aliança dos príncipes e dos mercadores

A acumulação e a concentração de riquezas nas mãos da classe dos mercadores não podia, porém, deixar indiferentes os Estados-Nações em gestação. Em França e na Inglaterra, os príncipes apoiam-se nos recursos financeiros e logísticos dos mercadores para reforçar os seus exércitos. Para além dos capitais. colocam à sua disposição o senso prático, o conhecimento das engrenagens da economia e as redes internacionais, O preço a pagar não é outro senão a instituição do sistema concorrencial no interior de cada economia nacional, isto é, o desmantelamento do conjunto dos obstáculos internos à circulação das mercadorias e a abolição dos privilégios das corporações, prelúdio da formação de um mercado de trabalho.

Deste modo, a criação de um verdadeiro mercado interno foi obra do Estado. O mercantilismo, geralmente reduzido nos manuais de economia a uma doutrina proteccionista que assimila a riqueza à acumulação de metais preciosos, foi, acima de tudo, um vasto movimento de liberalização do comércio interno. Este movimento, imposto pelos Estados-Nações saídos do regime feudal, punha fim ao sistema de protecção económica e social das cidades. O Estado respondia assim ao voto mais caro aos mercadores que podiam a partir de então alargar as suas actividades no conjunto do território nacional. Esta conjunção de interesses dos mercadores e dos príncipes tornou assim possível a formação dos mercados internos sobre os quais a Revolução Industrial haveria de desabrochar. Por sua vez, o desenvolvimento do maquinismo viria suscitar a constituição de mercados para os diferentes factores de produção (trabalho, terra, moeda), cuja disponibilidade continua condicionava a rendibilidade dos investimentos. A partir de então, as últimas defesas da sociedade tradicional relativamente ao sistema concorrencial estavam quebradas e a sociedade tornava-se ela própria um apêndice do sistema económico.

O capitalismo industrial conquistador

A aliança entre a classe dos mercadores e os Estados haveria de acelerar também a expansão mundial da economia-mundo europeias. No plano internacional, os círculos dos negócios vão doravante usufruir de uma protecção régia que confere às suas investidas comerciais a forma de uma expansão colonial. Aos fabulosos proveitos que resultam da pilhagem dos mundos subjugados e do comércio com as colónias, juntam-se as necessidades objectivas que as indústrias nascentes têm de matérias--primas e mercados para a colocação dos seus produtos. A lógica política da expansão territorial, aguçada pelas rivalidades entre as grandes potências europeias (Holanda, França, Inglaterra), conjuga-se a partir desse momento com uma dinâmica de crescimento industrial, que justifica a protecção dos mercados internos perante a concorrência estrangeira e a penetração, muitas vezes violenta, em novos mercados.

Abre-se assim um segundo grande período na história das relações entre Estados e mercados, que associa o liberalismo no interior das economias a intervenção colonial no seio dos mundos periféricos. À era das Cidades-Estados que inventaram, à margem dos impérios, o capitalismo comercial, sucede a era dos Estados-Nações que conferem ao capitalismo industrial a sua base nacional, ao mesmo tempo que se apoiam nele para desenvolver políticas de dominação.

Esta aliança dos poderes económico e político, realizada no seio de cada nação à revelia das sociedades, explica os contornos das lógicas, de resto independentes, do sistema inter-Estados e do sistema económico internacional a partir da época mercantilista. A conjunção destas duas lógicas, como se sabe, é largamente responsável pela exacerbação das rivalidades inter-imperialistas que conduzirão ao primeiro conflito mundial. A primeira metade do século XX assiste deste modo ao fracasso, quer ao nível nacional, quer ao nível internacional, deste modo conflituoso de regulação do capitalismo. Ao nível nacional, a grande crise dos anos 30 põe em evidência os limites de uma regulação estritamente concorrencial, em que se supunha que o equilibrio em todos os mercados resultava automaticamente de um ajustamento dos preços6.

A reacção keynesiana

A reacção keynesiana, que inaugura uma terceira fase nas relações entre Estados e mercados, visa reintegrar, sob o controlo dos Estados, a dinâmica da acumulação no seio de adaptações institucionais que protejam a sociedade. Salário mínimo, negociações colectivas e protecção social confinam, a partir de então, o funcionamento do sistema concorrencial, enquanto a intervenção activa do Estado no domínio conjuntural (políticas orçamentais e monetárias) limitam os riscos de derrapagem inflacionista e principalmente os riscos de espiral depressiva. O compromisso keynesiano abre, por isso mesmo, novas perspectivas aos capitais privados. O crescimento passa de extensivo a intensivo e parece beneficiar sectores mais vastos da sociedade. É tanto mais estável quanto mais sólidos forem os compromissos sociais que o fundamentam.

No plano internacional, o reordenamento das relações entre as esferas económica, política e social traduz-se por ofensivas inéditas no sentido da institucionalização das relações económicas internacionais, de que é testemunho a criação das instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial). Significativamente, estas transformações são contemporâneas do movimento de descolonização que dará, por algum tempo, a. ilusão de poder separar as sociedades periféricas de um sistema, cuja violência haviam até então claramente sofrido. São principalmente expressão de uma completa reestruturação de um sistema internacional que se encontrará desde então fraccionado em dois blocos antagónicos e estabilizado, na sua parte capitalista, pelo poder hegemónico dos Estados Unidos.

 

As tendências pesadas da mundialização

A regulação keynesiana do capitalismo não haveria, porém, de resistir às tendências pesadas da mundialização. A abertura das economias às trocas, desejada por todos, após a desastrosa experiência do isolamento económico do período entre as duas guerras mundiais, limita rapidamente as margens de manobra dos Estados em matéria de regulação conjuntural. O objectivo do pleno emprego pode a partir desse momento revelar-se contraditório com a atenção concedida aos constrangimentos externos. Por outro lado, a protecção aos assalariados e a progressiva inclinação a seu favor da repartição cio valor acrescentado incentivam as empresas a deslocar alguns segmentos de produção para as regiões com salários mais baixos.

Este movimento é encorajado pela experimentação, nomeadamente no Extremo Oriente, de estratégias de promoção das exportações de produtos manufacturados, que permitem, ao mesmo tempo, reduzir a dependência dos países periféricos relativamente ás exportações de produtos de base e resolver o problema da insuficiência dos mercados internos. Finalmente, no domínio financeiro, a mobilidade dos capitais é formidavelmente aumentada pela revolução das comunicações. A livre circulação à escala mundial de uma parte crescente da poupança estilhaçou o regime de trocas fixas instaurado em Bretton Woods e exerce consideráveis constrangimentos sobre as políticas financeiras. Com a ajuda do envelhecimento das populações, o Estado-providência entra em crise no conjunto do mundo industrializado, no preciso momento em que a sua criação nas mais dinâmicas economias em desenvolvimento entra na ordem cio dia. Nesta perspectiva, o fenómeno da mundialização aparece como uma desforra do económico sobre o social e o político. Manifesta-se tanto porque põe em causa os compromissos sociais elaborados na época keynesiana como pelo seu lento trabalho de desgaste da autoridade económica dos Estados, ilustrado, para além das racionalizações ideológicas, pela grande vaga de desregulamentação desencadeada em finais dos anos 70. Entrando em concorrência pela localização dos investimentos e a repartição da poupança, os Estados já não têm meios para se interpor entre as exigências do capital e as necessidades dos corpos sociais. Tendo perdido, na maioria dos casos, uma boa parte dos seus meios de ajustamento conjuntural e de regulação económica, eles consagram uma parte crescente das suas forças à criação de um espaço—logístico, social, financeiro, monetário e regulamentar — propício à manutenção ou ao acolhimento dos capitais no território nacional.

A fragmentação dos quadros estatais de regulação coloca, porém, a questão da possibilidade — e da oportunidade — da formação de quadros supranacionais de regulação que a autoridade crescente das instituições multilaterais, a emergência, através do G7, de uma espécie de directório da economia mundial e os processos de integração regional fazem prever.

Notas

1. Immanuel Wallerstein, La système du monde du xv siécle à nos jours (O Sistema do Mundo do Século XV aos Nossos Dias; 1.º volume, Capitalisme et économie monde, 1450-1560: 2º volume, Le mercantilisme et la consolidation de l’économie-monde européenne, 1600-1750), Flammarion, 1980 e 1984 (edições originais americanas de 1974 e 1980) O 3.° volume, The Modern World-System. Second Era of Great Expansion of the Capitalist World Economy, editado em 1989 pela Academic Press, San Diego, Califórnia, ainda não foi traduzido para francês).

2. Jean Baechler, Les origines du capitalisme, Gailimard, col. Idees, 1971.

3. Fernand Braudel, Grammaire des civilisations, Flammarion, col. Champs, 1993 (1.ªedição 1963). Ver também o seu imenso fresco: Civilization matérielle, économie et cepitalisme: XV-XVIII siécles (Civilização Material, Economia e Capitalismo; Séculos XV-XVII), 3 volumes, Armand Colin, 1979.

4. Karl Polanyi, La grande transformation: aux origines politiques e économiques de notre temps (A grande Transformação: Nas Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo), Gallimard, 1983.

5. Acerca da génese da economia mundial, ver La mondialisation de I"economie (A mundialização da Economia), col. Reéres, La Découverte, 1996, reedição em 1998.

6. Robert Boyer e Jaques Mistral, Accumulation, inflation et crises (Acumulação. inflação e crises), PUF, 1978.

 

 

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