ESTADOS UNIDOS

UM DOS PAÍSES MAIS

FUNDAMENTALISTAS DO MUNDO

 

Noam Chomsky, Discurso da Dissidência, Lisboa, Edições Dinossauro, 2000, pp. 103-107.

 

Le Monde Libertaire Você é muito crítico dos meios americanos. Considera os seus equivalentes europeus mais democratas? Quais são as diferenças, em termos democráticos, entre os meios americanos e europeus?

 

Noam Chornsky Não creio que os meios europeus sejam mais democráticos que os americanos, nem que sejam mais sérios. Há mais variedade, mas em todo caso não é possível generalizar...

 

P. ‑ 0 Médio Oriente é um dos seus temas principais. Os Estados Unidos e Israel sempre estiveram contra uma solução diplomática do problema. Porque mudaram de opinião recentemente? Pensa você que vão substituir o controlo militar e político dos territórios ocupados pelo controlo económico?

 

R. ‑ Os Estados Unidos e Israel sempre quiseram uma solução diplomática mas segundo as suas condições. Estas não foram aceites pelo resto do mundo. Durante quase 20 anos os Estados Unidos negaram simplesmente qualquer direito palestiniano à autogestão. Não aceitaram a resolução 242 das Nações  Unidas nos termos escolhidos pela opinião internacional e por sinal ‑ aceites pelos americanos entre 1957 e 1971. A resolução apelava à paz em resposta a uma evacuação total, com ajustamentos mútuos mínimos. Para conseguir essa política os Estados Unidos tiveram que opor‑se às resoluções do Conselho de Segurança, votar, com Israel, contra as resoluções da Assembleia Geral, boicotar todas as iniciativas diplomáticas depois da tentativa de Sadat em Fevereiro de 1971 para chegar a um acordo baseado na 242...

 

Por causa do poder da propaganda dos Estados Unidos, o alcance principal destes factos foi suprimido e os europeus, sob grande influência americana nesta época, esqueceram‑se de defender o que tinham defendido no passado. Esta situação continuou até 1990. A última resolução da ONU (144‑2), que se refere outra vez a uma solução diplomática, foi bloqueada pelos Estados Unidos em Dezembro de 1990. Depois da guerra com o Iraque, a Europa renunciou à região em favor dos americanos e não tomou posição independente. Os países neutrais viram‑se num estado de confusão total e a Rússia alinhou mais ou menos pela facção americana, como a Grã‑Bretanha. Os Estados Unidos entraram em acção no Outono de 1991, em Madrid, impondo unilateralmente o seu programa para a região... o que foi aceite em 1993‑94, desta vez com a ajuda da Noruega. 0 acordo actual baseia‑se no pressuposto explícito de que Israel não se retirará dos territórios ocupados se não quiser fazê‑lo e sob as suas próprias condições.... Então, desde o momento em que se assinou a Declaração de Princípio, em Setembro de 1993, a colonização e a confiscação da terra na região ocupada intensificou‑se com a ajuda financeira dos Estados Unidos. Neste momento Israel controla quase 75% da faixa de Gaza, quase 35% da terra e provavelmente toda a sua água... Na Declaração de Princípio não se fala da autogestão dos palestinianos porque os americanos nunca aceitaram esta ideia... Escrevi sobre este tema, que está em evolução desde uns 25 anos (ver o meu livro recente World Orders, Old and New.)

 

P. ‑ Quais considera como as causas principais do crescimento dos grupos muçulmanos no mundo árabe, por exemplo a Argélia e o Egipto? Pensa que estes movimentos têm causas locais ou têm a ver com um fanatismo religioso?

 

R. ‑ Tenho as minhas dúvidas sobre os termos "fanatismo religioso" e "fundamentalismo". Creio que um dos países mais fundamentalistas no mundo actual são os Estados Unidos, talvez comparável ao Irão. 0 país muçulmano mais extremamente fundamentalista é a Arábia Saudita, íntimo aliado dos, Estados Unidos; não é considerado como um problema porque obedece às ordens. Também um dos fundamentalistas muçulmanos mais radicais é Gulbiddin Hekrnatyar, que recebeu, nos anos 80, dos Estados Unidos e Arábia Saudita, quase 6 milhões de dólares e quantidades enormes de armas, ao mesmo tempo que quase destruía o país. No geral os Estados Unidos e os seus satélites aceitam de boa mente o fundamentalismo muçulmano ou outro. Têm medo da possibilidade de o povo actuar de uma maneira independente. Esta regra aplica‑se à igreja católica. Neste aspecto, os Estados Unidos não fazem diferença, a favor ou contra. Estes elementos da igreja que "tomam o partido dos pobres" têm de ser objectivamente eliminados, se for necessário pelo terror e a violência. Os que "tomam o partido dos ricos" são perfeitamente aceitáveis.

 

A razão para o desenvolvimento dos movimentos fundamentalistas no mundo árabe é simples. Os movimentos seculares foram destruídos ou destruíram‑se a si mesmos. Só os fundamentalistas muçulmanos têm algo para oferecer ao povo. Quando se vive nos bairros pobres do Cairo e se tem um filho a morrer, é possível levá‑lo a uma clínica organizada pelos fundamentalistas muçulmanos. Os governos estão demasiado corrompidos para oferecer seja o que for. Estas pessoas oferecem uma perspectiva que tem em conta as necessidades do povo... Esta é uma análise um pouco simplista, dadas as restrições de espaço, mas creio que cobre o essencial...

 

P. ‑ Quais são as causas principais da guerra na ex-Jugoslávia e quais as soluções possíveis?

 

R. ‑ As guerras nos Balcãs têm muitas causas. As principais são de natureza interna, mas as acções dos poderes exteriores não ajudaram a resolver a situação, para não dizer mais... 0 reconhecimento internacional da Croácia não tomou em conta o facto de haver muita oposição, vinda de uma minoria sérvia importante. A Bósnia foi reconhecida, apesar de ser composta de três partes distintas e de haver fortes aspectos multiétnicos que perturbaram profundamente a comunidade sérvia que, refugiada nas montanhas, tinha medo da dominação muçulmana. É provável que todos estes elementos, acrescentados à conduta do governo sérvio, sejam as causas da guerra. Antes, talvez tivesse sido possível atenuar o problema, mas agora é difícil conceber uma solução. Ainda não ouvi falar de soluções inteligentes para o problema...

 

P. ‑ Durante estes últimos anos vimos crescer ideologias fascistas, nacionalistas e racistas. Embora hoje este movimento não está  limitado às actividades de pequenos grupos isolados e haja apoio popular a Jirinovski e BerIusconi, vemos talvez sinais de estarmos confrontados com um problema de uma dimensão muito grande. Pensa que a crise económica e social conduz ao desenvolvimento de movimentos antidemocráticos, como aconteceu na Alemanha depois da primeira guerra mundial?

 

R. ‑ Durante os últimos 20 anos vimos a sociedade a dividir‑se em dois sectores semelhantes ao modelo do Terceiro Mundo: ilhas de uma grande riqueza e privilégio num mar de sofrimento, com uma população crescente e supérflua sem direitos e não contribuindo para a criação de lucros. As proporções num país rico como os Estados Unidos ou num país pobre como o México são diferentes mas as estruturas são muito semelhantes. As razões são bastante evidentes: desde os anos 70 vemos uma tendência crescente para a mundialização, com a acumulação enorme de poder entre as mãos das multinacionais, que são instituições incrivelmente totalitárias. Vimos também uma explosão de capital e uma mudança na sua composição. Em 1970, 90% do capital nas trocas internacionais vinha do comércio e do investimento na economia real, e 10% da especulação. Em 1990 estas cifras funcionam ao contrário. Em 1994 calcula‑se que o capital especulativo ocupa 95% deste espaço e que o seu ritmo de crescimento é o maior de sempre. Tal evolução era já evidente nos anos 60. Em 1978, James Tobin, que ganhou o prémio Nobel de Economia, sugeriu um imposto que procurasse reduzir a especulação do capital que conduziria a um mundo baseado no crescimento lento, salários baixos e altos lucros. Foi o que aconteceu, com a possibilidade de transferir a produção para o estrangeiro, uma arma poderosa para utilizar contra os operários. 0 fim da guerra fria, ou seja, o regresso dos países orientais à sua condição tradicional de Terceiro Mundo, oferece aos patrões ocidentais novas armas para utilizar contra o povo dos seus próprios países. Numa situação destas, é normal que o poder queira eliminar o que o ameaça: os direitos humanos, a liberdade e a democracia, que foram obtidos pela luta laboral durante o último século. É isso que está a passar‑se de maneira decisiva nos Estados Unidos e na Grã‑Bretanha. Para a grande maioria das pessoas é um desastre. Por exemplo, nos Estados Unidos os salários baixaram desde a época de Reagan. Ao mesmo tempo, a revista Fortune fala de lucros espectaculares. Tudo isso foi acompanhado por uma cortina de propaganda bastante impressionante que deixou as pessoas confusas, sem esperança, frustradas e revoltadas. Os intelectuais liberais e a imprensa e também a "esquerda" contribuíram para tudo isso. Trata‑se de uma situação muito perigosa que poderá explodir e dar lugar a vários horrores, a menos que assistamos à criação de alternativas que respondam às necessidades e preocupações do povo.

 

P. ‑ Muitas pessoas pensavam que com o colapso da URSS e dos regimes socialistas haveria um novo interesse pelo anarquismo. Isso não aconteceu. Pensa que é culpa dos anarquistas não terem surgido como alternativa?

 

R. ‑ Quem são os anarquistas que não se apresentaram como alternativa? É verdade que há alguns. Por exemplo, esperava‑se muito da CNT, em Espanha. Mas há que recordar que não temos praticamente nenhum intelectual anarquista, pela simples razão que o anarquismo não oferece aos intelectuais posições de poder nem de privilégio. Os anarquistas também são responsáveis, visto que as opiniões anarquistas são demasiado diluídas. No entanto, existem maneiras de articulá‑las de uma forma construtiva e na tradição dos movimentos populares para oferecer uma posição anarquista e tornar os anarquistas mais capazes de atrair simpatias.

 

P. ‑Que deveriam fazer os anarquistas e a imprensa anarquista neste momento?

 

R. ‑ A mesma coisa de sempre: ajudar as pessoas a controlar as suas vidas, entenderem o mundo onde vivem e organizarem‑se para destruir a autoridade ilegítima... como sempre se fez.