LITERATURA E HISTÓRIA:

Interdisciplinaridade

José B. Duarte*

 

Foi muito interessante para mim a participação no mestrado de História Política e Social, através da orientação do seminário de Estudos Portugueses. E do debate com os mestrandos surgiu um apontamento, que segue, em que procuro reflectir sobre um autor cujas narrativas provocam no leitor uma reflexão sobre a relação das “estórias” com a história.  

Nos romances de Cardoso Pires, por exemplo em “O Delfim” e na “Balada da Praia dos Cães”, nota-se uma falta de unidade de perspectiva quanto às “teorias” que as personagens constroem acerca dos acontecimentos. Ou seja, em vez da omnisciência do narrador, instala-se a incerteza que provoca a reflexão do leitor. É que  são-nos apresentados acontecimentos mas as causas que os provocam são objecto de desencontradas versões das personagens e do próprio autor – provocando-se o leitor a reflectir e a optar por uma das versões ou a construir a sua própria versão.

Tal procedimento, quanto a mim, aproxima o romance daquilo que há de “conjectural” em toda a pesquisa, em termos de Popper – ou a ideia de que a pesquisa científica propõe soluções provisórias que submete à confirmação ou refutação de outros. Essa atitude conjectural é aliás mantida na versão cinematográfica de “O Delfim”, em que o espectador, face aos factos em torno da morte de Maria das Mercês, é “obrigado” a reflectir e a “criar uma teoria” que os explique. 

Em geral, uma atitude “objectivo-comprensiva” próxima da etnografia leva o autor a erguer com palavras imagens vivíssimas da realidade social portuguesa. Concorde-se que o processo de pesquisa é (em parte) simulado: as notas que aparecem em “O Delfim” ou em “Alexandra Alpha” terão sido inventados pelo autor. Mas para lá dessa simulação há uma evidente atitude de “observação participante” na vida das comunidades (Gafeira, em “O Delfim”, os acontecimentos em torno do 25 de Abril em “Alexandra Alpha”) que aproximam o autor da atitude etnográfica, ou da tentativa de percepção de como as pessoas e as comunidades dão sentido à vida. É destes dois romances que me ocupo a seguir.

Palma Bravo em “O Delfim” é o déspota da pequena aldeia, é uma imagem de personagens do país passado (?), de um lugar que não era propiamente “país”, mas “um sítio mal frequentado” (diz o autor em “Alexandra Alpha”). Mas a “empatia” do narrador procura compreender profundamente os sentimentos dessa personagem – ainda que o autor obviamente deteste tal tipo de pessoas. No conjunto, Palma Bravo e a aldeia-lagoa que ele domina são uma metáfora de um tempo que todos esperamos ter passado. E a cooperativa de camponeses-operários que, após o “desaparecimento” de Palma Bravo, toma conta da lagoa é um prefiguração de outros acontecimentos bem posteriores.

 De um ambiente rural em “O Delfim” passa-se em “Alexandra Alpha” para um ambiente citadino, com uma galeria de personagens, todos inesquecíveis porque “generalizáveis” pelo leitor a figuras reais que ele conhece, uns inovadores como Miguel e Alexandra, outros imobilistas,  como o intelectual afrancesado Bernardo Bernardes ou o noctívago e passadista Opus Night.  Ruy Belo é o poeta da mudança, o profeta de um país a reinventar: “Fez há pouco dois anos que veio a revolução e que me nasceu a minha filha Catarina. Só de me lembrar disto já não pode haver mundo que não me saiba a abril”. Também aqui, mais discretamente que em “O Delfim”, o leitor é provocado a decidir entre as “visões do mundo” ou “teorias” das diferentes personagens.

 O “cantar” de Ruy Belo é o momento culminante de movimentações populares narradas pouco antes e de muitos outros discretos mas frequentes sinais de anseio por uma transformação da sociedade portuguesa. Daqui ressaltam algumas perguntas, entre as quais:

- Os anseios e problemas do presente de uma dada sociedade serão “motivos” pertinentes para pesquisas históricas do passado? A literatura pode servir de incentivo à pesquisa histórica?         

 



* Docente do referido Mestrado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa.