Os "Três Traumatismos" da História de Portugal
 
 

Fonte: Miguel Real,
Portugal: Ser e Representação, Lisboa, Ed. Difel, 1998, pp. 90-96.



A reconciliação de nós connosco próprios via integração europeia, que aqui funciona como a "grande normalizadora" do nosso ser nacional, significa, antes de mais, que temos historicamente caminhado num espaço conflitual entre o modo como somos e o como imaginamos ser ou deveríamos ser. Existe, portanto, na alma de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida, forte ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização financeira nacional, hábitos passadistas, tecnologia nacional ínfima) e o que ele imagiticamente gostaria ser (o mito do progresso, a tecnologia de ponta, solidez industrial e financeira, alta qualidade de vida a todos os níveis, hábitos cosmopolitas desinibidos). A esta dupla consciência que tem animado e anima -- a maioria dos portugueses--, que se pode sintetizar na diferença imaginária, em cada época histórica, entre a realidade ficção, é o que E. Lourenço designa por "o irrealismo prodigioso da imagem que os portuguscs fazem de si mesmos".

Este "irrealismo", esta "forma mentis" de ser português, tanto tem arrastado Portugal para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito decadentista entre os séculos XVII /XVIII e o XX para a crença que somos por condição e destino um volksgeist permanente, por vezes adormecido, mas sempre virtualmente preparado para lançar as "novas naus" da civilização (alguns dos maiores de todos nós no século XX, como Pascoais, Pessoa ou Ag. da Silva não escaparam a esta condição de português). Esta "forma mentis" portuguesa, E. Lourenço designa-a tipo "traumático", ao modo psicanalítico, querendo com isso dizer que algo na nossa cultura nacional sofreu fortíssimas perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma vivência integrada na normal média da existência europeia: ser sempre mais ou menos, superior ou ou inferior, vanguarda ou proscrito, princípe ou gáfaro, não é, convenha-se, sejam quais forem os padrões epocais de estandardização dos comportamentos, um modo habitual de vida. Pelo contrário, este viver esgota-nos entre as promessas de um futuro paradisíaco, imaginada imitação de um passado paradisíaco (que nunca foi), para o qual queremos arrastar forçadamente o mundo (que verdadeiramente não nos liga mais do que qualquer outro povo de dimensão espacial e história semelhante) e a depressão psicológica e sociológica mais profunda que se exprime constantemente nos diversos discursos políticos de lamentação pelo estado do país.

E. Lourenço tenta sintetizar genealogicamente a origem e o descobrimento histórico desta particular maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a nossa consciência se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade cultural desloca-se não especificamente em função destes três "traumatismos", mas mais em função das suas consequências no modo social de vivermos e, especialmente, no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de fundamentar não a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la na mediação imagética pela qual os protagonistas da nação interiorizaram culturalmente o passado e as exigências do presente, isto é, se auto-conhecem; deste autoconhecimento que, porque vivido, é sempre ilusório (isto é, historicamente nem verdadeiro nem falso), ressalva um conjunto de imagens epocais, as quais, por sua vez, cruzadas e organizadas, constituem a imagologia que define o trabalho cultural propriamente dito de E. Lourenço.

O primeiro traumatismo da História de Portugal relaciona-se directamente com o espírito de cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro, simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heróico que definiu a conquista-reconquista do nosso território continental. Diferentemente do futuro "espírito cavalheiresco", D. Afonso Henriques possui um "espírito de guerreiro" que adormece todos os valores menos os que emergem do jogo de forças estabelecidas no campo de batalha: "O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo na verdade nos levantámos até à plena assunção da maturidade histórica prometida pelos anos e pelos séculos a esse rebento incrivelmente frágil para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternais e palavra quebrada, Teresa e Egas Moniz...). A mistura fascinante da fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de 'inconsciência alegre' e negro presságio que constitui o fundo do carácter português, está ligado a esse acto sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento. Através de mitologias diversas, de historiadores ou poetas, esse acto sempre apareceu, e com razão, corno da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso, ou num mesmo resumo de tudo isso, do providencial. É de uma lucidez e de urna sabedoria mais funda que todas as explicações positivistas, esse sentimento que o português teve sempre de se crer garantido no seu ser nacional mais do que por simples habilidade ou astúcia humana, por um poder outro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus. Esta leitura popular do nosso destino colectivo exprime bem a relação histórica efectiva que mantemos connosco mesmos enquanto entidade nacional." Este o primeiro traumatismo que, corno "acto sem historia", nos tem definido desde sempre como povo de "imaginário fabuloso" "irrealista", "quimérico", entregue por sortilégio (bom ou mau) na "mão de Deus".

Foi com idêntico espírito fundador que partimos para as Descobertas, e as fizemos com aquele risco de "inconsciência alegre" e "negro presságio" atrás citado. E nesta imprevista tarefa, fomos grandes: "... se exceptuarmos talvez a Macedónia e Roma, poucas vezes um povo partindo de tão pouco alcançou (embora sob uma forma desorbitada fautora de nova consciência de impotência mascarada de poderio) um direito tão claro a ser tido por grande."

Porém, se "o primeiro traumatismo" fora ultrapassado pela necessidade de contínua reafirmação das fronteiras territoriais e políticaspela tentativa da formação e consolidação do império marítimo, o esgotamento das forças nacionais por via deste último empreendimento foi acompanhado pelo desabamento total do que a I Dinastia tanto lhe custara a conquistar: Alcácer-Quibir levou à perda da independência e à nulificação de Portugal: "Sessenta anos em contacto directo e na economia invisível da história, porventura frutuoso, com o interlocutor imediato (a Espanha, nós) de um viver que foi e é sempre múltiplo diálogo mas que nós teimamos em completar como solilóquio, permitiram, enfim, que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constituiu um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas do que o primeiro (...). Nesses sessenta anos, o nosso ser profundo mudou de sinal."

De povo destinado à glória tornámo-nos um povo destinado à humilhação e, ambos, exaltação e vilipendiação, tomaram-se as duas faces da moeda porque a nossa personificação cultural tem tremido sempre que posta em cheque. Genealogicamente, são ramos da mesma árvore no campo imagológico de E. Lourenço. A. de Quental, por exemplo, é gémeo de Raúl Real, L. António Vemey de Agostinho da Silva e Silvestre Pinheiro Ferreira de António Quadros, Manuel Alegre de T. de Pascoais.

O Sebastianismo nascente do quadro mental depressivo gerado pela perda da independência constituiu "ao mesmo tempo, o máximo da existência irrealista que nos foi dado viver, e o máximo de coincidência com o nosso ser profundo, pois esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza racional, de urna carência, e essa carência é real. Isto é, o sebastianismo (ou o subsequente Quinto Império do padre António Vieira) é assumido como "delírio" filosófico-ideológico, como exaltação triunfante do futuro face a uma realidade mesquinha e humilhante,e, segundo E. Lourenço, é justamente esta a dupla imagem (ou a imagem formada de duas faces) que, até à nossa "normalização" europeia nos finais deste século, nos tem definido. Porque de nós não temos apenas uma imagem, mas duas, e, ainda por cima, aparente contraditórias entre si. E. Lourenço designa a construção da nossa identidade cultural como a de uma "hiperidentidade", visando nesta palavra o "irrealismo" (ausência de concordância entre o que historicamente se é e o que se julga ser) que tem animado de um modo central a "imagologia" do povo português.

As consequências deste segundo traumatismo só se fizeram sentir, pela negativa, no século XIX. De povo ontologicarnente seguro e firme, a Geração de 70 veio pôr em causa a própria existência de Portugal como povo independente: colocava-se a Antero de Quental a questão de, dada a decadência em que se vivia, se Portugal ainda era viável: "O século XIX foi o século em que pela primeira vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a imagem de povo com vocação autónoma tanto no ponto de vista lítico como cultural." 

No seu particular modo delirante de existência, e após a passagem quase quixotesca da nossa resposta ao Ultimatum inglês, ("O Ultimatum não foi apenas uma peripécia particularmentc escandalosa das contradições do imperialismo europeu, foi o traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada tornámo-nos de novo um povo sem par: eis que o Saudosismo e República surgem como movimentos públicos e culturais que redimem a nossa existência diminuída do século anterior, como já evidenciado quando se tratou de Teixeira de Pascoais.

O "terceiro traumatismo" resulta da perda do império 1974/75: "Quinhentos anos de existência imperial, mesmo o desmazelo metropolitano ou o abuso colonialista que era inerente ao privilégio dos colonizadores, tinham fatalmente de contaminar e mesmo de transformar radicalmente a imagem dos Portugueses não só ao espelho do mundo, mas ao nosso próprio espelho. Pelo Império devimos outros, mas de tão singular maneira que na hora em que fomos amputados à força (mas nós vivemos a amputação como 'voluntária') dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa famigerada existência 'imperial' e em nada nos afectasse o regresso aos estreitos e morenos muros da pequena casa lusitana." É um traumatismo sem aparente trauma: tínhamos, deixámos de ter um império, de ser um império --e tudo pareceu ter ficado na mesma na nossa consciência nacional. Os refugiados chegaram e arrumaram-se à sua custa e à custa do Estado, pulverizando-se pelo país e regressando àquela que parece ser a sua vocação de sempre: pequenos comerciantes ou funcionários públicos médios. O complexo de culpa de termos sido "colonizadores" chegou-nos tardiamente (pós-25 de Abril de 1974) e desembaraçámo-nos dele nos anos subsequentes, entregando aos movimentos de libertação das ex-colónias o que havia a entregar. No ar, restaram umas vagas promessas sobre a perservação da língua comum. Cada um dos elementos do par Portugal-ex-colónias foi então à sua vida: Portugal, concretamente tornou-se a si próprio como alvo de atenções, balanceando entre ser de novo vanguarda da Europa (agora, uma vanguarda marxista) e ser apenas Europa (integração na então C.E.E.). "O povo unido jamais será vencido" e "Europa Connosco" sintetizam na boca das massas as duas grandes estratégias para Portugal, sem que por qualquer delas fizesse sentido para Portugal arrastar atrás de si quinhentos anos de império. Do conflito entre uma espécie de consciência de culpa do passado e esse desinteresse presente sobre o "lá longe", agora que de certo modo "a casa nos ardia por dentro", nasceram os dois actuais espinhos da consciência nacional: vinte anos de guerra cruel em Angola e vinte anos de anexação de Timor pela Indonésia. Não é pouco para a pequenez que somos.

"Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta deste império, pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa consciência um traumatismo profundo--análogo ao da perda da independência --,mas um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo. Contudo, todos nós assistimos a este espectáculo surpreendente: nem uma nem outra coisa tiveram lugar." De facto, conscientemente, nada parece ter abalado a nossa constante hiperidentidade como modo de ser, e o revolucionarismo vanguardista socialista pós-25 de Abril pode interpretar-se historicamente nesta linha subterrânea de nos assumirmos messianisticamente face ao outro. Porém, a nossa entrada na Europa comum é o facto mais saliente da solução inconsciente deste "terceiro traumatismo".

A entrada de Portugal na Europa constitui, hoje, o grande desafio, o "Desafio Europeu", à imagem da nossa identidade cultural. Em acelerada perda de soberania, que a futura moeda única europeia acentuará decisivamente, a integração de Portugal dá-se em conjunto com os restantes países que assumiram Maastrich e de todos (e, portanto, não só de nós) vão desaparecer os "particularismos" que são apenas "o folclore" de identidade profunda de cada um no sentido da Grande Unificação de formas, estruturas e comportamentos. Ou seja, a Europa irá funcionar para nós como a Grande Normalizadora, dando-nos a imagem simultânea da nossa pequenez enquanto país nela integrado, mas também da nossa grandeza quanto a ela pertencente.


Textos didácticos