Debate sobre a extinção dos homens de  Neandertal

              A Busca Solitária do "Sapiens Sapiens"

             

              Por CLARA BARATA

              PÚBLICO, Lisboa, Sábado, 16 de Setembro de 2000

 

              É algo ainda muito recente, em termos geológicos, e inédito, em

              termos da história da evolução dos hominídeos: há cerca de 30 mil

              anos que uma única espécie de humanos ocupa o planeta Terra. O

              desaparecimento do homem de Neandertal, o último companheiro do

              "Homo sapiens sapiens", continua a ser um mistério. Mas talvez a

              ecologia própria destes dois grupos de humanos possa ajudar a

              explicá-lo.

 

              Hoje, todos os seres humanos pertencem a uma única espécie: somos todos

              "Homo sapiens sapiens". Estamos nesta solidão há cerca de 30 mil anos,

              quando os últimos homens de Neandertal desapareceram, reduzidos que

              estavam a poucos refúgios em zonas de clima ainda ameno numa época

              glaciar - o último refúgio terá sido mesmo a Península Ibérica e Portugal. Mas

              porque é que os homens de Neandertal desapareceram? Para esta pergunta

              não existem respostas definitivas, mas uma nova abordagem tem vindo a

              ganhar terreno: a que explica a extinção dos Neandertal como uma

              consequência de estratégias ecológicas diferentes das usadas pelos homens

              anatomicamente modernos. Foi esta forma de analisar a solidão do "Homo

              sapiens sapiens" que esteve em foco em Lisboa, numa das sessões do VI

              Congresso da Associação Europeia de Arqueólogos, que hoje termina.

 

              Pululam teorias para explicar a extinção dos homens de Neandertal - ou

              "Homo neanderthalensis", se considerarmos que são uma espécie diferente da

              nossa, coisa que não é clara para os cientistas. Entre as possíveis explicações

              para o seu desaparecimento, há cerca de 30 mil anos, existem teorias radicais

              e com um toque de incorrecção política, como a da terem sido substituídos

              por uma espécie superior (a nossa), ou então a de terem sido dizimados pelos

              humanos anatomicamente modernos, que começaram a sair de África há

              cerca de 100 mil anos.

 

              Mas, mais recentemente, tem vindo a ganhar algum terreno a teoria da

              continuidade regional ou da hibridização. Esta teoria tem várias variantes, mas

              basicamente estipula um modelo que fala de um mosaico de situações

              regionais, que levaram a uma substituição pontuada de um tipo de humanos

              por outros - e, talvez, à hibridização, não só cultural como biológica, embora

              no genoma dos homens modernos não pareça restar vestígios do ADN dos

              homens de Neandertal.

 

              O debate, organizado por investigadores do Museu de Gibraltar - onde, em

              1848, foi encontrado um dos primeiros fósseis de Neandertal -, decorreu em

              torno da premissa de explicar a extinção destes humanos numa perspectiva

              ecológica, que não torce o nariz à hipótese da hibridização, pelo menos em

              casos pontuais.

 

              A importância da carne...

 

              O destaque foi dado às diferentes estratégias de adaptação ecológica dos

              humanos anatomicamente modernos e dos homens de Neandertal. O clima,

              conclui-se da abordagem proposta pela equipa de Clive Finlayson, do Museu

              de Gibraltar, teve um papel fundamental na saída dos homens modernos de

              África para outras regiões do globo e no desaparecimento dos neandertais.

 

              O avanço dos gelos e da aridez a norte, na Europa, alargou os habitats

              semelhantes às savanas do sul, e propiciou migrações a partir de África de

              populações que se tinham adaptado a uma alimentação baseada na caça de

              grandes herbívoros das planícies.

 

              "O consumo de carne tem uma relação de custo-benefício mais eficiente",

              defendeu Geraldine Finlayson, do Museu de Gibraltar. É uma forma rápida

              de obter proteínas, e os seres humanos mantêm ainda hoje uma característica

              interessante em termos evolutivos, que permite construir reservas de gordura

              para tempos de escassez: "De todos os mamíferos, os homens têm os níveis

              mais altos de tecido adiposo, ainda mais elevados que os animais do

              Árctico", explicou.

 

              Por outro lado, sublinhou Geraldine Finlayson, a organização necessária para

              planear caçadas e manter reservas de comida confere outros tipos de

              vantagem, nomeadamente ao nível da complexidade social, que leva à

              constituição de grupos grandes e propicia até as trocas comerciais. Este tipo

              de estratégia de sobrevivência faz com que tenham grandes territórios, e

              acompanhem as migrações dos animais que caçam - o que terá sido um dos

              bons motivos para a saída do clima tropical de África.

 

              Quanto aos homens de Neandertal, ao contrário do que alguns cientistas

              defendem quando consideram a sua robustez, estes seres, apesar de viverem

              na gelada Europa, não eram propriamente amantes do frio.

              Concentravam-se, pelo contrário, nas zonas mais amenas, nas margens do

              Mediterrâneo. E, embora o estudo de alguns locais onde viveram revelem

              uma certa preferência por carne, essas situações parecem ter sido mais uma

              solução de recurso do que a sua verdadeira preferência, afirmou Geraldine

              Finlayson.

 

              A sua estratégia de alimentação baseava-se menos na caça de grandes

              herbívoros do que no aproveitamento de uma série de recursos disponíveis

              num raio de poucos quilómetros, fossem eles carne ou frutos e outros

              produtos vegetais.

 

              Nick Barton, do Departamento de Antropologia da Universidade Oxford

              Brookes, estudou várias grutas em Gibraltar, que foram ocupadas por

              populações de neandertais, e penetrou nos mistérios da sua dieta: num

              ambiente rico em recursos tanto estuarinos como marinhos, encontrou

              vestígios do consumo de pequenos herbívoros, de moluscos e bivalves, e até

              de cetáceos, como focas e golfinhos. Mas não se pense que recolhiam a

              comida indiferentemente: "Eram 'gourmets', escolhiam os maiores mexilhões

              que encontravam", disse.

 

              ... e ameaça do gelo

 

              Mas, precisamente por dependerem dos recursos disponíveis das zonas que

              habitavam, quando a sua variedade era reduzida por causa do avanço dos

              gelos - que, por seu lado, fazia com os vários grupos ficassem restringidos a

              um pequeno território, sem puderem fazer grandes migrações -, as

              populações entravam em "stress".

 

              Ou seja, o risco de extinção pairava sempre sobre as suas cabeças, num

              período glaciar e de grande instabilidade climática. "As alterações do clima

              eram sentidas de uma forma mais drástica e, como a mobilidade das

              populações era reduzida, perdia-se diversidade genética, o que significa que a

              resposta destas populações à pressão da selecção natural era seriamente

              afectada", defendeu Darren Andrew Fa, também do Museu de Gibraltar.

 

              Terá sido desta forma que os homens de Neandertal se foram reduzindo a

              zonas de refúgio, cada vez mais escassas, até ao seu desaparecimento. Ou

              seja, a ecologia particular dos dois grupos de humanos pode explicar o

              desaparecimento de um deles e o sucesso do outro.

 

              Isto sem ser necessário chamar à liça modelos que impliquem relações de

              competição ou conflito com os homens modernos - que são difíceis de aceitar

              para alguns investigadores, pois ambas as populações conviveram em

              espaços contíguos durante cerca de 60 mil anos, de acordo com um modelo

              matemático desenvolvido pela equipa de Gibraltar.