Pieter Geyl e Arnold Toynbee: Um debate

(Radiofundido pela BBC em 4 de Janeiro e 7 de Março de 1948)

Texto extraído da obra Teorias da História, ed. Patrick Gardiner, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 375-389.
 
 

PIETER GEYL nasceu na Holanda em 1887. Foi Professor de História Moderna na Universidade de Utreque, tendo também já ensinado na Universidade de Londres, no Smith College, bem como na Universidade de Harvard. Foi, em 1949, membro do Institute for Advanced Study em Princeton, e fez, em 1954, as Connferências Terry em Yale. O Professor Geyl é membro da Academia Real de Amesterdão, membro estrangeiro da Real Academia Flamenga de Bruxelas e membro correspondente da Real Sociedade Histórica de Londres. Já doutorado pela Universidade de Leiden, possuindo ainda o grau de L L. D. «honoris causa» da Universidade de St. Andrews.

Antes da guerra, Geyl era sobretudo conhecido por apoiar a teoria dos «Grandes Países-Baixos». Em 1930, começou a aparecer uma história conforme a esta teoria. Dela se encontram publicados em inglês duas partes: The Revolt of the Netherlands, 1555-i6o9 e The Netherlands Divided, 1609-1648. Depois da guerra, Geyi tem-se sobretudo ocupado de questões de historiografia e teoria da história. Das suas últimas obras, entre as mais famosas contam-se, Napoleon: For and Against (holandês, 1946; inglês, 1949), Debates with Historians, e Use and Abuse of History (ambos de 1955).
 
 


Será possível conhecer o padrão do passado?


 



Geyl: Os seis volumes do Study of History de Toynbee apareceram antes da guerra, mas só depois da guerra é que se tornaram famosos o livro e o autor. Li agora o livro, na esperança de encontrar nas suas páginas a resposta às suas perplexidades, uma geração mal recomposta ainda das terríveis experiências da guerra e ávida já de futuro. O autor pretende, com efeito, revelar-nos, no espectáculo à primeira vista caótico e confuso da história humana, um padrão, um ritmo.

A minha crítica vai ser contundente. Vou atacar o ‘método e o próprio sistema. Gostaria, no entanto, de falar da grande impressão que a obra me causou. Alimenta-se de uma cultura vastíssima, prossegue sob a égide de uma imaginação potente e exprime-se num estilo simultaneamente vivo, colorido e dúctil.

Segundo Toynbee, a história processa-se adentro da estrutura de civilizações, unidades muito mais amplas do que os estados nacionais sobre que tem incidido de modo excessivamente exclusivo a atenção dos historiadores. Conta ele vinte e uma dessas civilizações nos seis mil anos de que temos notícia.

Uma das mais essenciais das suas observações é que as actividades humanas são regidas por uma lei de desafio e réplica. Não são condições propícias que trazem à superfície as melhores qualidades da raça humana; são os obstáculos e as dificuldades que se vencem. Por melhores qualidades entende Toynbee as qualidades espirituais. Após a génese de uma civilização, Toynbee vê-a crescer, isto é, observa corno ela vai vencendo desafios, ganhando assim mais terreno. Não existe, em seu entender, um fim predestinado ao crescimento de qualquer civilização. Neste ponto de importância capital, difere a sua teoria da famosa obra de Spengler, A Decadência do Ocidente, cujo sistema nos ocorre apesar disso, perante a insistência de Toynbee em salientar a vida orgânica e independente das civilizações. De qualquer forma, as civilizações podem, segundo ele, continuar a crescer indefinidamente. A história revela que, na prática, a maior parte delas vem a sucumbir mais cedo ou mais tarde. Mas se realmente sucumbem, o facto deve-se à falta de réplica a um desafio; não se trata de férrea necessidade, mas de limitações humanas.

Contudo, uma vez sobrevindo o colapso (continuo a resumir o sistema de Toynbee), está irremediavelmente condenada urna civilização. Entra num período de desintegração que nem os mais activos, os mais extraordinários, os mais corajosos dos seus «membros» terão forças para deter. A personalidade criadora, ou a minoria criadora, mais não podem agora fazer do que lutar na retaguarda e protelar o dia fatídico, sem contudo evitar a catástrofe final. Nesta altura, «desafio e réplica» passam a ser «récuo e avanço». Em vez de diferenciação passa a haver uniformização, a minoria dominante passa a ser classe governante e a maioria um «proletariado». Não é isto, evidentemente, o fim de tudo. No seio da igreja universal, que na visão de Toynbee é mais urna característica da fase da desintegração, tem-se vindo a formar urna nova seita, a crisálida de onde a seu tempo se erguerá urna nova civilização.

Ora, como chegou o autor a este esquema de evolução? A darmos-lhe crédito, deduziu-o das suas observações despreconcebidas da história humana. Pretende ele que é estritamente empírico o seu método. ~, cm boa verdade, ele faz preceder cada uma das suas argumentações de um certo número de casos ou exemplos à laia de ilustração. Simplesmente espantosos, a vastidão do seu saber e o incansável vigor da sua exposição. Mas apesar disso, dois pontos há de importância tal que constantemente se deveriam ter em mente de que o Professor Toynbee não parece, todavia, estar devidamente consciente.

Fundamenta uma argumentação em, digamos, vinte casos seleccionados ao acaso das histórias de todos os povos e séculos .A impressão causada pode ser muitíssimo convincente, mas os vinte casos são casos seleccionados escolhidos de entre duzentos, ou duzentos mil!

Este é o primeiro ponto. Eis o segundo: mesmo os vinte casos seleccionados podiam, na sua maior parte, ser apresentados de um modo levemente, ou totalmente, diferente,.com o resultado de que deixariam de apoiar a argumentação. Um erro que, segundo creio, está na base de grande parte da sistematização de Toynbee é o facto de ele partir do princípio de que os acontecimentos ou fenómenos históricos em que fundamenta as suas conclusões são dados firmes e inabaláveis: que lhes é inerente e incontestável o significado que lhes atribui no intuito de pôr em evidência a sua semelhança mútua (a semelhança pela qual pretende estabelecer a regra, ou tendência, ou lei). Concedo que essa comparação tenha, com as devidas reservas, a sua utilidade. Sem ela, nunca seria possível criarem-se ideias gerais em história. Mas, por outro lado, fácil é violar a história quando, para fins de comparação, se destaca um facto histórico das circunstâncias particulares e insusceptíveis de repetição que lhes são próprias. E assim é que quase não há um incidente ou fenómeno citado por Toynbee para ilustrar uma determinada tese que não dê origem a objecções no espírito do leitor -- se por acaso o leitor souber alguma coisa acerca do facto em causa.

Consideremos o passo cm que Toynbee apresenta a Holanda como o exemplo flagrante de uma civilização que deve a sua origem às duras condições criadas pelo mar. Neste caso, é evidente que o autor passa em claro o facto de que as regiões expostas da Holanda se tornaram habitáveis com c auxílio de povos que viviam em países mais amenos e que tinham despertado mais cedo para a civilização, que o solo holandês, uma vez dominada a água, se revelara excelente, e que a sua situação era extraordinariamente favorável ao comércio internacional. É-se levado a perguntar se será legítimo isolar da multifária complexidade da realidade as condições duras e omitir as condições favoráveis.

E, contudo, é apoiando-se num argumento tão parcial que Toynbee propõe a tese: «O estímulo é tanto maior quanto maior for o desafio», acrescentando que isto parece ser uma lei que não conhece qualquer limite para a sua validade». Diz que «até ao presente, não tropeçámos com quaisquer limites palpáveis em nenhum ponto da nossa visão empírica».

Ora eu acho que, antes de se falar de leis e empirismo e antes de se evocarem os métodos da ciência, se devia fazer, para cada caso isolado, um exame de causa e efeito muitíssimo mais rigoroso, bem como uma eliminação, uma isolação e uma definição muitíssimo mais cuidadosas.

Permita-se-me acrescentar, em boa justiça, que Toynbee se não limita à lei que acabo de citar. Pressente que lhe é impossível continuar a lançar indefinidamente os seus desafios e não tarda que o vamos encontrar meditando sobre uma «lei dominante» para atenuar o teor absoluto da primeira lei. Após estonteante apresentação de novos exemplos, conclui: «há desafios de severidade salutar, que estimulam o sujeito humano a uma réplica criadora; mas há também desafios de esmagadora severidade, aos quais o sujeito humano sucumbe». É de facto muito simples, em meu entender. Se eu der uma pancada na cabeça de alguém, é muito provável que fortemente lhe desperte a energia e que o golpe me seja restituído com vigor. Mas pode a pancada ser tão forte que nada lhe reste para replicar ou (para empregar o estilo do nosso autor) que para sempre se lhe esgote a fonte ele toda a energia. Não é necessário empreender uma investigação histórica erudita, supostamente empírica, para compreender que o mesmo pode acontecer no mundo das comunidades. Mas Toynbee formula no fim de modo impressionante e em «terminologia científica», como lhe chama, a sua lei dominante: «O desafio de maior estímulo é o que se situa no meio termo, entre uma falta e um excesso de severidade».

E depois? Gostaria eu de lhe perguntar. Se tentarmos aplicar esta lei cientificamente enunciada, embora, receio bem, não cientificamente estabelecida descobriremos antes de mais nada que ela se refere, em cada situação histórica determinada, a apenas um único elemento, um entre muitos, e bem melindroso seria abstraí-lo dos outros. Além disso, o que importa não será definir o que é demais e o que é de menos, onde é que está o doirado meio-termo? Quanto a isso, a lei nada tem a dizer. É preciso que em cada caso de novo se defina, por meio da observação.

Cumpre-me ir direito aos pontos essenciais do sistema. Terá Toynbee provado que as histórias das civilizações cabem dentro destas fases rigidamente vincadas de crescimento e desintegração, separadas por um colapso? Terá ele provado que a obra dos espíritos criadores, ou das minorias criadoras, só na primeira fase poderá alcançar êxito, e que está, na segunda, condenada a ser esforço tão infrutífero?

Não, penso que o não provou. Como hei-de saber que a diferença reside no criador triunfante em acção numa sociedade em crescimento, e naquele que luta sem esperança numa sociedade em desintegração? Não fiquei suficientemente convencido quanto à diferença essencial entre as fases das civilizações. Simultaneamente presentes em todos os estádios da história humana, existem boas e más tendências, e a compreensão do intelecto humano não basta para lhe permitir pesá-las convenientemente e dizer, antes do acontecimento, qual delas ficará na mó de cima. Quanto à teoria de que o dirigente individual -- ou a minoria dirigente só é capaz de empreendimentos criadores numa sociedade em crescimento e está condenado ao fracasso numa sociedade em desintegração essa teoria falha automaticamente quando a distinção deixa ele admitir-se na forma absoluta proposta pelo nosso autor.

Alegra-me que o senhor aqui se encontre presente, Toynbee, para me responder. Pois é certo que se trata de um ponto de grande importância prática. A Study of History não anuncia categoricamente a ruína, como o livro de Spengler, logo no título. Contudo, em mais de um passo nos dá o senhor a entender que a civilização ocidental sucumbiu já no século XVI, em consequência das guerras religiosas. Os últimos quatro séculos seriam deste modo, de acordo com o seu sistema, um longo processo de desintegração cujo fim evitável é o colapso -- se se der o milagre de uma reconversão à fé dos nossos antepassados.

Encontramos, sem dúvida, à nossa volta muitas razões para pessimismos. Não vejo, no entanto, motivo para que se interprete a história de modo a afundar-se no desespero a nossa sensação de insegurança. As gerações anteriores tiveram igualmente os seus problemas e conseguiram ultrapassá-los. Nada existe na história susceptível de abalar a nossa confiança num futuro aberto de par em par diante ele nós.

Toynbee: Muito bem, a B. B. C. apresenta-vos uma espécie de "desafio de cricket entre historiadores". O lançador acaba de pôr a bola em jogo mas sereis vós a decidir, quando eu tiver respondido to Professor Geyl e quando tivermos em seguida trocado algumas ideias, quem terá levado a melhor. É claro que não mereceria a pena preocuparmo-nos demasiado com esta questão se se tratasse pura e simplesmente ele uma competição pessoal entre jogadores. Quer Geyl elimine Toynbee, quer Tovribee destrua o resultado de Geyl, cm nenhum elos casos se acabará o mundo. Mas a verdade é que a sorte do mundo o destino da humanidade está de facto implicada nesta nossa questão sobre a natureza da história; e é, sem dúvida, porque isto tem realmente importância uma importância enorme não apenas para nós dois aqui presentes, mas para vós e para todos quantos existem, e para as gerações ainda por nascer, que a B. B. C. organizou este debate entre mim e o meu velho amigo e colega, o Professor Geyl.

Ao responder-lhe, farei incidir a minha atenção sobre os pontos que me parecem ser as suas duas principais linhas de ataque das suas críticas gerais é a seguinte: «A visão que Toynbee tem da história leva ao pessimismo» E a outra: «Toynbee entregou-se a uma tarefa impossível. Tenta atribuir um sentido à história humana, e isso está para além da capacidade do espírito humano». Dedicarei a minha atenção a este segundo ponto porque ele é dos dois, estou certo, de longe o mais importante.

Seja-me permitido resolver, em primeiro lugar, o capítulo «pessimismo». Suponhamos que a minha visão da história conduzia de facto a uma conclusão pessimista: que importância teria isso? «Pessimista» e «optimista» são uma coisa, «verdadeira» e «falsa», outra.

O Professor Geyl interpretou-me correctamente quando vos disse que eu tenho sérias apreensões acerca do estado do mundo actual. Não sentis vós próprios idênticas apreensões? Não as sentirá o Professor Geyl? Nem é preciso dizê-lo, por certo. Mas o que não é já tão certo é a atitude que devemos tomar a este respeito; e, neste ponto o Professor Geyl foi generoso para comigo ao revelar-vos a posição. Disse-vos ele que eu não creio na predestinação e que, questão de suprema importância, me encontro no pólo oposto ao famoso filósofo alemão Spengler. Disse-vos que a minha perspectiva é inversa à do materialismo histórico; disse-vos que, segundo o meu ponto de vista, o processo da civilização é vencer os problemas materiais e atacar, para resolvê-los, OS espirituais; disse-vos que eu acredito no livre arbítrio: na liberdade que o homem tem de replicar todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu espírito quando a vida o põe frente a frente com um desafio. Pois bem, é no mesmo que eu acredito. Mas, pergunto-vos, como é possível alguém empenhar-se de alma e coração sem fazer os possíveis por descobrir os factos relevantes para os encarar de frente?— tanto os factos terríveis como os encorajantes.

No estado do mundo actual, parece-me bem que os dois factos verdadeiramente ameaçadores consistem em que as outras civilizações por nós conhecidas todas sucumbiram já e que a nossa história recente revela algumas tendências que, nas histórias das civilizações desfeitas foram sintomas flagrantes de colapso. E qual é a moral da história? De modo algum recuar perante os factos. O próprio Professor Geyl os admite. E nem tão-pouco deixar-se intimidar pela «sensação de insegurança» susceptível de advir destes factos terríveis. «Não vejo motivo», acabou o Professor Geyl ele dizer, «para que se interprete a história de modo a afundar-se no desespero a nossa sensação de insegurança».

Isto é uma crítica declarada a Spengler, que diagnosticou a condenação da nossa civilização, e que nada mais tem a sugerir senão que cruzemos os braços e aguardemos a inevitável machadada. Essa jogada não me derruba, contudo, nenhum «wicket», pois em minha opinião, como vos disse Geyl, a insegurança é um desafio à acção, não uma sentença de morte que nos paralise a vontade. Ainda bem que conhecemos os destinos de outras civilizações; é esse conhecimento a carta que vos avisa dos escolhos que há para a frente. O conhecimento pode ser poder e salvação, se tivermos ânimo para o usar. Há um famoso epigrama grego que reza assim: «Sou o túmulo de um marinheiro naufragado, mas que isso te não amedronte, irmão marinheiro, de levantar ferro; porque, se nós naufragámos, os outros barcos continuaram a navegar».

«Nada existe na história», concluiu o Professor Geyl, «que possa abalar a nossa confiança num futuro aberto de par em par diante de nós». Podiam ter sido ditas por mim, tais palavras, mas não vejo o que é que habilita o Professor Geyl a usá-las. A melhor consolação que o Professor Geyl tem para nos oferecer é a seguinte: «Se tivermos o cuidado de não rios deixarmos enfraquecer ao tentar levantar cartas marítimas, podemos talvez ter a sorte de passar ao largo dos recifes». Não, não o pintei com as cores exageradamente negras, pois que é ainda mais sombrio o seu ponto de vista: «Fazer um mapa da história», diz ele, «é absolutamente impossível». O mapa do Professor Geyl é, como vedes, o «nada perfeito e absoluto» do homem da campainha, de Lewis Carrol, que pescou o tubarão. Também Geyl tem um mapa, tal, como Spengler e eu próprio. Todos nós temos um mapa, quer o confessemos quer não, e nenhum mapa é mais do que o tiro dum só homem para atingir o alvo da verdade. Mas, dos três, o mapa em branco é, sem dúvida, o mais inútil e o mais perigoso.

O Professor Geyl considera-me pessimista porque vejo na reconversão à fé de nossos pais um meio de salvação. «Eis», diz ele, «uma visão desnecessariamente sombria da nossa situação»—como a velhinha a quem aconselharam a entregar o caso à Providência e que exclamou: «Santo Deus! chegámos a esse ponto?»

Que mapa da história tinham os nossos antepassados? Viam-na eles como uma história narrada por Deus, desenrolando-se desde a Criação através da Queda e da Redenção até ao Juízo Final. Como o Professor Geyl afirma vê-la, a história parece um conto contado por um idiota, que não significa nada. Não concordais talvez com a opinião dos nossos antepassados de que a história é uma revelação da providência divina; mas não achais que é bem pobre troca, substituir fé pela opinião de que a história não tem sentido?

É claro que o Professor Geyl não está, quanto à sua atitude, mais isolado do que eu, quanto à minha. Aquilo a que se poderia chamar a concepção da história como ininteligível tem estado em moda entre os historiadores ocidentais nas últimas gerações. O mais estranho é que alguns defensores de tal ponto de vista, não sei se deva incluir entre eles o Professor Geyl, o mantêm sobretudo com o pretexto de que ele é científico. Claro que não é senão humano que os historiadores tivessem querido ser científicos numa época em que a ciência goza de um tal prestígio. Eu próprio, como historiador, creio que a ciência tem muito que nos ensinar. Mas como é estranho pensar que se é científico por se desesperar de encontrar sentido! Pois o que é a ciência afinal? Apenas um nome mais para a utilização cuidada e escrupulosa do espírito humano. E, se os homens desesperam da razão, estão perdidos. A Natureza não nos deu asas, nem peles, nem garras, nem antenas, nem trombas de elefante; mas deu-nos o intelecto humano o instrumento mais eficaz, se não formos demasiado tímidos para o utilizarmos. E o que é que faz este intelecto científico? Observa os factos, mas não se detém aí. Observa os factos e procura atribuir-lhes um sentido. O que ele faz é, como vedes, exactamente aquilo que o Professor Geyl me censura por eu o procurar fazer em relação aos factos da história.

Será realmente a história, para a ciência, um osso demasiado duro de roer? Quando o intelecto humano arrancou à natureza física o segredo da ciência, iremos nós submetermo-nos a uma sentença ex cathedra de que a ambição de descobrir o segredo da história humana estará para sempre condenada ao fracasso? Não é preciso que ninguém nos venha dizer que o Homem é um osso mais duro muito mais duro do que o. átomo, Descobrimos como se desintegra o átomo e corremos agora o risco de o desintegrarmos para nossa própria destruição. Em comparação com a Física, a ciência do Homem é tão difícil que as nossas descobertas nos dois campos foram seguindo em passos desiguais até que por completo se desacertaram. Exactamente por isso é que, em parte, nos encontramos neste momento em apuros. Esquivar-se-á a ciência à tentativa de fazer qualquer coisa? «O verdadeiro estudo da humanidade é o homem», diz Pope. «O intelecto humano» suspira Geyl, «não é suficientemente compreensivo».

Eu digo: Não nos podemos dar ao luxo de um tal derrotismo:ele é indigno da grandeza do espírito humano e é refutado por aquilo que o espírito humano realizou no passado. O espírito alcançou todas suas vitórias por uma ousadia bem calculada. E hoje, diante dos nossos olhos, a ciência lança uma ofensiva caracteristicamente ousada, no ponto que é a área decisiva do campo de batalha mental. Tem já os dentes ferrados neste osso, o osso humano. Uma das queixadas é a jovem e estimulante ciência da psicologia, que nos vai rasgando horizontes mentais totalmente novos, exactamente na direcção em que mais precisamos de maior amplitude de visão. A outra, é a disciplina das estatísticas, proibitiva mas compensadora. A ciência entregou-se agora seriamente à tarefa de abarcar a natureza humana e de lhe ensinar, pelo entendimento, a dominar-se e, com isto, a libertar-se. A ciência, tanto tempo preocupada com os enigmas da natureza não-humana, veio agora tomar parte nas pesquisas da filosofia e da religião. E veio no momento exacto, este desvio das suas energias; com efeito, não há tempo a perder. Estamos empenhados numa luta de vida e de morte. E nesta hora crítica, não terá a ciência nenhum apoio a esperar dos historiadores que se afirmam científicos?

Bom, nesta «luta mental», pus-me deliberadamente em risco ao colocar sobre a mesa a minha maneira ele ver os factos históricos. Nunca me passaria pela cabeça pretender que a minha interpretação pessoal é a única possível. Estou convencido de que há muitas maneiras diferentes e alternativas de analisar a história, cada uma delas verdadeira em si própria e esclarecedora na sua aplicação; tal como, ao dissecar um organismo, é possível lançar luz sobre a sua natureza, pondo a descoberto quer o esqueleto, quer os músculos, quer os nervos, quer o aparelho circulatório. Nenhuma destas dissecações diz a verdade toda, mas cada uma delas revela uma faceta genuína. Sentir-me-ia muito feliz se por acaso eu tivesse posto a descoberto uma faceta genuína da história, e mesmo então mediria o meu êxito pela velocidade com que a minha obra com esta minha orientação fosse desactualizada por obras posteriores de outras pessoas, neste mesmo campo. No curto espaço de tempo de uma vida, o contributo pessoal do erudito individual para o enorme e sempre crescente rio do conhecimento mais não pode ser do que um pequenino balde de água. Mas se ele fosse capaz de inspirar ou provocar outros eruditos para lançarem também os seus baldes, então sim, ele poderia realmente sentir que cumprira de facto a sua missão. E a missão de atribuir um sentido à história é uma das mais prementes necessidades dos nossos dias peço-vos que me acrediteis.

Geyl: Bom, Toynbee, devo confessar que senti uma certa inquietação enquanto o senhor foi derramando sobre mim essa torrente de eloquência, de espírito e persuasão ardente, mas era exactamente isso o que eu tinha a esperar de si. E agora que acabou, sinto certo alívio ao ver que ainda aqui estou e que a minha posição não foi abalada.

O Professor Toynbee retrata-me como uma daquelas pessoas que confundem com pessimismo a coragem de ver os males e se refugiam dos perigos do nosso tempo num optimismo ilusório, quando os outros tocam a reunir para a acção. Mas terei eu dito que não corremos perigo? E que não se impõe a acção? O que eu disse foi que o sistema de Toynbee conduz a uma espécie errada de pessimismo porque leva à impressão de que a acção é inútil. «Mas eu acredito no livre arbítrio do homem», replica Toynbee. Eu sei. Apesar disso, contudo, o seu sistema declara que está condenada a civilização que sofreu um colapso. Ora Toynbee insinuou várias vezes que a nossa civilização ocidental sofreu um colapso já no século XVI e que, consequentemente, mau grado todos os nossos esforços, não será impossível evitar a catástrofe .A não ser mediante uma condição, a não ser que nos permitamos reconverter-nos à fé dos nossos antepassados. E, neste ponto, Toynbee exclama: «Como vedes, não sou assim tão pessimista». Talvez não. Mas se por acaso se tem uma opinião diferente, tanto acerca da eficácia como das probabilidades de aplicação da sua panaceia especial, não se pode deixar de pensar que o que Toynbee nos oferece não passa de uma triste consolação. Ele fala como se não nos fosse possível progredir «a discutir com tanto calor e a fazer tanta propaganda», como ele diz em ar de desprezo, «à volta das nossas moléstias políticas e económicas». A perda da fé religiosa é que é o perigo mortal. Para a maior parte de nós, isto significa a condenação de todos os nossos esforços à inutilidade.

É claro que, Toynbee, ao descrever-me como um desses historiadores que abraçam a concepção da história como ininteligível é consequência apenas da sua pitoresca maneira de se exprimir. Lá porque não posso aceitar nem os seus métodos nem o seu sistema, não se segue que, em meu entender, a história não tenha qualquer sentido eu não acredito que em tempo algum venha a ser possível reduzir o passado a um padrão tão rígido que nos permita prever o futuro, admito. Contudo, para mim, tal como para o senhor, a função mais importante do historiador é interpretar o passado nele encontrar um sentido é, embora simultaneamente a menos científica, a mais inevitavelmente subjectiva das suas funções.

Surpreende-me verificar que o senhor me conta entre os historiadores que julgam que a sua concepção de história assenta firmemente em fundamentos científicos. É, na realidade, o senhor quem pretende proceder conformemente ao empirismo em direcção a leis de valor universal, ao passo que eu tenho vindo a insinuar que estes e outros termos científicos que o senhor gosta de utilizar não têm qualquer significado real numa discussão histórica. Não é verdade que ainda agora o senhor inferiu da conquista do mistério do átomo a certeza de que o espírito do homem há-de vir a ser capaz de conquistar igual mente o mistério do processo histórico? Em minha opinião estas proposições são fundamentalmente diferentes.

Permita-me que particularmente recorde o que disse acerca da natureza incerta dos fenómenos históricos; da dificuldade de os separarmos dos seus contextos; e ainda da minha objecção de que os casos e os exemplos espalhados pelas suas páginas foram arbitrariamente seleccionados de um número infinito, não tendo por conseguinte o valor de testemunho que o senhor lhes atribui.

Toynbee: Não há dúvida de que o senhor considera importante este último ponto, Geyl, visto que com ele iniciou a sua exposição e de novo a ele voltou. Vejo onde quer chegar. Decidi tratar a história em termos de civilizações, de que há, é claro, muito poucos espécimes; mas, nos exemplos que apresento e nas conclusões que tiro, não me restrinjo a esses casos grandes e raros; vou saltitando por toda a parte, recolhendo para ilustrar as minhas conclusões eventos em escala muito menor os quais ao senhor parecem escolhidos arbitrariamente só porque são alguns tirados de um grande número. Também é certo, como o senhor apontou, que eles se prestam a mais do que uma interpretação. Sim, penso que essa sua crítica é leal e arguta. Gostaria, em resposta, de dizer duas coisas. Como disse há momentos, penso que o mesmo acontecimento histórico pode muitas vezes ser legitimamente analisado de várias maneiras diferentes, cada uma das quais revela um aspecto da verdade histórica verdadeiro nessa medida embora não contenha toda a verdade. Eu próprio obriguei muitas vezes o mesmo acontecimento histórico a prestar deste modo um duplo ou um triplo serviço, e não me parece que isto seja deturpar os factos. Como já disse, podem ser correctas várias dissecações diferentes, cada uma à sua maneira.

Em segundo lugar, devo dizer que apresento estes exemplos tirados da pequena evolução histórica, não por causa deles próprios, mas para indirectamente lançar luz sobre as unidades maiores, a que chamo civilizações e que constituem o objecto principal do meu interesse. Procedi deste modo por ser ainda tão pequeno, no primeiro estádio da história humana em que se dá o caso de viver a nossa geração, o número de civilizações que até ao presente existiram pelas minhas contas, não ultrapassam aí as vinte.

Retomemos, por exemplo, o caso do seu próprio país, a Holanda, que usei para lançar luz sobre a origem das civilizações egípcia e suméria. O senhor contestou a minha versão da origem do engrandecimento da Holanda. O estímulo de um país inóspito foi a explicação que para ela encontrei. O povo ele Holanda viu-se obrigado a arrebatar a terra ao mar, e elevou-se à altura das circunstâncias. Ao criticar-me, diz o senhor que eu isolei, arbitrariamente, um facto de entre muitos. Diz o senhor que os holandeses não o conseguiram sozinhos, que foram auxiliados no início por forasteiros experientes e que mais tarde o país, uma vez conquistado, revelara possuir um solo rico, bem como uma excelente situação para o comércio.

Sim, é verdade; também esses são factos da história holandesa, mas a minha resposta é que eles não são factos-chave. Se os estranhos que o senhor tem em mente são os Romanos, então os benefícios da experiência romana não os aproveitou a Holanda somente; também a Bélgica, a França e a Inglaterra os aproveitaram. Por conseguinte, o que a Holanda aprendeu dos Romanos não pode contar para as realizações que são peculiares à Holanda e que a distinguem dos seus vizinhos. A fertilidade do solo e a boa localização não são, pois, as causas do feito grandioso da Holanda ao lutar com o Mar do Norte e ao batê-lo; são antes consequências dele, e sua recompensa. É um dos casos do «a quem tem, ser-lhe-á dado». O que os Holandeses tinham, antes de lhes terem sido dadas estas outras coisas, era a força de vontade para erguer das águas o seu país. O terrifico desafio das ondas a um país abaixo do nível do mar é com certeza a característica distintiva e única da história holandesa. Salvo o respeito que a si lhe devo, Geyl, como neerlandês e como historiador, continuo a pensar que tenho razão ao apresentar a réplica do povo da Holanda a este desafio como sendo a chave da grandeza do seu país. Do mesmo modo, creio firmemente que o caso da Holanda lança uma valiosa luz sobre os casos do Egipto e da Babilónia, dois outros lugares onde o povo se viu obrigado a lutar com o pântano e com o mar para conquistar terreno, e onde esta luta entre o homem e a natureza fez nascer duas das, aproximadamente, vinte civilizações que conhecemos.

É claro que, se nos fosse possível descobrir algumas civilizações mais, talvez pudéssemos estudar a história nessa escala, sem termos de rios preocupar com pequeninos fragmentos como a Holanda e a Inglaterra. Quem me dera a mim estar nessa feliz situação! E se o senhor agora me quisesse ajudar, Geyl, tomando a sua pá de arqueólogo e desenterrando-me mais algumas civilizações perdidas, muito grato lhe ficaria eu. Mas, mesmo que o senhor revelasse reunir em si um Layard, um Schliemann e um Arthur Evans, só seria capaz de elevar o meu número actual de vinte e uma civilizações conhecidas para vinte e quatro, o que, evidentemente, de modo algum me ajudaria a reduzir apreciavelmente a minha margem de erros.

Mudando por um momento de assunto, é meu desejo corrigir uma impressão que, penso eu, os nossos ouvintes podem ter adquirido em virtude de algo que o senhor disse agora mesmo. Pelo menos eu fiquei com a impressão de que o senhor continuava a pensar que eu pretendia ser capaz de predizer o futuro com base nu passado e que afirmara estar condenada a nossa civilização. Trata-se de um ponto muito importante e eu desejo tornar bem clara a minha posição acerca dela de modo a não deixar a mínima possibilidade de engano. Seja-me, pois, dado repetir: não pretendo ser profeta; não acredito que se possa utilizar a história para desvendar a sorte do mundo; penso que a história nos pode talvez mostrar possibilidades ou mesmo probabilidades, ruas nunca certezas. Com o aviso pavoroso do determinismo dogmático de Spengler diante de mim, sempre tenho tido, e hei-de ter, pelo que me toca, o máximo cuidado em considerar o futuro da nossa civilização uma questão aberta não porque receie comprometer-me, mas porque acredito tão firmemente como o senhor, Geyl, que ele é uma questão aberta.

Geyl: Muito me alegra, Toynhee, que o senhor tenha levado tanto a sério as objecções que levantei à profusão de exemplos tirados de histórias nacionais. No que se refere à Holanda, deixe-me só dizer-lhe que não pensei apenas nos Romanos, nem sequer, essencialmente, em estrangeiros. O que eu quis dizer foi que a civilização dos Países Baixos não teve a sua origem nem o seu primeiro desenvolvimento na região que estava exposta à luta com a água, antes pelo contrário, se poderia dizer dessa região que ela foi a parte retrógrada da área dos Países Baixos na sua totalidade. Com respeito ao futuro, algures no seu livro o senhor quase esboça -- em suas próprias palavras «o horóscopo da nossa civilização» a partir dos destinos de outras civilizações, e repetidas vezes o senhor dá a entender que nós atingimos o estádio de designação que no seu livro tão pormenorizadamente o senhor nos retrata a conduzir inevitavelmente à catástrofe. Apraz-me ouvir-lhe dizer agora que não pretendia afinal lavrar-nos uma sentença da morte.

Toynbee: Não, creio multo simplesmente que o não sabemos. Acho que devo ser eu a última pessoa a ajuizar quais são as minhas próprias crenças.

Mas agora, Geyl, aí vai uma bola que, para variar, gostava de atirar-lhe. O senhor deu-me aso a ela, pela lealdade e franqueza que manifestou ao longo deste debate. O senhor fez justiça ao meu argumento de que, se os factos históricos são únicos em muitos aspectos, outros aspectos há em que eles pertencem a uma classe, sendo, portanto, susceptíveis de comparação. Diz o senhor que há verdade nisto, pois de contrário seria impossível alguma vez em história criarem-se ideias gerais; contudo, isolar os elementos comparáveis é tarefa melindrosa -- e eu falo com a sensação que me vem da longa experiência ao tentar realizar exactamente essa tarefa. Mas não poderá tirar-se daqui uma moral para o senhor e para todos os outros historiadores como para mim? Não quererá talvez isto dizer que todos nós devíamos dedicar a esta tarefa de criarmos as nossas próprias ideias gerais muito mais tempo e reflexão muito mais séria e aturada do que muitos de nós já alguma vez lhe dedicaram? Há ainda uma outra tarefa, em meu entender mais importante, a realizar antes daquela.

Em primeiro lugar, é preciso que consciencializemos as ideias que em nós existem e que coloquemos sobre a mesa estes nossos trunfos bem à mostra. Bem vê, todos os historiadores são obrigados a ter ideias gerais acerca da história. Neste aspecto, cada ponto que dêem no seu bordado é mais uma prova contra eles. Sem ideias, eles não poderiam pensar um pensamento, proferir uma frase ou escrever uma linha sobre os assuntos que os ocupam. As ideias são a ferramenta do espírito, e sempre que vemos surgir um pensamento, podemos estar certos de que, por detrás dele, existe uma ideia. Isto é tão óbvio que acho difícil ser paciente para com os historiadores que, como alguns modernos historiadores ocidentais, se gabam de que inteiramente se restringem aos factos da história e se não deixam levar por teorias. Ora, cada um desses chamados factos que eles vos apresentam, tem, por detrás dele, o padrão de uma teoria qualquer. Aos historiadores que genuinamente acreditam não terem quaisquer ideias gerais acerca da história gostaria eu de dizer que muito simplesmente ignoram tudo o que diz respeito à actividade dos seus próprios espíritos; e não é verdade que é imperdoável essa obstinada ignorância? O trabalhador intelectual que se recusa a tomar consciência das ideias activas com que vai agindo parece-me ser quase tão criminoso como o motorista que fecha os olhos antes de carregar no acelerador. Entregar-nos, e entregar o nosso público, à mercê de ideias idiotas que por acaso se tenham apoderado do nosso subconsciente é, sem dúvida, o cúmulo da irresponsabilidade intelectual.

Creio que os nossos ouvintes teriam todo o interesse em ouvir o que o senhor tem a dizer a este respeito.

Geyl: É muito simples. Concordo em absoluto com o senhor acerca da impossibilidade de, como costumava dizer-se, deixar os factos falarem por si próprios, e o historiador que imagina poder eliminar a teoria — ou, digamos, o seu próprio espírito individual, a sua concepção pessoal das coisas em geral parece-me ser uma criatura totalmente desprovida de interesse, ou, na maioria dos casos, quando apenas se ilude de modo flagrante a si própria e encobre a sua parcialidade particular sob a designação pomposa de objectividade e ciência histórica, uma pessoa muito ingénua, e talvez muito perigosa.

Foi, de facto, animado deste espírito que o enfrentei. quando disse que eu era um adepto da concepção da história como ininteligível, o senhor interpretou em absoluto erradamente a minha posição. Quando rejeito os meus métodos e as suas conclusões, também eu tento, á minha maneira, estabelecer concepções gerais da história. Sei que, sem essas concepções, os relatos do passado passariam a ser extremamente caóticos e disparatados, e parece-me bem que preferia ser um astrónomo a dedicar a minha vida a um estudo tão fútil e tão sem esperança.

Mas, para mim, uma das coisas importantes a reconhecer em relação à história é a sua infinita complexidade -- e quando digo infinita, quero realmente significar que não só o número de fenómenos e incidentes mas também a sua natureza obscura e mutável são de tal ordem que qualquer tentativa para os reduzir a urna relação fixa e a um esquema de validade absoluta a mais não poderá levar do que a desilusão. É quando o senhor apresenta o seu sistema de modo tão rígido e inflexível que até parece, pelo menos a mim, prescrever o futuro, que eu me sinto obrigado a protestar, em defesa tanto da história, como da civilização de cuja crise somos ambos testemunhas.

O senhor censurou-me por eu ter convidado o mundo a navegar sem cartas. No entanto, eu julgo que o sentido da história é absolutamente indispensável à vida da humanidade. Como Burckhardt, creio que do estudo do passado poderemos aprender sabedoria, nunca porém lições absolutas para os problemas do presente.

Toynbee: Ora aí está! Tudo indica que, pelo menos neste ponto, as nossas diferentes atitudes nos conduziram ao que parece ser terreno comum. Se assim é, penso que o facto é encorajador, já que é, estou convencido, fundamental o problema que acabámos de discutir.

Geyl: Bom, Toynbee, reparo que chegou ao fim o tempo de que dispúnhamos. Restam-me alguns segundos para render homenagens á coragem com que o senhor, na sua própria expressão, aqui veio arriscar a vida; não em me enfrentar aqui ao microfone, mas ao arquitectar o gigantesco e imponente esquema de civilizações que viria forçosamente sacudir os cépticos e a submeter-se às suas críticas. Não sou eu tão céptico que duvide da legitimidade da minha posição no nosso debate, mas sou-o em comparação com o senhor. Talvez o senhor aprecie que um homem assim lhe afiance que ele próprio achou imensamente estimulante a sua grandiosa obra e que, falando de um modo geral, no vasto empreendimento em que nós, historiadores, estamos empenhados, os espíritos ousados e plenos de imaginação como o senhor em uma missão essencial a cumprir.

Teorias de História