Eurocentrismo histórico da Europa decadente?

OSWALD SPENGLER (1880-1936)

Fonte: Teorias da História, ed. Patrick Gardiner, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 228-244.

Oswald Spengler, filho de um funcionário dos correios, nasceu em Blankenburg em 1880. Frequentou três universidades Munique, Berlim e Halle - onde estudou matemática e ciências naturais. Tendo exercido o professorado durante alguns anos, abandonou o ensino em 1911. Nesse ano, as ideias principais que inspiraram a Decadência do Ocidente tomaram forma em seu espírito, e a partir de então Spengler dedicou-se ao seu desenvolvimento. Em 1914 estava completo um rascunho do livro; três anos mais tarde foi publicado o primeiro volume; o segundo volume apareceu em 1922. Desde essa altura até à data da sua morte em 1936, Spengler ocupou-se com actividades políticas esporádicas e escreveu vários livrinhos e panfletos sobre temas políticos e sociais, onde advogava uma forma um tanto deprimente de fascismo burocrático.

Embora na Decadência do Ocidente Spengler pareça adoptar uma atitude de olímpica indiferença em relação ao espectáculo da história humana, a sua obra está, todavia, permeada de um certo fanatismo gélido; ao leitor não restam dúvidas acerca das qualidades humanas que o autor admira ou das condições que ele gostaria de ver realizadas. Dá-se preferência ao instinto, em oposição ao entendimento, à vida do campo em oposição à vida da cidade, à fé e ao respeito pela tradição em oposição ao cálculo racional e ao interesse próprio, à intuição e à imaginação em oposição à analise e ao método científico. Estas antíteses incorporou-as Spengler em outras mais vastas e mais vagas -- Destino contra Causalidade, Cultura contra Civilização, História contra Natureza, Crescimento e Vida contra Decadência e Morte. Os sinais de declínio na nossa presente civilização são delineados quase com cuidados de maligno regozijo, proclamando com lúgubre satisfação a passada firme e tranquila do Cesarismo que se aproxima.

Se bem que em muitos aspectos uma obra pretensiosa e teoricamente amalgamada, a Decadência do Ocidente não deixa, todavia, de ter uma certa força arrebatadora. Spengler disse que devia praticamente tudo a Nietzsche e a Goethe, mas quaisquer ideias que possa ter derivado de outros autores estão apresentadas duma forma altamente individual. A noção de recorrência histórica, por exemplo, aparece na obra de Spengler sob a forma de uma concepção «morfológica» da história que patenteia o aparecimento e a dissolução contínuas das diferentes culturas. Estas culturas têm um espaço vital limitado (sugere-se 1000 anos como número aproximado) e cada uma delas prossegue através de uma serie regular de estádios, estabelecendo-se, evidentemente, uma analogia com organismos vivos, tais com plantas. Esta imagem do desenvolvimento histórico é posta em contraste com a ideia que se tem da história como uma progressão linear dividida de acordo com três designações principais -- «Antiga>, «Medieval» e «Moderna» -- ideia essa que Spengler trata com o maior desprezo. Cada cultura tem o seu carácter específico ou «alma» (uma concepção à Herder), mas todas estão sujeitas ao mesmo destino inexorável; todas são «mortais» e todas se destinam a prosseguir um curso essencialmente semelhante, passando de um período de crescimento para uma fase de «civilização» que precede a extinção final. Das culturas que já surgiram ao longo do curso da história, Spengler enumera oito: a Egípcia, a Chinesa, a Semítica Antiga, a Indiana, a Magiana, a Apolínia (ou civilização "Clássica" Greco-Romana) e, finalmente, a «Fáustica» ou Ocdental, que abrange aproximadamente o período da história europeia durante os últimos mil nos. É esta última que ele sobretudo considera; é uma comparação entre elas que o leva à conclusão de que a fase criadora da nossa própria cultura já passou, e que, no futuro previsível, «definitivamente se encerrará a história da humanidade da Europa Ocidental».

Spengler empreende o seu estudo com pressupostos epistemológicos bem definidos. Não há isso a que se chama «verdade absoluta». A verdade é um conceito relativo a pontos de vista culturais particulares, e por conseguinte nenhum juízo, seja ele moral, matemático, estético ou filosófico, pode ter validade "eterna" -- se bem que Spengler revelasse aqui uma certa inconsequência ao não reconhecer sempre -- ao que parece -- as implicações de tal princípio para a validade das suas próprias doutrinas. Além disso, ele acreditava que a investigação dos fenómenos históricos não podia ser feita mediante a adopção de métodos do tipo dos usados pelos cientistas da natureza. O conhecimento histórico é de tipo único, e muito do que ele diz a este respeito é (um tanto inconsequentemente) reminiscente das concepções dos filósofos "idealistas" da história, como Croce. Segundo Spengler, os conceitos essenciais das ciências naturais são os conceitos de mensurabilidade e uniformidade causais, e o «mundo natural», cuja estrutura é fixa e estável, apresenta o campo adequado à sua aplicação. O assunto da história, por outro lado, compreende «o que acontece» em contraste em o acontecido»; tudo é fluxo, desenvolvimento, variedade, particularidade, vida; imaginar que ela se pode interpretar em termos de fórmulas quantitativas, ou arquitectar como um sistema quase mecânico é, consequentemente, absurdo. Mantém-se que a história requer seu modo próprio de «apreensão», que Spengler descreve «fisionómico»; como os extractos seguintes elucidam, Spengler acreditava que a verdadeira natureza das suas «culturas», tal como em tudo que é história, deve ser apreendida pelo génio perceptivo, pelo discernimento, do mesmo modo que se pode dizer que o artista capta o carácter e a qualidade do seu modelo. O verdadeiro historiador, insiste Spengler mais do que uma vez, não pode esperar interpretar material utilizando métodos que assentam na generalização e na indução e que se podem apreender mediante treino; a compreensão histórica é inata e criadora, e obras verdadeiramente históricas são aquelas que logram exprimir a vida interior e o «sentido» dos seus assuntos. Apesar da linguagem rapsódica de Spengler, o seu significado a este respeito é claro e tem um certo interesse. Dirige-se claramente e em grande medida contra as ideias positivistas e «cientistas» que tinham a partir de Comte, afectado grandemente a historiografia e a história dos finais do século XIX.
 
 

Mundo como Natureza e o Mundo como História

Ousamos tentar neste livro, pela primeira vez a predeterminação da História, seguindo o destino de uma cultura -- na realidade a única que no nosso p1aneta se compreende actualmente em plena realização, a que engloba a ocidental e a América -- nos seus estádios ainda não percorridos.

A possibilidade de êxito duma tarefa de tão gigantesca envergadura ainda não foi manifestamente encarada até à data, e se isso aconteceu, não se conheciam bem ou foram inadequadamente usados os meios para a realizar.

Existe uma lógica da História? Existe, para além do aspecto causal e irregular dos factos isolados, uma por assim dizer estrutura metafísica da humanidade histórica, que seja essencialmente independente das formas externas -- sociais, espirituais e políticas -- claramente visíveis? Que seja na verdade a causa primeira desta realidade de menor importância? ()s grandes traços da história do mundo surgirão sob uma tão constante aos olhos que os observam, que permitam certas conclusões? E em caso afirmativo, onde se encontram os limites dessas conclusões? É possível na própria vida — pois a história do homem é a súmula de inúmeros cursos de vida, de cujo ego e personalidade o uso corrente vai insensivelmente criando, em pensamento e expressão, entidades de mais elevada categoria tais como «antiguidade», «cultura chinesa» ou «civilização moderna» — encontrar as fases que tiveram de ser percorridas, e percorridas por uma ordem que não admite excepções? Os conceitos que servem de base a tudo quanto é orgânico nascimento, morte, juventude, velhice, tempo de vida — possuirão porventura dentro daquele âmbito um sentido rigoroso que jamais

alguém conseguiu descobrir? Abreviando: toda a História se fundamenta em dados biográficos ancestrais de carácter universal?

O declínio do Ocidente, à primeira vista um fenómeno local e temporariamente limitado, como o foi o correspondente declínio da Antiguidade Clássica, é, como se vê, um problema filosófico, que, compreendido em toda a sua gravidade, envolve todas as grandes questões do ser …

E assim a nossa tarefa, que começava por abranger apenas um problema limitado da civilização moderna, alarga-se a uma nova filosofia, a filosofia do futuro -- na medida em que o corpo metafísicamente esgotado do Ocidente pode ainda gerar uma — a única, pelo menos, que está ao alcance das possibilidades do espírito da Europa ocidental nos seus próximos estádios e que tende para a ideia de uma morfologia da história do mundo, do mundo como história, a qual, ao contrário da morfologia da natureza, até ao presente, tema quase único da filosofia, engloba igualmente todas as formas e movimentos do mundo no seu mais profundo e último significado, mas numa ordem inteiramente diversa: agrupando-os, não numa imagem geral de tudo o que é conhecido, mas numa imagem da vida; não daquilo que está formado (Geworden), mas do que está em formação (Werden).

O mundo como história, concebido, observado e formado a partir do seu oposto -- o mundo corno natureza -- é um novo aspecto da existência humana nesta terra, que até hoje, apesar do seu enorme significado prático e teórico, nunca foi assinalado nem reconhecido como problema; foi talvez vagamente sentido, muitas vezes vislumbrado a distância, mas jamais se ousou encará-lo com todas as suas implicações. A este respeito, o homem tem duas maneiras possíveis de apreender e experienciar intimamente o mundo que o rodeia. Distingo rigorosamente — quanto à forma, não quanto à substância — a impressão orgânica do mundo, da impressão mecânica do mesmo; a essência das formas, da essência das leis; a imagem e o símbolo, da fórmula e do sistema; o momentaneamente real, do constantemente possível; a finalidade da imaginação que ordena segundo um plano, da experiência que sistematicamente analisa ou — para nomear desde já uma oposição que nunca foi apontada, mas que é muito significativa — o âmbito do número cronológico, do do número matemático.

Consequentemente, um trabalho de investigação como aquele que se nos depara, não pode de forma alguma consistir em aceitarem-se os factos político-espirituais, tais como, dia a dia, vão surgindo visíveis à superfície, nem de ordená-los segundo «causas» e «efeitos», ou de os seguir na sua evolução aparente e racionalmente compreensível. Um tratamento assim «pragmático» da História não passaria de um ramo materialista de ciências naturais disfarçadas, do que aliás os adeptos da concepção materialista da História não fazem segredo, enquanto os seus adversários nem chegam a aperceber-se da semelhança dos dois processos. Não nos importa o que são em si e per si os factos palpáveis da história, como fenómenos numa determinada época, mas aquilo que eles significam e o que indicam pelo facto de aparecerem. Os historiadores da actualidade julgam fazer já mais do que devem ao recorrerem a pormenores religiosos, sociais ou histórico-artísticos, para «ilustrar» o sentido político duma época. Mas esquecem o factor decisivo —- decisivo, isto é, na medida em que a história visível é expressão, é sinal, é alma em potência. Ainda não encontrei nenhum que tomasse a sério o parentesco morfológico que liga intimamente as formas de expressão de todos os ramos da cultura; que para além do âmbito dos factos políticos conhecesse em pormenor as ideias últimas e mais profundas da matemática dos helenos, dos árabes, dos indianos, dos europeus ocidentais, o sentido da sua arte ornamental primitiva, das formas básicas da sua arquitectura, da sua metafísica, do seu teatro e da sua poesia, o escol e a evolução das suas artes maiores, os pormenores da técnica dos seus artistas, os materiais que eles escolhiam, quanto mais o significado decisivo destes pormenores para os problemas formais da história. Qual deles sabe que entre o cálculo diferencial e o princípio dinástico da política do tempo de Luís XIV, entre a forma de estado clássica da polis e a geometria euclidiana, entre a perspectiva espacial da pintura a óleo do Ocidente e a conquista da distância pelos comboios, pelo telefone e pelas armas de longo alcance, entre a música instrumental de contraponto e o sistema económico de crédito existe uma profunda relação de forma? …

Começamos, pois, a constatar, que não existe ainda uma arte de tratar a história com base numa teoria. Aquilo que denominamos como tal vai buscar os seus métodos quase exclusivamente ao âmbito da única ciência em que se conseguiram métodos de conhecimento rigorosos, isto é, à Física. Julga-se fazer uma investigação histórica, quando afinal se observa apenas a relação objectiva de causa e efeito. É curioso que a filosofia de cunho antigo nunca tenha pensado numa outra possibilidade de relação entre a faculdade cognoscente do homem e o mundo que o rodeia. Kant, que na sua obra principal estabeleceu as regras formais do conhecimento, considerou, sem que ele ou outrem jamais se tivessem apercebido disso, a natureza apenas como objecto da actividade racional. Conhecimento, para ele, é conhecimento matemático. Quando ele fala de formas intuitivas natas e de categorias da razão, nunca pensa no processo completamente diferente pelo qual as impressões históricas são apreendidas. E Schopenhauer, que muito significativamente só aceita como válida uma das categorias de Kant — a da causalidade — fala da História com desprezo. Que além da necessidade da noção de causa e efeito -- a que chamarei a lógica do espaço -- existe ainda na vida a necessidade orgânica do destino — a lógica do tempo (um facto da mais profunda certeza interior, que enforma todo o pensamento mitológico, religioso e artístico, que constitui a essência e o cerne de toda a História, em contraposição com a natureza, mas que é inacessível através das formas de conhecimento analisadas pela «Crítica da Razão Pura») isso é um facto que ainda não passou ao campo das formulações teóricas. A Filosofia, como diz Galileu num passo celebre do seu Saggiatore, é «scritta in lingua matematica» no grande livro da Natureza. Mas ainda hoje esperamos que um filósofo nos diga em que linguagem está escrita e deve ser lida a História.

A matemática e o princípio da causalidade conduzem a uma classificação naturalistica do fenómeno; a cronologia e a ideia do destino levam a uma classificação histórica do mesmo. Ambas as classificações, cada urna por si, abrangem o mundo inteiro . Somente diferem os olhos nos quais e através dos quais esse mundo se torna realidade.

Concepção «ptolemaica» da história

Antiguidade -- Idade Média -- - Idade Moderna: eis o incrível, o pobre, o absurdo esquema, cujo absoluto domínio sobre o nosso pensar histórico nos tem sistematicamente impedido de compreender a verdadeira posição da pequena parte do mundo que desde a época do império germânico se vem desenvolvendo no solo da Europa ocidental, dentro da história geral da humanidade mais evoluída, no que se refere à sua importância, à sua forma e sobretudo à sua duração. Parecerá inacreditável às culturas vindouras que um esquema de progressão tão simplistamente rectilínea e de proporções tão pouco significativas, cada vez mais ilógico de século para século, incapaz de uma articulação natural dos novos conhecimentos à luz da nossa consciência histórica, nunca tenha sido seriamente abalado, exactamente na sua validade. Porque criticar o esquema como de há muito tempo a esta parte os investigadores históricos têm por hábito fazer, não tem qualquer interesse; com isso eles obliteraram quando muito o sistema existente sem o substituir por outro. Pode continuar a falar-se da Idade Média Grega ou da Antiguidade Germânica, que não se ganha com isso qualquer imagem e intimamente convincente, na qual a China e o México, o reino de Axum e o dos Sassanidas ocupem um lugar orgânico. O facto de se passar a considerar o início da "Idade Moderna", não nas Cruzadas mas na Renascença, ou não nesta mas nos começos do século XIX, só prova que o esquema em si continua a ser considerado como inabalável.

Esse esquema não só reduz o âmbito da história, mas, o pior, limita o palco onde ela se representa. Nele, a paisagem da Europa ocidental forma como que o pólo fixo (matematicamente falando, um ponto único na superfície de uma esfera) — não se sabe porquê; só se for porque nós, os autores dessa concepção da história, nele vivemos — à volta do qual poderosíssimas histórias milenárias e importantes culturas de ancestrais raízes gravitam muito modestamente. É um sistema planetário de concepção extremamente bizarra. Escolhe-se uma única paisagem como centro natural de um sistema histórico. É ela o sol central. É dela que todos os factos da história recebem a sua verdadeira luz; é a partir dela que o significado destes adquire perspectiva. Mas na realidade, esta atitude define apenas a vaidade — que nenhuma sombra de dúvida refreia -- do homem da Europa ocidental, em cujo espírito se desenvolve esse fantasma da «história mundial»...

Designo de sistema ptolemaico de história este esquema actualmente tão corrente entre os europeus ocidentais, no qual as grandes culturas descrevem as suas órbitas em torno de nós, centro suposto de todos os fenómenos do mundo e, no âmbito da História, considero tão importante como a descoberta de Copérnico o sistema que em seu lugar apresento neste livro, em que a Antiguidade Clássica e o Ocidente não ocupam qualquer lugar preponderante em relação à Índia, à Babilónia, à China, ao Egipto, à cultura árabe e à mexicana — mundos diferentes do devir. que no panorama geral da História pesam tanto como a Antiguidade e muitas vezes a ultrapassam na grandiosidade das suas concepções espirituais e nas suas possibilidades de progresso....

Aos conceitos complementares de paganismo e cristandade, acrescentava-se, portanto, um último de «idade moderna», que pelo próprio significado não permite uma continuação do processo e que, depois de ter sido repetidamente «alargado» desde as Cruzadas, não parece apto a sofrer nova dilação. Aceitava-se, embora tacitamente, que para além da Antiguidade e da Idade Média começava aqui algo de definitivo: um terceiro reino albergando algures em si uma plenitude, uma culminância, uma finalidade, cuja descoberta todos se atribuíram exclusivamente, desde os escolásticos aos socialistas dos nossos dias. Era urna perspectiva ao mesmo tempo cómoda e lisonjeira para o seu autor, essa que ele tinha do curso das coisas, mas ao fim e ao cabo não era mais do que o espírito do Ocidente reflectido na sua cabeça, à sua maneira, e equiparado com o significado do mundo. Grandes pensadores houve que de uma necessidade intelectual fizeram uma metafísica, ao elegerem para base da sua filosofia, sem o submeterem a uma crítica séria, o esquema consagrado pelo consensus omnium e ao forçarem Deus como autor do «plano do mundo» que cada um concebia. O místico número três aplicado à idade do mundo teve para o gosto dos metafísicos algo de sedutor. Herder definiu a História como a educação do género humano, Kant como um desenvolvimento do conceito de liberdade, Hegel corno uma auto-expansão do espírito do mundo, outros definiram-na noutros termos. Mas quem tivesse descoberto um significado abstracto para o número três, puramente convencional, da época, julgava ter com isso reflectido suficientemente sobre a forma básica da história....

Mas «a humanidade» não tem qualquer finalidade, qualquer plano, corno tão-pouco o tem a família das borboletas ou a das orquídeas. «A humanidade» é um conceito zoológico ou uma palavra oca. Façamos desaparecer este fantasma do âmbito dos problemas históricos formais e veremos emergir uma profusão surpreendente de formas verdadeiras: a desmedida abundância, a profundidade e a mobilidade de tudo quanto vive, até agora encobertas por feitas, por esquemas áridos, por «ideais» subjectivos.

Em vez desse quadro desolador de uma história linear do mundo, que só se pode continuar a considerar como válida se se fechar os olhos à avassaladora multidão dos factos, eu vejo o espectáculo de um número de poderosas culturas — cada uma florescendo com pujança antediluviana do seio de uma paisagem-mãe, à qual cada uma continua estreitamente ligada, no decorrer de toda a sua existência, cada uma imprimindo a sua própria forma ao seu material -- a humanidade -- cada uma tendo as suas próprias ideias, as suas próprias paixões, a sua vida própria, o seu próprio querer e sentir, a sua própria morte. Existem neste quadro cores, luzes e movimentos que nenhuns olhos do espírito descobriram ainda; há nele culturas que florescem e envelhecem, há povos, línguas, verdades, deuses e paisagens, como há carvalhos, pinheiros, flores, ramos e folhas, de tenra idade e também velhos, mas não há «humanidade» envelhecendo. Cada cultura tem as suas novas possibilidades de expressão, que surgem, amadurecem, e não voltam a repetir-se. Não há uma, mas muitas esculturas, pinturas, matemáticas, físicas, todas profunda e essencialmente diferentes das outras, cada uma com o seu limitado tempo de vida, estanque em si mesma, como qualquer espécie vegetal que desenvolve as flores e os frutos que lhe são próprios, com o seu próprio tipo de crescimento e de decadência. Estas culturas, seres vivos de categoria superior, crescem com a sublime falta de finalidade das flores que crescem no campo, e, como as plantas e os animais, fazem parte da natureza viva de Goethe e não da natureza morta de Newton. Vejo na história do mundo um quadro em eterna formação e transformação, o quadro de um maravilhoso nascer e perecer de formas orgânicas. O historiador convencional, porém vê-a como uma ténia, adicionando "épocas" umas às outras....

A Europa não é um Centro de Gravidade

Actualmente, pensamos por continentes. Só os nossos filósofos e historiadores ainda não aprenderam tal coisa. Que significado podem ter para nós conceitos e perspectivas que se arrogam o direito de ter validade universal mas cujo horizonte não ultrapassa, na realidade, a atmosfera intelectual do homem da Europa Ocidental?

Examinem-se a este respeito os nossos melhores livros. Quando Platão fala da humanidade, refere-se aos Helenos em contraposição com os Bárbaros, o que está perfeitamente de acordo com o estilo não histórico da vida e do pensamento clássicos e conduz, a partir desta premissa, a conclusões que são válidas e significativas em relação aos Gregos. Quando, porém, Kant filosofa sobre ideias éticas, por exemplo, afirma a validade das suas proposições para os homens de toda a espécie e de todos os tempos. Só não diz isto expressamente, porque é uma coisa evidente, para ele e para os seus leitores. Na sua estética, ele não formula o princípio da arte de Fídias ou da arte de Rembrandt, mas o princípio da Arte em geral. Porém, aquilo que ele caracteriza como formas necessárias do pensamento são na realidade formas necessárias do pensamento ocidental. Uma análise de Aristóteles e das conclusões fundamentalmente diferentes a que este chegou mostrar-nos-ia que as suas reflexões provêm de um espírito não menos arguto, mas orientado noutra direcção. As categorias do pensamento ocidental são tão estranhas ao pensamento russo como são para aquele as do pensamento chinês ou grego. É-nos tão impossível ter uma compreensão perfeita e real das palavras primitivas dia Antiguidade Clássica como das russas ou das hindus e para os chineses e árabes da actualidade, cuja formação intelectual se processa de modo tão diverso, a filosofia de Bacon a Kant tem apenas o valor de uma curiosidade.

Falta ao pensador ocidental exactamente aquilo que não lhe devia faltar: a consciência da relatividade do carácter histórico dos factos que conhece, os quais são expressão de uma existência específica e somente desta; o conhecimento dos limites precisos da validade desses factos; a convicção de que as suas «verdades inabaláveis» e os seus pontos de vista eternos» só para ele são verdadeiros e só são eternos em relação à sua visão do mundo e de que é um dever procurar descobrir para além deles os que os homens de outras culturas desenvolveram, a partir de si próprios, com a mesma certeza. Só esta atitude dará integridade a uma filosofia do futuro; só isto significa compreender a simbologia da história, do mundo vivo. Não há aqui nada de estático nem de universal. Temos de deixar de falar em formas de pensamento, no princípio do trágico, na missão do Estado. A universalidade envolve sempre o sofisma do «eu» em relação a outros «eus».

Muito mais sombrio se torna o panorama se nos debruçarmos sobre os pensadores ocidentais modernos a partir de Schopenhauer, em que o centro de gravidade da filosofia se desloca do sistemático-abstracto para o ético-prático e em vez do problema do conhecimento se põe o problema da vida (da vontade de viver, de poder, de fazer). Aqui já não é o conceito abstracto ideal de homem, como em Kant, que é submetido a apreciação, mas o de homem real, como ele sempre tem vivido à superfície da terra desde o início da História, agrupado em povos primitivos ou civilizados; e é absurdo que também nesta concepção continue a subordinar-se a estrutura dos mais elevados conceitos do esquema Antiguidade -- Idade Média -- Idade Moderna, com as suas limitações locais próprias. Mas continua.

Consideremos o horizonte histórico de Nietzsche. Os seus conceitos de decadência, de nihilismo, da substituição de todos os valores, de vontade de poder, têm raízes profundas na essência da civilização ocidental e são verdadeiramente decisivos par a análise desta. Mas qual a base da sua criação? Romanos e Gregos, Renascença e época actual europeia, um relance passageiro sobre a filosofia hindu (que compreendeu mal), em resumo: antiguidade -- idade média -- idade moderna. Rigorosamente, nunca saiu disto, nem tão-pouco os outros pensadores do seu tempo.

Mas qual então a relação do seu conceito de dionisíaco com a vida interior dos Chineses ultracivilizados do tempo de Confúcio ou dum americano moderno? Que significado tem o tipo do super-homem para o mundo do Islão? Ou que significam como antíteses formais OS conceitos de natureza e intelecto, de pagão e cristão, de antigo e moderno, para o espírito de um indiano ou de um russo? Que tem Tolstoi a ver com a «Idade Média», com Dante, com Lutero, ele que do fundo da sua humanidade abjurou totalmente o mundo das ideias do Ocidente como algo de estranho e distante? Que tem um japonês a ver com o Parsifal e com Zaratustra, ou um indiano com Sófocles? E o mundo das ideias de Schopenhauer, de Comte, de Feuerhach, de Hegel, de Strindberg, é mais vasto? Não tem a psicologia de todos eles, apesar de todos os seus propósitos de validade universal, apenas um significado estritamente ocidental? Como nos parecem ridículos os problemas das personagens femininas de Ibsen, que igualmente reclamam a atenção de toda a «humanidade», se substituíssemos a famosa Nora, dama de uma grande cidade do norte da Europa ocidental, cujos horizontes podem ser definidos por uma renda de casa de 2,000 a 6,000 marcos e uma educação protestante, pela mulher de César, por Madame de Sevigné, por uma japonesa ou por uma camponesa do Tirol! Mas os horizontes do próprio Ibsen estão confinados à classe média de uma grande cidade de ontem ou de hoje. Os seus conflitos, que têm origem em problemas espirituais que começam a surgir por volta de 1850 e que dificilmente persistem para além de 1950, não são, nem os da alta burguesia, nem os da pequena massa e muito menos os de cidades com população não europeia.

Tudo isto são valores episódicos e locais, na maior parte das vezes mesmo limitados aos interesses intelectuais momentâneos das grandes cidades cia Europa Ocidental, mas nunca valores da história universal ou valores «eternos», e se a geração de Ibsen e de Nietzsche os considera onda tão essenciais, isso significa que se adulterou o sentido da expressão «história universal» - — que não representa uma parte, mas uma totalidade — submetendo-se a esses valores factores estranhos aos interesses modernos, menosprezando e passando por cima desses factores. E isto acontece num grau extraordinariamente elevado. O que até agora se disse e se pensou no Ocidente sobre os problemas do espaço, do tempo, do movimento, do número, da vontade, do casamento, da propriedade, do trágico, da ciência, continua a ser estreito e duvidoso, porque houve sempre a preocupação de encontrar uma solução para um problema, em vez de se ver que para muitas perguntas há muitas respostas, que toda a pergunta filosófica não é mais do que o desejo) velado de conseguir uma determinada resposta que está já implícita na própria pergunta, que as grandes perguntas de uma época não podem ser compreendidas duma forma suficientemente transitória e que por isso é necessário adoptar um grupo de soluções historicamente limitadas, cujo conjunto e só ele — isento de todos os juízos de valor pessoais — é susceptível de fornecer a chave para os segredos últimos. Para o verdadeiro conhecedor do ser humano não há pontos de vista absolutamente certos ou absolutamente errados. Em face de problemas tão graves como o do tempo ou o do casamento, não basta apelar para a experiência pessoal, para a voz interior, para a razão ou para a opinião dos antepassados ou dos contemporâneos. Desta maneira descobre-se apenas o que é verdadeiro para aquele que pergunta e para a sua época, mas isso não é tudo. O fenómeno, noutras culturas, fala uma linguagem diferente. Para outros homens existem outras verdades. O pensador tem de admitir a validade de todas, ou de nenhuma.

Compreende-se assim até que ponto Ocidente pode ainda alai gar e aprofundar a sua visão crítica do mundo e quanto se deve aind observar para além do inofensivo relativismo de Nietzsche e da su geração), que maior refinamento do sentido da forma se deve atingi que grau mais elevado de psicologia, que maior desprendimento independência em relação aos interesses práticos, a que alargament absoluto dc horizontes, há ainda que chegar, antes de se poder dizc que se compreendeu a história do mundo, o mundo como história.

A Imagem «Copérnica» da História do Mundo

A todas estas ideia arbitrárias e estreitas, ditadas do exterior ou pelas preferências pessoais à história de formas impostas, contraponho a forma natural, a forma «copérnica» do processo histórico, que neste está profundamente enraizada, mas que só se revela a um observador sem ideias preconcebidas.

A este respeito recordo Goethe. O que ele designou de natureza viva é exactamente aquilo a que aqui designamos por história do mundo em sentido lato; o mundo como história. Goethe, que como artista representou a vida, a vida e sempre a vida, a evolução das suas formas o mundo em formação e não o mundo formado — como provam «Wilhelrn Meister» e a obra «Wahrheit und Dichtung», odiava a matemática, em que o mundo como mecanismo se opunha ao mundo com organismo, a natureza morta á viva, a lei à forma. Cada linha que ele escreveu como investigador da natureza punha imediatamente diante dos olhos a imagem do devir, «a forma imprimida que viva se desenvolve». Compreensão, contemplação, comparação, certeza interior imediata, refinada sensibilidade -- estes foram os meios de que ele se serviu para se aproximar do segredo do mundo fenomenológico em movimento. E são estes exactamente os meios da investigação histórica. Não há outros. Foi essa visão divina que lhe permitiu exprimir-se assim na véspera da batalha de Valmy, junto à fogueira do acampamento «Aqui e hoje inicia-se uma nova época da história do mundo e vós podereis dizer que estivestes presentes». Jamais um general, um diplomata e muito menos um filósofo, sentiu tão directamente a História a acontecer. É o juízo mais profundo que jamais foi emitido sobre um grande acontecimento da História, no próprio momento em que ele se dava.

E tal como a partir da folha, ele seguiu a evolução da forma da plantas, o aparecimento do tipo vertebrado, o processo de formação dos estratos geológicos — o destino da natureza e não as suas causas — desenvolveremos também aqui a expressão formal da história humana, a sua estrutura periódica, a sua lógica orgânica, a partir da profusão de todos os pormenores significativos.

Noutros aspectos, o homem sempre tem sido considerado, e com fundamento, como um dos organismos da face da terra. A estrutura do seu corpo, as suas funções naturais, a sua fenomenologia sensorial, tudo se integra numa unidade mais vasta. Somente neste aspecto se abre uma excepção, apesar do parentesco que se sente existir profundamente entre o destino das plantas e o destino dos homens — eterno tema de toda a poesia lírica — apesar do semelhança de toda a história humana com a de qualquer dos outros grupos de seres mais evoluídos —tema de inúmeros contos sobre animais, de sagas e de fábulas. Mas comparemos, deixando o mundo das culturas humanas actuar livre e profundamente sobre a imaginação, sem forçar esta a um esquema previamente traçado; consideremos as palavras juventude, crescimento, maturidade, decadência — que até agora e hoje mais do que nunca sempre têm sido expressão de valores subjectivos e de tendências sociais, morais ou estéticas inteiramente pessoais -- consideremo-las finalmente como designações objectivas de estados orgânicos; confrontemos a cultura clássica como fenómeno circunscrito em si mesmo, como corpo e expressão do espírito clássico, com as culturas egípcia, hindu, babilónica, chinesa ou ocidental e procuremos descobrir o que caracteriza estes grandes grupos nos seus vários destinos, o que tem carácter definido na exuberante profusão dos factos acidentais e veremos desenrolar-se finalmente o panorama da história do mundo, que nos é natural a nós, homens do Ocidente, e só a nós…

Visão Intuitiva e História

Natureza e História... duas possibilidades extremas que se patenteiam ao homem para ele ordenar como visão do mundo a realidade que o cerca. Uma realidade é natureza, na medida em que classifica tudo o que se forma como coisa formada; é História na medida em que dá às coisas formadas o seu lugar como coisas em formação. Uma realidade é contemplada como forma «recordada» — e assim nasce o mundo de Platão, de Rembrandt, de Goethe, de Beethoven — ou criticamente apreendida na existência que a todo momento lhe é dada pelos sentidos — e temos os mundos de Parménides e Descartes, de Kant e de Newton. Conhecer, no sentido rigoroso da palavra, é aquele acto experiencial cujo resultado total se chama «natureza». O cógnito e a natureza são idênticos. Como o símbolo do número matemático provou, tudo o que é conhecido, é equivalente ao mundo das coisas mecanicamente definidas, das coisas que estão para sempre exactas, das coisas submetidas a leis. A natureza é a súmula das coisas necessárias impostas por leis. Só há leis da natureza. Nenhum físico que compreenda bem a sua tarefa quererá passar para além destes limites. A sua missão consiste em determinar a totalidade, o sistema ordenado de todas as leis que ele encontra no âmbito da natureza lhe é conhecida. Mais do que isso: ela consiste em representar o quadro dessa natureza exaustivamente e até à última partícula.

Por outro lado, contemplar — e recordo aqui as palavras de Goethe: «contemplar é muito diferente de ver» — é aquele acto experiencial ao realizar-se está a ser história ele próprio. A experiência feita é facto acontecido, é História...

O devir «não é contável». Só o inerte — e o ser vivo, se abstrairmos da sua qualidade de estar vivo — pode ser contado, medido, dissecado. O puro devir, a vida, é, neste sentido, ilimitada. Situa-se além do domínio da causa e do efeito, da lei e da medida. Nenhuma investigação histórica autêntica e profunda procura conformar-se com leis causais, ou, se o faz, não compreende a sua própria essência…

Mas numa coisa se deve insistir: querer escrever história cientificamente é, em última análise, algo de contraditório. A verdadeira ciência vai até onde os conceitos de certo e errado têm validade. Isto aplica-se à Matemática e também às ciências que preparam a história: à recolha, à ordenação e à classificação do material. Mas a visão histórica propriamente dita, que só a partir daqui se forma, pertence ao domínio dos significados, em que os conceitos determinantes não são certo e errado, mas superficial e profundo. O verdadeiro físico não é profundo, mas «sagaz». Só quando deixa o âmbito das hipóteses de trabalho e toca as raias das coisas últimas é que ele pode ser profundo; mas nessa altura tornou-se também e metafísico. A natureza deve ser tratada cientificamente, a história poeticamente…

Por outro lado, no reino que devia ser dos números e do saber exacto, Goethe chamou «natureza viva» exactamente àquilo que acima foi definido no sentido de história: uma contemplação directa do devir puro e dos seres em formação. O seu mundo era, em primeira análise um organismo, uma existência, e compreende-se assim por que razão as suas investigações, mesmo quando aparentemente têm um cunho físico, não pretendem chegar a números, ou a leis, ou a uma causalidade petrificada em fórmulas, ou tão-pouco a qualquer dissecação, mas são antes morfologia no mais elevado sentido do termo e por isso evitam todos os meios de apreciação causal especificamente ocidentais (e verdadeiramente anticlássicos), bem como o experimento métrico, mas sem nunca os ignorarem. A observação que ele faz da crosta terrestre é sempre geológica, nunca mineralógica (a mineralogia denomina ele de ciência de coisas mortas).

Frisemos, mais uma vez, que não há fronteiras entre as duas espécies de concepções do mundo. Por muito grande que seja a antítese entre coisa em formação e coisa formada, a verdade é que ambas existem em toda a espécie de conhecimento. Todo aquele que as observa em devir, em realização, experiencia História; aquele que as analisa como coisas formadas, como coisas realizadas, conhece a natureza...

Todos os modos de compreender o mundo podem, em última análise, ser designados de morfologia .A morfologia do mecânico e do extenso, ciência que descobre e ordena as leis da natureza e as relações causais, chama-se sistemática. A morfologia do orgânico, da história e da vida, tudo o que alberga em si orientação e destino, chama-se fisionómica...

A fisionómica descritiva, criadora, é a arte do retrato transportada para o domínio espiritual. Dom Quixote, Werther, Julian Sorel, são retratos de uma época. Fausto é o retrato de toda uma cultura. O investigador da natureza— o morfologista sistemático — apenas conhece o retrato do mundo como imitação, o que corresponde à «fidelidade à natureza» e à «parecença» do pintor artífice, que, no fundo, trabalha duma forma puramente matemática, Um retrato autêntico, à maneira de Rembrandt é, porém, fisionómico, isto é, história captada num dado momento. A sua série de auto-retratos não é mais do que uma autobiografia (à maneira autenticamente goethiana). Assim devia ser escrita a biografia das grandes culturas. A parte de imitação, o trabalho do historiador profissional sobre os factos e os números, é apenas meio e não fim. Os traços fisionómicos da história são feitos de tudo o que até ao presente se tem apenas valorizado segundo critérios pessoais, segundo o que é benéfico ou prejudicial, bom ou mau, agradável ou desagradável. Formas políticas e formas económicas, batalhas e artes, ciências e deuses, matemática e moral, tudo o que é facto acontecido, todo o fenómeno, é símbolo, é expressão de uma alma e quer ser apreciado pelos olhos daquele que conhece os homens. Não quer ser aprisionado em leis; quer ser sentido em todo o seu significado. E desta maneira, a investigação alça-se até uma última e superior certeza: «tudo o que passa é apenas alegoria».

Pode aprender-se a ser naturalista, mas é preciso nascer-se para ser historiador. Este compreende e penetra o homem e os factos duma forma certeira, guiado por um sentimento que não se aprende, que não é permeável a influências intencionais e que só muito raramente se manifesta em toda a sua plenitude. Analisar, definir, ordenar, delimitar segundo causas e efeitos, qualquer pessoa pode fazer à vontade. Isto é realizar um trabalho; mas outra coisa é criar. Forma e lei, alegoria e ideia, símbolo e fórmula, todos têm órgãos diferentes e a antítese que entre eles ocorre é semelhante à relação que existe entre a vida e a morte, à criação e à destruição. A razão, o sistema, o conceito matam, à medida que «conhecem»; transformam o cógnito em objecto estático, susceptível de ser medido e subdividido. A contemplação, pelo contrário, vivifica; integra todos os pormenores de uma unidade viva e intimamente sentida. A poesia e a investigação histórica são aparentadas.
 
 

 


 
Teorias de História