Porque é tão difícil
construir uma teoria critica?
Boaventura de
Sousa Santos
[Revista
Crítica de Ciências Sociais, Nº54, Junho, 1999,
pp. 197-214]
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
e Centro de Estudos Sociais.
1. As Dificuldades
O problema mais intrigante que as
ciências sociais hoje enfrentam pode ser assim formulado: vivendo nós no início
do milénio num mundo onde há tanto para criticar, porque se tornou tão difícil
produzir uma teoria crítica? Por teoria crítica entendo toda a teoria que não reduz
a “realidade” ao que existe. A realidade, qualquer que seja o modo como é
concebida, é considerada pela teoria crítica como um campo de possibilidades e
a tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o
âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado. A análise crítica do
que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades
da existência, e que, portanto, há alternativas susceptíveis de superar o que é
criticável no que existe. 0 desconforto, o inconformismo ou a indignação
perante o que existe suscitam impulso para teorizar a sua superação. Não parece
que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto
ou indignação e nos o produzam inconformismo. Basta rever até que ponto as
grandes promessas da modernidade permanecem incumpridas
ou o seu cumprimento redundou em efeitos perversos.
No que respeita à promessa da igualdade,
os países capitalistas avançados, com 21% da população mundial, controlam 7.8%
da produção mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda a energia
produzida. Os trabalhadores do Terceiro Mundo do sector têxtil ou da
electrónica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América
do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade. Desde
que a crise da dívida rebentou no início da década de 80, os países devedores
do Terceiro Mundo têm vindo a contribuir em termos líquidos para a riqueza dos
países desenvolvidos, pagando a estes em média por ano mais 30 biliões de
dólares do que o que receberam em novos empréstimos. No mesmo período, a
alimentação disponível nos países do Terceiro Mundo foi reduzida em cerca de
30%. No entanto, só a área de produção de soja no Brasil daria para alimentar
40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados milho e feijão. Mais pessoas
morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes. A
distância entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no mesmo
país não tem cessado de aumentar.
No que respeita à promessa da
liberdade, as violações dos direitos humanos em países vivendo formalmente em
paz e democracia assumem proporções avassaladoras. Quinze milhões de crianças
trabalham em regime de cativeiro na Índia; a violência policial e prisional
atinge o paroxismo no Brasil e na Venezuela, enquanto os incidentes raciais na
Inglaterra aumentaram 276% entre 1989 e 1996; a violência sexual contra as
mulheres, a prostituição infantil, os meninos de rua, os milhões de vítimas de
minas anti‑pessoais, a discriminação contra os toxicodependentes, os
portadores de HIV ou os homossexuais, o julgamento de cidadãos por juízes sem
rosto na Colômbia e no Peru, as limpezas étnicas e o chauvinismo religioso são
apenas algumas manifestações da diáspora da liberdade.
No que respeita à promessa da paz
perpétua que Kant tão eloquentemente formulou, enquanto no século XVIII morreram 4,4 milhões de pessoas em 68 guerras, no
nosso século morreram 99 milhões de pessoas em 237 guerras. Entre o século XVIII e o século XX a população
mundial aumentou 3,6 vezes, enquanto os mortos na guerra aumentaram 22,4 vezes.
Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da guerra fria, a paz que muitos
finalmente julgaram possível tornou‑se uma cruel miragem em face do
aumento nos últimos seis anos dos conflitos entre Estados e sobretudo dos conflitos
no interior dos Estados. Finalmente, a promessa da dominação da natureza foi
cumprida de modo perverso sob a forma de destruição da natureza e da crise
ecológica. Apenas dois exemplos. Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de um
terço da sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da
biomassa vegetal e do oxigénio, 600.000 hectares de
floresta mexicana são destruídos anualmente. As empresas multinacionais detêm
hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta amazónica.
A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afectar ‑os
países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem
hoje acesso a água potável.
Esta enumeração breve dos problemas
que nos causam desconforto ou indignação é suficiente para nos obrigar a
interrogarmo‑nos criticamente sobre a natureza e a qualidade moral da
nossa sociedade e a buscarmos alternativas teoricamente fundadas nas respostas
que dermos a tais interrogações. Essas interrogações e essa busca estiveram
sempre na base da teoria crítica moderna. Max Horkheimer
definiu‑a melhor que ninguém. Segundo ele, a teoria crítica moderna é, .antes de mais, uma teoria fundada epistemologicamente na
necessidade de superar o dualismo burguês entre o cientista individual produtor
autónomo de conhecimento e a totalidade da actividade social que o rodeia: «A
razão não pode ser transparente para consigo mesma enquanto os homens agirem
como membros de um organismo irracional» (Horkheimer,
1972: 208). De acordo com Horkheimer, a
irracionalidade da sociedade moderna reside em ela ser produto de uma vontade
particular, o capitalismo, e não de uma vontade geral, «uma vontade unida e autoconsciente». (Horkheimer,1972:208).
Daí que a teoria crítica não possa aceitar os conceitos de «bom», «útil»,
«apropriado», «produtivo», ou «valioso», tal como a presente ordem social os
entende e se recuse a concebê‑los como pressupostos não científicos em
relação aos quais nada há a fazer. «A aceitação crítica das categorias que
governam a vida social contém simultaneamente a condenação delas» (Horkheimer,1972: 208). É por isso que a identificação do
pensamento crítico com a sua sociedade é sempre plena de tensões. A luta por
objectivos emancipatórios é intrínseca à teoria
crítica, daí resultando que «a primeira consequência da teoria que reclama pela
transformação global da sociedade é a intensificação da luta à qual a teoria
está ligada» (Horkheimer, 1972: 219).
A influência de Marx na concepção horkheimeriana da teoria crítica moderna é evidente. E, de
facto, o marxismo foi a base de sustentação principal da sociologia crítica no
nosso século. No entanto, esta teve outras fontes de inspiração no romantismo
do século XVIII e de princípios do século XIX, no pensamento utópico do século XIX,
no pragmatismo americano do nosso século. Desdobrou‑se em múltiplas
orientações teóricas, estruturalistas, existencialistas, psicanalíticas, fenomenológicas, e os ícones analíticos mais salientes
foram, talvez, classe, conflito, elite, alienação, dominação, exploração,
racismo, sexismo, dependência, sistema mundial, teologia da libertação.
Estes conceitos e as configurações
teóricas em que eles se integram são ainda hoje parte integrante do trabalho
dos sociólogos e cientistas sociais e, à luz disso, é defensável pensar‑se
que afinal continua hoje a ser tão fácil ou tão possível produzir teoria social
crítica como antes. Julgo, contudo, que assim não é. Em primeiro lugar, muitos
desses conceitos deixaram de ter a centralidade de que gozavam antes ou foram
internamente tão reelaborados e matizados que perderam muito da sua força
crítica. Em segundo lugar, a sociologia convencional, tanto na sua vertente
positivista, como na vertente antipositivista,
conseguiu fazer passar, como remédio para a crise da sociologia, a crítica da
sociologia crítica, uma crítica assente, no caso da sociologia positivista, na
ideia de que o rigor metodológico e a utilidade social da sociologia pressupõem
que ela se concentre na análise do que existe e não nas alternativas ao que
existe e, no caso da sociologia antipositivista, na
ideia de que o cientista social não pode impor as suas preferências normativas
por carecer de um ponto de vista privilegiado para o fazer.
Em resultado disto, a pergunta que
sempre serviu de ponto de partida para a teoria crítica --
de que lado estamos? --tornou‑se para alguns uma pergunta ilegítima, para
outros, uma pergunta irrelevante e, para outros ainda, uma pergunta
irrespondível. Se alguns, por acharem que não têm de tomar partido, deixaram de
se preocupar com a pergunta e criticam quem com ela se preocupa, outros, talvez
a geração mais jovem de cientistas sociais, embora gostassem de responder à
pergunta e tomar partido, vêem, por vezes com angústia, a dificuldade,
aparentemente cada vez maior, de identificar as posições alternativas em
relação às quais haveria que tomar partido.
2. Possíveis Causas
Passo a identificar alguns dos
factores que, em meu entender, são responsáveis pela dificuldade em construir
causas
uma teoria
crítica. Em primeiro lugar, e como resulta eloquentemente da posição de Horkheimer atrás referida, a teoria crítica moderna concebe
a sociedade como uma totalidade e, como tal, propõe uma alternativa total à sociedade que existe. A teoria marxista é
exemplar a este respeito. A concepção da sociedade como totalidade é uma
construção social como qualquer outra. 0 que a distingue das construções rivais
são os pressupostos em que assenta. Tais pressupostos são os seguintes: uma forma de conhecimento
ele próprio total como condição de abarcar credivelmente a totalidade social;
um princípio único de transformação social, e um agente colectivo, igualmente
único, capaz de a levar a cabo; um contexto político institucional bem definido
que torne possível formular lutas credíveis à luz dos objectivos que se
propõem. A crítica destes pressupostos será feita ao longo do livro. Neste
momento, quero apenas identificar alguns dos lugares onde a crítica nos trouxe.
0 conhecimento totalizante
é um conhecimento da ordem sobre o caos. 0 que distingue neste domínio a
sociologia funcionalista da sociologia crítica é o
facto de a primeira pretender a ordem da regulação social e a segunda pretender
a ordem da emancipação social.. No final
do século, encontramo‑nos perante a desordem tanto da regulação social
como da emancipação social. 0 nosso lugar é em sociedades que são
simultaneamente autoritárias e libertárias.
A última grande tentativa de produzir uma
teoria crítica moderna coube a Foucault, tomando
precisamente como alvo o conhecimento totalizante da
modernidade, a ciência moderna. Ao contrário da opinião corrente; Foucault é para mim um crítico moderno e não um crítico pós‑moderno.
Ele representa o clímax e, paradoxalmente, a derrocada da teoria crítica
moderna. Levando até às últimas consequências o poder disciplinar do panóptico construído pela ciência moderna, Foucault mostra que não há qualquer saída emancipatória dentro deste «regime da verdade», já que a
própria resistência se transforma ela própria num poder disciplinar e,
portanto, numa opressão consentida porque interiorizada. 0 grande mérito de Foucault foi ter mostrado as opacidades e os silêncios
produzidos pela ciência moderna, conferindo credibilidade à busca de «regimes
da verdade», alternativos, outras formas de conhecer marginalizadas, suprimidas
e desacreditadas pela ciência moderna. 0 nosso lugar é hoje um lugar multicultural, um lugar que
exerce uma constante hermenêutica de suspeição contra supostos universalismos
ou totalidades. Intrigantemente, a sociologia disciplinar tem ignorado quase
completamente o multiculturalismo. Este tem florescido
nos estudos culturais, configurações transdisciplinares
onde convergem as diferentes ciências sociais e os estudos literários e onde se
tem produzido conhecimento crítico, feminista, anti‑sexista, anti‑racista,
pós‑colonial.
0 princípio único de transformação
social que subjaz à teoria crítica moderna assenta na inevitabilidade de um
futuro socialista gerado pelo desenvolvimento constante das forças produtivas e
pelas lutas de classes em que ele se traduz. Ao contrário do que sucedeu nas transições
anteriores, será uma maioria, a classe operária, e não uma minoria, que
protagonizara a superação da sociedade capitalista. A sociologia crítica
moderna interpretou este princípio com grande liberdade e, por vezes,
introduziu‑lhe revisões profundas. Neste domínio, a teoria crítica
moderna partilhou com a sociologia convencional dois pontos importantes. Por um
lado, a concepção do agente histórico corresponde por inteiro à dualidade entre
estrutura e acção que subjaz a toda a sociologia. Por outro lado, ambas as
tradições sociológicas tiveram a mesma concepção das relações entre natureza e
sociedade e ambas viram na industrialização a parteira do desenvolvimento. Não
admira, pois, que, neste domínio, a crise da teoria crítica moderna se confunda
em boa parte com a crise da sociologia em geral.
A nossa posição pode resumir‑se
assim. Em primeiro lugar, não há um princípio único de transformação social, e
mesmo aqueles que continuam a acreditar num futuro socialista vêem‑no
como um futuro possível, em concorrência com outros futuros alternativos. Não
há agentes históricos únicos nem uma forma única de dominação. São múltiplas as
faces da dominação e da opressão e muitas delas foram irresponsavelmente
negligenciadas pela teoria crítica moderna, como, por exemplo, a dominação
patriarcal, o que é, nomeadamente, bem visível em Habermas,
como mostrou Nancy Fraser.
Não é por acaso que, nas duas últimas décadas, a sociologia feminista produziu
a melhor teoria crítica. Sendo múltiplas as faces da dominação, são múltiplas
as resistências e os agentes que as protagonizam. Na ausência de um princípio
único, não é possível reunir todas as resistências e agências sob a alçada de
uma grande teoria comum. Mais do que de uma teoria comum, do que necessitamos é
de uma teoria de tradução que torne
as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos actores colectivos ' «conversarem», sobre as opressões a que resistem e as
aspirações que os animam.
Em segundo lugar, a industrialização
não é necessariamente o motor do progresso nem a parteira do desenvolvimento.
Por um lado, ela assenta numa concepção retrógrada da natureza, incapaz de ver
a relação entre a degradação desta e a degradação da sociedade que ela
sustenta. Por outro lado, para dois terços da humanidade a industrialização não
trouxe desenvolvimento. Se por desenvolvimento se entende o crescimento, do PIB e da riqueza dos países menos desenvolvidos para que se
aproximem mais dos países desenvolvidos, é fácil mostrar que tal objectivo é
uma miragem dado que a desigualdade entre países ricos e países pobres não
cessa de aumentar. Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB
para assegurar mais bem‑estar às populações, é hoje fácil
mostrar que esse bem‑estar não depende tanto do nível da riqueza quanto
da distribuição da riqueza. A falência da miragem do desenvolvimento é cada vez
mais evidente, e, em vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento
alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao
desenvolvimento.
A crise da teoria crítica
moderna tem, neste domínio, algumas consequências perturbadoras. Durante muito
tempo, as alternativas científicas foram inequivocamente também alternativas
políticas e manifestaram‑se por ícones analíticos distintos que tornavam
fácil distinguir os campos e as contradições entre eles. A crise da teoria
crítica moderna arrastou consigo a crise da distinção icónica e os mesmos ícones
passaram a ser partilhados por campos anteriormente bem demarcados, ou, em
alternativa, foram criados ícones híbridos constituídos eclecticamente com
elementos de diferentes campos. Assim, a oposição capitalismo/socialismo foi
sendo substituída pelo ícone sociedade industrial, sociedade pós‑industrial
e, finalmente, sociedade de informação. A oposição entre imperialismo e
modernização foi sendo substituída pelo conceito, intrinsecamente híbrido, de
globalização. A oposição revolução/democracia foi quase drasticamente
substituída pelos conceitos de ajustamento estrutural, pelo consenso de
Washington e também pelos conceitos híbridos de participação e desenvolvimento
sustentado.
Com esta política semântica, os campos
deixaram de ter nomes distintivos, e para muitos, com isso, os campos deixaram
de ser distintos. Reside aqui a razão da perplexidade daqueles que, querendo
tom ar partido, sentem grandes dificuldades em identificar os campos entre os
quais há que tomar partido.
0 correlato da dificuldade em
identificar os campos é a indefinição ou indeterminação do inimigo ou do
adversário, uma síndrome reforçada pela descoberta da multiplicidade das
opressões, das resistências e dos agentes atrás referidos. Quando, no início do
século XIX, os ludditas
destruíram as máquinas que os lançavam no desemprego, era talvez fácil
demonstrar‑lhes que o inimigo não eram as
máquinas mas quem tinha poder para as comprar e utilizar. Hoje, a opacidade do
inimigo ou do adversário parece ser muito maior. Por detrás do inimigo mais
próximo parece estar outro e por detrás deste parece estar outro ainda, e assim
sucessivamente. E quem está por detrás pode também estar pela frente. De algum
modo, o espaço virtual é bem a metáfora desta indeterminação: o ecrã que está
na frente pode igualmente estar atrás.
Em resumo, as dificuldades em construir hoje uma teoria crítica podem
formular‑se do seguinte modo. As promessas da modernidade, por não terem
sido cumpridas, transformaram‑se em problemas para os quais parece não
haver solução. Entretanto, as condições que produziram a crise da teoria
crítica moderna não se converteram ainda nas condições da superação da crise.
Daí a complexidade da nossa posição transicional, que
pode resumir‑se assim: enfrentamos problemas modernos para os quais não
há soluções modernas. Segundo uma posição, que podemos designar por pós‑modernidade
reconfortante, o facto de não haver soluções modernas é indicativo de que
provavelmente não há problemas modernos, como também não houve antes deles
promessas da modernidade. Há, pois, que aceitar e celebrar o que existe.
Segundo outra posição, que designo por pós‑modernidade inquietante ou de
oposição, a disjunção entre a modernidade dos problemas e a pós‑modernidade
das possíveis soluções deve ser assumida plenamente e deve ser transformada num
ponto de partida para enfrentar os desafios da construção de uma teoria crítica
pós‑moderna. É esta a minha posição, que aqui me limito a resumir a traço
muito grosso.
3. Para uma teoria crítica
pós-moderna
Uma das fraquezas da teoria crítica
moderna foi não ter reconhecido
que a razão que critica não pode ser a mesma que pensa, constrói e legitima
aquilo que é criticável. Não há conhecimento em geral, tal como não há
ignorância em geral. 0 que ignoramos é sempre a ignorância de uma certa forma
de conhecimento e, vice‑versa, o que conhecemos é sempre o conhecimento
em relação a uma certa forma de ignorância. Todo o acto de conhecimento é uma
trajectória de um ponto A, que designamos por ignorância, para um ponto B, que designamos por conhecimento. No projecto da
modernidade, podemos distinguir duas formas de conhecimento: o conhecimento‑regulação, cujo ponto de ignorância se
designa por caos e cujo ponto de saber, por ordem, e o conhecimento‑emancipação,
cujo ponto de ignorância se designa por colonialismo, e cujo ponto de saber, por
solidariedade. Apesar de estas duas formas de conhecimento estarem ambas
inscritas na matriz da modernidade eurocêntrica, a verdade é que o conhecimento‑regulação veio a dominar totalmente o conhecimento‑emancipação. Isto deveu‑se ao modo
como a ciência moderna se converteu em conhecimento hegemónico e se
institucionalizou como tal. Ao negligenciar a crítica epistemológica da ciência
moderna, a teoria crítica, apesar de pretender ser uma forma de conhecimento‑emancipação, acabou por se converter em conhecimento‑regulação.
Para a teoria crítica pós‑moderna,
ao contrário, todo o conhecimento crítico tem de começar pela crítica do
conhecimento. Na actual fase de transição paradigmática, a teoria crítica pós‑moderna
constrói‑se a partir de uma tradição epistemológica marginalizada e
desacreditada da modernidade, o conhecimento‑emancipação.
Nesta forma de conhecimento, a ignorância é o colonialismo e o colonialismo é a
concepção do outro como objecto, e, consequentemente, o não reconhecimento do
outro como sujeito. Nesta forma de conhecimento, conhecer é reconhecer, é
progredir no sentido de elevar o outro da condição de objecto à condição de
sujeito. Esse conhecimento‑reconhecimento é o
que designo por solidariedade. Estamos tão habituados a conceber o conhecimento
como um princípio de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil
imaginar uma forma de conhecimento que funcione como princípio de
solidariedade. No entanto, tal dificuldade é um desafio que deve ser
enfrentado. Sabendo nós hoje o que aconteceu às alternativas propostas pela
teoria crítica moderna, não nos podemos contentar com um pensamento de
alternativas. Necessitamos de um pensamento alternativo de alternativas.
A opção das ciências sociais em geral e
da sociologia em especial pelo conhecimento-emancipação
tem três implicações.
A primeira implicação pode formular‑se
do seguinte modo: do monoculturalismo
para o muticulturalismo. Como a solidariedade é
uma forma de conhecimento que se obtém por via do reconhecimento do outro, o
outro só pode ser conhecido enquanto produtor de conhecimento. Daí que todo o conhecimento‑emancipação tenha uma vocação
multicultural. A construção de um conhecimento multicultural tem duas
dificuldades: o silêncio e a diferença. 0
domínio global da ciência moderna como conhecimento‑regulação
acarretou consigo a destruição de muitas formas de saber, sobretudo daquelas
que eram próprias dos povos que foram objecto do colonialismo ocidental. Tal
destruição produziu silêncios que tornaram impronunciáveis
as necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais cujas formas de
saber foram objecto de destruição. Não esqueçamos que, sob a capa dos valores
universais autorizados pela razão, foi de facto imposta a razão de uma «raça»,
de um sexo e de uma classe social. A questão é, pois: como realizar um diálogo
multicultural quando algumas culturas foram reduzidas ao silêncio e as suas
formas de ver e conhecer o mundo se tornaram impronunciáveis?
Por outras palavras, como fazer falar o silêncio, sem que ele fale
necessariamente a linguagem hegemónica que o pretende fazer falar? Estas
perguntas constituem um grande desafio ao diálogo multicultural. Os silêncios,
as necessidades e as aspirações impronunciáveis só são captáveis por uma sociologia das ausências que proceda
pela comparação entre os discursos disponíveis, hegemónicos e contra‑hegemónicos,
e pela análise das hierarquias entre eles e dos vazios que tais hierarquias
produzem. 0 silêncio é, pois, uma construção que se afirma como sintoma de um
bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser desenvolvida.
A segunda dificuldade do conhecimento
multicultural é a diferença. Só existe conhecimento e, portanto, solidariedade
fias diferenças e a diferença sem inteligibilidade conduz à incomensurabilidade
e, em última instância, à indiferença. Daí a necessidade da teoria da tradução como parte integrante
da teoria crítica pós‑moderna. É por via da tradução e do que eu designo
por hermenêutica diatópica que uma necessidade, uma
aspiração, uma prática numa dada cultura .pode ser
tornada compreensível e inteligível para outra cultura. 0 conhecimento‑emancipação
não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva
de suporte epistemológico às práticas emancipatórias,
todas elas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis quando
ligadas em rede.
0
segundo desafio do conhecimento‑emancipação
pode ser assim formulado: da peritagem
heróica ao conhecimento edificante. A ciência moderna e, portanto, também a
teoria crítica moderna, assenta no pressuposto de que o conhecimento é válido
independentemente das condições que o tornaram possí vel. Por isso, a sua aplicação depende
igualmente de todas as condições que não sejam necessárias para garantir a
operacional idade técnica da aplicação. Tal operacionalidade é construída
através de um processo que designo por falsa
equivalência de escalas e que consiste em produzir e ocultar um
desequilíbrio de escala entre a acção técnica e as consequências técnicas. Por
via desse desequilíbrio, a grande escala da acção é posta em paralelo com a
pequena escala das consequências.
Esta falsa equivalência de escalas é
fundamental neste paradigma de conhecimento. Dado que a ciência moderna desenvolveu
uma enorme capacidade de agir, mas não desenvolveu uma correspondente
capacidade de prever, as consequências de uma acção científica tendem a ser
menos científicas que a acção científica em si mesma. Este desequilíbrio e a
falsa equivalência de escalas que o oculta tornam possível o heroísmo técnico
do cientista. Uma vez descontextualizado, todo o
conhecimento é potencialmente absoluto. Esta descontextualização
tornou possível o tipo de profissionalização que hoje domina. Apesar de a
situação parecer estar a mudar, ainda hoje é muito fácil produzir ou aplicar
conhecimento escapando às consequências. A tragédia pessoal do conhecimento só é hoje detectável nas
biografias dos grandes criadores da ciência moderna de finais do século XIX e começos do século XX.
As ciências sociais críticas têm,
pois, de refundar uma das reivindicações originais da teoria crítica moderna: a distinção entre objectividade e
neutralidade. A objectividade decorre da aplicação rigorosa e honesta dos
métodos de investigação que nos permitem fazer análises que não se reduzem à
reprodução antecipada das preferências ideológicas daqueles que a levam a cabo.
A objectividade decorre ainda da aplicação sistemática de métodos que permitam
identificar os pressupostos, os preconceitos, os valores e os interesses que
subjazem à investigação científica supostamente desprovida deles. Assim
concebida, a objectividade é uma «objectividade forte% para usar uma expressão
de Sandra Harding (1991, 1993). É esta objectividade
que permite dar conta adequadamente das diferentes e até contraditórias perspectivas,
posições, etc., que se defrontam quanto ao tema em análise. Isto, no entanto,
deve ser feito de maneira a evitar dois vícios igualmente graves e ambos
assentes na fuga à argumentação: a recusa em argumentar a favor ou contra
qualquer posição por se pensar que o cientista não pode nem deve tomar posição;
ou a recusa em argumentar em favor da posição própria por se pressupor que ela,
longe de ser uma entre outras, é a única ou a única racional e, como tal, se
impõe sem necessidade de argumentação. Nem a objectividade nem a neutralidade
são possíveis em termos absolutos. A atitude do cientista social crítico deve
ser a que se orienta para maximizar a objectividade e para minimizar a neutralidade.
A teoria crítica pós‑moderna parte
do pressuposto de que o conhecimento é sempre contextualizado pelas condições que
o tornam possível e de que ele só progride na medida em que transforma em sentido
progressista essas condições. Por isso, o conhecimento‑emancipação
conquista‑se, assumindo as consequências do seu impacto. Daí que seja um
conhecimento prudente, finito, que mantém a escala das acções tanto quanto
possível ao nível da escala das consequências.
A profissionalização do conhecimento é
indispensável, mas apenas na medida em que torna possível, eficaz e acessível
a aplicação partilhada e desprofissionalizada do
conhecimento. Esta corresponsabilização contém na
sua base um compromisso ético. Neste domínio, vivemos hoje numa sociedade
paradoxal. A afirmação discursiva dos valores é tanto mais necessária quanto
mais as práticas sociais dominantes tornam impossível a realização desses
valores. Vivemos numa sociedade dominada por aquilo que São Tomás de Aquino
designa por habitus principiorum, o hábito
de proclamar princípios para não ter de, viver segundo eles. Não admira, pois,
que a teoria pós‑moderna relativize os valores e, nessa medida, tenha uma
forte componente de desconstrução, sobretudo
evidente em Derrida. Mas a pós‑modernidade de
oposição não pode quedar‑se pela desconstrução,
uma vez que esta, levada ao extremo, desconstrói a
própria possibilidade da resistência e da alternativa. Daqui decorre o terceiro
desafio do conhecimento‑emancipação às ciências
sociais em geral e à sociologia em especial.
Este desafio pode formular‑se
assim: da acção conformísta
à acção rebelde. A teoria crítica moderna, tal como a sociologia
convencional, centrou‑se na dicotomia estrutura/acção e sobre ela
construiu os seus quadros analíticos e teóricos. Não questiono a utilidade da
dicotomia mas observo que, com o tempo, ela se transformou mais num debate sobre
a ordem do que num debate sobre a solidariedade. Ou seja, foi absorvida pelo campo
epistemológico do conhecimento‑regulação.
0 melhor sinal desta absorção tem sido a sorte
da dicotomia determinismo/contingência. Perante a aceleração do tempo
histórico e a crise do tempo linear, a emergência da teoria das catástrofes e
da complexidade, o determinismo a sua concepção tradicional transformou‑se
numa maneira preguiçosa de pensar, quer a transformação social, quer a impossibilidade
desta. Por outro lado, as ideias de contingência e fragmentação que ocuparam o
espaço deixado pelo determinismo transformaram‑se numa maneira
irresponsável de pensar a transformação social ou a impossibilidade dela.
A
renovação da teoria crítica passa, neste domínio, por duas ideias. A primeira é
que as estruturas são tão dinâmicas quanto as acções que elas consolidam. No
seu conjunto, criam horizontes de possibilidades e, por isso, tanto excluem como
potenciam. A segunda ideia é que a determinação ou indeterminação deixaram de
ser conceitos filosóficos para serem variáveis empíricas. Como diria Renê Thom, os processos são mais
ou menos determinados e um processo dado pode passar por momentos de maior ou
de menor determinação. A variação depende de muitos factores, mas depende
sobretudo de tipos de acção e de subjectividade que intervêm nos processos. As
acções e as subjectividades são tanto produtos como
produtores dos processos sociais. As determinações consolidam‑se na
medida em que dominam subjectividades orientadas para identificar limites e se
conformarem com eles, quer porque os acham naturais, quer porque os acham
inultrapassáveis. Ao contrário, as determinações desestabilizam‑se na
medida em que predominam subjectividades orientadas para identificar
possibilidades e, as ampliarem para além do que é possível sem esforço.
Daí
que, para a teoria crítica pós‑moderna, seja necessário centrarmo‑nos
numa outra dualidade que não a determinação/contingência ou estrutura/acção: a
dualidade entre a acção conformista e a acção rebelde. Tanto no domínio da produção
como no domínio do consumo, a sociedade capitalista afirma‑se cada vez
mais como uma sociedade fragmentada, plural e múltipla, onde as fronteiras
parecem existir apenas para poderem ser ultrapassadas. A substituição
relativa. da provisão de bens e serviços pelo mercado de bens e serviços cria
campos de escolha que facilmente se confundem com exercícios de autonomia e libertação
de desejos. Tudo isto ocorre dentro de limites estreitos, os da selecção das
escolhas e os da solvência para as tornar efectivas, mas tais limites são
facilmente construídos simbolicamente como oportunidades, sejam elas a
fidelização às escolhas ou o consumo a crédito. Nestas condições, a acção
conformista passa facilmente por acção rebelde. E, concomitantemente, a acção
rebelde parece tão fácil que se transforma num modo de conformismo alternativo.
É neste contexto que a teoria
crítica pós‑moderna procura reconstruir a ideia e a prática da
transformação social emancipatória. As especificações
das formas de socialização, de educação e de trabalho que promovem
subjectividades rebeldes ou, ao contrário, subjectividades conformistas é a
tarefa primordial da inquirição crítica pós‑moderna.
A construção social da rebeldia
e, portanto, de subjectividades inconformistas e capazes de indignação é, ela
própria, um processo social contextualizado. 0 contexto do início do milénio
cria três grandes desafios a tal construção. 0 primeiro desafio
é a discrepância entre as experiências e
as expectativas. A
não coincidência entre experiências e expectativas é a grande novidade
histórica do paradigma da modernidade. Trata‑se da ideia de que as
experiências do presente serão excedidas pelas expectativas quanto ao futuro.
Ao excesso das expectativas em relação às experiências foi dado o nome de
progresso. A teoria crítica foi uma mensagem privilegiada dessa discrepância e,
se algo a distinguia da teoria convencional, era exactamente a sua predilecção
por ampliar esse excesso e, com ele, a discrepância entre experiências medíocres
e expectativas exaltantes.
No final do século, a globalização neoliberal e o capitalismo neo‑selvagem vieram
alterar esta condição. Para a esmagadora maioria da população, a discrepância
entre experiências e expectativas mantém‑se, mas invertida: as
expectativas são agora negativas e deficitárias em relação às experiências. Às
experiências de hoje, por mais medíocres, teme‑se que se sigam outras no
futuro ainda mais medíocres. Neste contexto, a teoria crítica vê‑se na
contingência de defender as experiências de hoje contra as expectativas
deficitárias e com isso o seu programa de transformação social pode acabar por
redundar na defesa do status quo. Mas neste caso, o que distingue a
teoria crítica da teoria convencional? E não será esta mais adequada para dar
conta da nossa condição? E como pode uma teoria crítica que defende o status quo promover
credivelmente a constituição de subjectividades rebeldes?
De algum modo, a realidade é menos
dilemática do que parece nesta formulação. É que se a teoria crítica convencional
procurou, no passado, minimizar a discrepância entre experiências e
expectativas, quando estas eram positivas e excessivas, hoje,_ quando estas se
tornam negativas e deficitárias, procura maximizar a discrepância entre elas e
as experiências. Deixou, pois, de defender o status quo
para defender a
sua transformação conservadora. A versão extrema desta orientação é a do conservadorismo revolucionário com poder crescente nos
Estados Unidos da América e nas agências multilaterais dominadas
pelos EUA. Se com isto o status
quo muda de qualidade política e a
teoria crítica pode encontrar nele um factor de credibilização,
por outro lado, a teoria crítica tem de especificar cultural e politicamente o
que distingue a subjectividade e acção rebelde que quer promover da que é
promovida pelo revolucionarismo conservador.
0 segundo desafio pode ser formulado
pela dicotomia consenso l resignação. 0 conceito central neste desafio é o conceito de hegemonia.
Na peugada de Marx e de Gramsci, a teoria crítica
sempre entendeu por hegemonia a capacidade das classes dominantes em
transformarem as suas ideias em ideias dominantes. Por via dessa transformação,
as classes dominadas acreditam estar a ser governadas em nome do interesse
geral, e com isso consentem na governação. A teoria crítica teve um papel
central em denunciar o carácter repressivo deste consenso e a mistificação ideológica
em que assentava. E, ao fazê‑lo, suscitou maior conflitualidade
social e abriu campo para alternativas sociais e políticas para além do
consenso hegemónico.
0 que é novo, no contexto actual, é que
as classes dominantes se desinteressaram do consenso, tal é a confiança que têm
em que não há alternativa às ideias e soluções que defendem. Por isso, não se
preocupam com a vigência possível de ideias ou projectos que lhes são hostis,
já que estão convictos da sua irrelevância e da inevitabilidade do seu
fracasso. Com isto, a hegemonia transformou‑se e passou a conviver com a
alienação social, e em vez de assentar no consenso, passou a assentar na
resignação. 0 que existe
não tem de ser aceite por ser bom. Bom ou mau, é inevitável, e é
nessa base que tem de se aceitar.
A teoria crítica foi desenvolvida para
lutar contra o consenso como forma de questionar a dominação e criar o impulso
de lutar contra ela. Como proceder numa situação em que o consenso deixou de
ser necessário e, portanto, a sua desmistificação deixou de ser a mola do
inconformismo? É possível lutar contra a resignação com as mesmas armas
teóricas, analíticas e políticas com que se lutou contra o consenso?
Este desafio é enorme. A resignação,
quando desestabilizada, tende a dar lugar a rupturas radicais com o que existe.
É de algum modo o que verificamos hoje nos movimentos religiosos milenaristas
ou apocalípticos, nos movimentos ecológicos fundamentalistas e em certas
correntes mais radicais dos movimentos feministas. Estas rupturas radicais são
dificilmente inteligíveis para a teoria crítica ou apropriáveis por ela. A
teoria crítica moderna, sob a influência da cientificidade
e do determinismo das suas premissas, sempre procurou ligar o presente ao
futuro, as continuidades às descontinuidades. Promoveu a discrepância entre
experiências e expectativas, mas manteve‑as sempre articuladas,
precisamente pela ideia de progresso. Como conceber rupturas progressistas fora
da ideia de progresso?
A ruptura radical representa um excesso
de presente em relação ao passado que é indiferente ao futuro, quer porque se
pretende efémera, quer porque o futuro que visiona é inevitavelmente
catastrófico. A exacerbação tanto da resignação como da ruptura radical
questiona os princípios de determinação e de direcção em que se fundou a teoria
crítica, Para enfrentar este desafio a teoria crítica terá de saber compensar a
determinação e a direcção pela exigência do compromisso ético.
E isto me conduz ao terceiro e último
desafio, o qual se pode formular na dicotomia espera l esperança. 0 contexto actual é o
da maximização e máxima indeterminação do risco. Vivemos numa sociedade de
riscos individuais e colectivos inseguráveis. São
eles acima de tudo que minam a ideia de progresso e a linearidade e cumulatividade do tempo histórico.
São eles os responsáveis pelo retorno da
ideia do tempo cíclico, da decadência, da escatologia milenarista. 0 carácter
caótico dos riscos torna‑os presas fáceis de desígnios divinos ou, o que
é o mesmo, de contingências absolutas. Esta situação traduz‑se
sociologicamente por uma atitude de espera sem esperança. Uma atitude de
espera, porque a concretização do risco é simultaneamente totalmente certa e
totalmente incerta. Só resta prepararmo‑nos para esperar sem estarmos
preparados. E uma atitude sem esperança porque o que vem não é bom e não tem
alternativa.
À teoria crítica moderna foi sempre
fundamental a ideia de espera, pois só com esta atitude é possível manter em
aberto a possibilidade de alternativas credíveis. Mas, por serem progressistas
ou melhores que o que existe, tais alternativas foram também o motivo da
esperança. Assim foi possível esperar com esperança. A teoria crítica moderna
representou uma secularização fiei da esperança bíblica. Num contexto de espera
sem esperança, a teoria crítica tem apenas a alternativa de lutar contra a
inevitabilidade dos riscos. Para isso, porém, tem de assumir uma posição
explicitamente utópica, uma posição que sempre teve, mas que durante muito tempo
clamou não ter. Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o
estatuto da espera, tornando‑a simultaneamente mais activa e mais
ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite
lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exacto lugar e tempo em que
se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia
por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de
experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da
inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em
todos os tempos e lugares excepto naqueles em que ocorreram efectivamente. É
este o realismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que,
num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco
por toda a parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e
decente.
À teoria crítica compete, em vez de
generalizar a partir dessas alternativas em busca da alternativa, torná‑las
conhecidas para além dos locais e criar, através da teoria da tradução,
inteligibilidades e cumplicidades recíprocas entre diferentes alternativas em
diferentes locais. A criação de redes translocais
entre alternativas locais é uma forma de globalização contra‑hegemónica ‑ a nova face do cosmopolitismo.
Disse Marx que cada sociedade só se
coloca em cada época os problemas que pode resolver. Compreendo as razões que
levaram Marx a tal afirmação, mas discordo. 0 que faz mudar as sociedades e as
épocas é precisamente o excesso de problemas que
suscitam em relação às soluções que tornam possíveis. A teoria crítica é a
consciência desse excesso. A sua aspiração utópica não reside em propor
soluções desproporcionadas para os problemas postos, mas antes na capacidade
para formular problemas novos para os quais não existem ou não existem ainda
soluções.
4. Conclusão
Admito que não é difícil ver no pós‑moderno
de oposição aqui proposto mais uma posição moderna do que pós‑moderna. Isto
deve‑se em parte ao facto de a versão dominante do pós‑moderno ser
o pós‑moderno celebratório. Só isso explica que
um intelectual tão sério como Terry Eagleton se deixe tentar por uma crítica tão superficial
quanto descabelada de pós‑moderno (Eagleton,
1996). Porque o pós‑moderno celebratório reduz
a transformação social à repetição acelerada do presente e se recusa a
distinguir entre versões emancipatórias e
progressistas de hibridação e versões regulatórias e conservadoras,
tem sido fácil à teoria crítica moderna reivindicar‑se o monopólio da
ideia de uma «sociedade melhor» e da acção normativa. Pelo contrário, o pós‑moderno
de oposição questiona radicalmente este monopólio. A ideia de uma «sociedade
melhor» é‑lhe central mas, ao contrário da teoria crítica moderna,
concebe o socialismo como uma aspiração de democracia radical, um futuro entre
outros futuros possíveis, que, de resto, nunca será plenamente realizado. Por outro
fado, a normatividade a que aspira é construída sem referência
a universalismos abstractos em que quase sempre se ocultam preconceitos
racistas e eurocêntricos. É uma normatividade
construída a partir do chão das lutas sociais, de modo participativo e
multicultural.
Dada a crise da teoria crítica moderna,
tenho razões para pensar que o antagonismo entre pós‑moderno de oposição
e pós‑moderno celebratório terá gradualmente
consequências políticas e teóricas mais importantes do que o antagonismo entre o
moderno e o pós‑moderno. Infelizmente, o primeiro antagonismo tem sido
ocultado pelo segundo devido a uma intrigante convergência entre o discurso de
modernistas irredutíveis e o discurso de pós‑modernistas hiperdesconstruídos.
Uma atitude pós‑moderna de
oposição tem que assentar numa articulação da crítica da modernidade com a
crítica da teoria crítica da modernidade. 0 objectivo central é, pois, o de
desenvolver teorias, horizontes analíticos e conceptuais que credibilizem esta atitude crítica sobretudo junto daqueles,
presumivelmente muitos, que sentem que as razões da indignação e do
inconformismo não estão apoiadas pela indignação e o inconformismo da razão.
Porque recusa, o vanguardismo, a teoria crítica pós‑moderna
visa transformar‑se num senso comum emancipatório.
Porque é auto‑reflexiva, sabe que não é através da teoria que a teoria se
transforma em senso comum. A teoria é a consciência cartográfica do caminho que
vai sendo percorrido pelas lutas políticas, sociais e culturais que ela
influencia tanto quanto é influenciada por elas.
Referências
bibliográficas
Eagleton, Terry 1996 The lllusions of Postmodemism.
Harding, Sandra 1991 Whose Science?
Whose Knowiedge?: Thinking from
Women's
Lives.
Harding, Sandra 1993 Racial Economy of Scíence:
Towards a Democratic Future.
(org.)
Horkheimer, Max 1972 "TraditionaI and Critical Theory" in M. Horkheimer, Critical
Theory. Selected Essays.