O que os indianos queremde Portugal?

PÚBLICO
cultura 40 DOMINGO, 13 JUNHO 1999
Paulo Varela Gomes Carta aberta a Eduardo Prado Coelho e Francisco Bethencourt sobre a diplomacia cultural portuguesa

Caros Eduardo Prado Coelho e Francisco Bethencourt,

Tenho acompanhado com uma atenção flutuante as várias opiniões sobre a diplomacia cultural portuguesa publicadas em especial no PUBLICO. Decidi-me agora a intervir para vos recordar, e a todos os intervenientes no debate, aquilo que quase todos têm esquecido: além dos países que "representam um valor estratégico" (como os EUA, a França, a Ingl aterra, a Al emanha ) além do s PALO P. de Macau ou de Timor, além do Brasil, há no mundo outras comunidades onde se fala português: as de Goa, Damão e Diu.

Como saberão, dirigi durante dois anos (1997-1998) o centro cultural/delegação da Fundação Oriente na Índia, localizado em Pangim, Goa. Participei na organização de concertos, exposições, conferências, cursos. Mas não é por isso que aqui venho recordar as dezenas de milhares de pessoas que gostariam de manter um contacto mais assíduo e mais variado com a cultura portuguesa em Goa, em Damão, em Diu e em Bombaim (cidade onde há centenas de falantes de português). É por outra razão, uma razão sentimental e, ao mesmo tempo, ética. Peço-vos, e a todos os que se interessam por estes assuntos desde o ministro dos Negócios Estrangeiros aos funcionários do Instituto Camões, que se dêm ao trabalho de adquirir na Fundaçao Oriente o livro de João da Veiga Coutinho "A Kind of Absence" (1998).

Veiga Coutinho é goês de origem e reside nos EUA. O seu livro, escrito num inglês elegante e impecável, é o documento mais forte sobre Portugal que já li em toda a minha vida. O assunto de Veiga Coutinho não é o nosso país. É dele, a India e Goa. Mais especificamente interessa-lhe a elusiva questão da identidade dos goeses como povo e cultura. Apesar disso (por causa disso, afinal), "A Kind of Absence" é, em boa medida, um livro sobre Portugal e não é possível a um português lê-lo sem um nó na garganta. De repente, damo-nos conta de que os indianos que falam português são a única comunidade em todo o planeta que se interessa verdadeiramente por Portugal. Os brasileiros, como se sabe, oscilam entre a curiosidade que se dedica a uma espécie zoológica rara e a ironia mais ou menos complacente. As pessoas de Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé (excluo Cabo Verde porque os cabo-verdianos são como nós, exactamente como nós) esperam coisas de Portugal. Os emigrantes estão-se nas tintas ou têm saudades. Os americanos, os alemães e os outros "desenvolvidos" manifestam por Portugal um interesse académico, quanto muito.

Não assim os goeses, os damanenses, os de Diu, os "norteiros" de Bombaim (goeses emigrados ou descendentes das comunidades católicas do noroeste da Índia). Esta gente tem uma ligação dramática com Portugal, a única ligação dramática que, mau grado a nossa brutalidade, inabilidade ou estupidez, fomos capazes de estabelecer com qualquer povo do mundo. Esta gente chora ou enraivece-se quando fala de Portugal. Alguns odeiam-nos porque odiaram o colonialismo português e não o esqueceram. Muitos—a maior parte?—conseguem distinguir entre os crimes de Salazar e dos seus antecessores e o povo cujo poeta maior viveu em Goa, amou uma goesa, e lá escreveu parte dos Lusíadas.

Ao ler "A Kind of Absence", não pude evitar sentir vergonha por pertencer a um povo que recalca o seu passado e está alarvemente contentinho com o êxito do último shopping à moda, um povo que prefere escovar incomodadamente todas as responsabilidades históricas que herdou. Em contrapartida, nunca mais esquecerei a noite em que teve lugar em Pangim um concerto de Tito Paris e do seu grupo organizado pela Fundação Oriente. Não por causa da música (que foi óptima) ou do anfiteatro a abarrotar. Nem tão-pouco por causa da imensa alegria que tomou conta de todos nós. Náo esqueço aquele espectáculo porque, ao ouvir uma banda cabo verdiana tocar e cantar em crioulo para um público indiano, percebi que aquele é o Portugal de que eu gosto, não 0 do administrador salazarista, do agente da PIDE, da peixeira do Bolhão, do diplomata mendigador de mais um poço-com-fundo estrutural em troca de mais uma vénia à NATO. Ali estava o Portugal preto, branco, mestiço, descomplexado, cosmopolita, activo, pronto para aventuras.

João da Veiga Coutinho não conhece este Portugal e não gosta daquele de que se lembra o Portugal triste da decadência e da opressão. Mas, enquanto preparava o livro, foi ao promontório de Sagres, esteve junto ao túmulo de Camões nos Jerónimos. Foi a esses sítios para saber o que é Goa. Disse-nos, sem querer, o que pode ser Portugal—o mito de Portugal, se quiserem, mas tanto mais forte, mais honrado mais digno, porque mais mito. Por mim, diria que é o Portugal de Camões e de Tito Paris. Náo faz sentido isto? Quem dera que fizesse.

Os indianos lusótonos não são uns falantes de português quaisquer. São os únicos, em todo 0 mundo, que puxam por nós, que querem mais de nós do que aquilo que sabemos ou podemos dar. Querem livros, claro, revistas, programas de televisão ao nível de uma BBC World e não da TV-Bolhão que nos caiu em sorte, centros culturais activos, uma intervencno mais inteligente e cuidada nos campos do património ou do ensino da língua. Não são uma espécie em vias de extinção, como por vezes se diz por cá, meio em lamento impotente, meio como desculpa para não fazer nada. A língua portuguesa e os aspectos mais contemporaneos da nossa cultura podem interessar novas gerações. O sucesso do leitorado português em Goa nos últimos anos é disso uma das provas (mas há mais, muitas mais).

A intensa actividade da Fundação Oriente um pouco por toda a Índia, o trabalho notável, mas com poucos meios, do Instituto Camões em Goa, os programas do centro cultural da embaixada em Deli, 0 interesse da Fundação Gulbenkian, são coisas positivas, as únicas coisas positivas, aliás—mas serão insuficientes sem o empenhamento de um poder menos interessado em "marcar pontos" políticos com os correspondentes erros diplomáticos do que em honrar compromissos culturais, sentimentais e éticos.

As comunidades lusótonas da India podem parecer uma não-prioridade no grande cenário da política cultural externa. Mas as pessoas estão lá, à espera ainda. São os mais importantes monumentos da época distante em que este nosso país pateta teve um sonho mundial. Sáo as pessoas que, quando Tito Paris gritou do palco "amo Cabo Verde e amo Portugal", para si disseram, como eu disse, "amo a India, amo Goa, amo Portugal".

Estas pessoas não querem ser portugueses, até porque nunca 0 foram em direitos, apenas em cultura e sentimento. Querem apenas que Ihes devolvamos 0 amor que sentiram por alguns de nós e a amplitude do mito que, de algum modo, partilhámos com elas.

Recordem isto a outros, por favor. Que ao menos alguns não esquecam. .


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