PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
«Racismo e xenofobia já ameaçam a UE»


O RACISMO e a xenofobia são já hoje «a principal ameaça com que a UE se confronta para se construir e ser capaz de afirmar-se como entidade política autónoma no plano global». Quem o diz é Pedro Bacelar de Vasconcelos, administrador português do Observatório Europeu do Racismo, Xenofobia e Anti-semitismo (a única instituição da UE sediada... na Áustria) e também vice-presidente da Convenção para a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Em entrevista ao EXPRESSO, Bacelar de Vasconcelos afirma que a grave situação referenciada em 1998 «no mínimo, se manteve em 1999, embora de forma assimétrica, nos Quinze»; e que em Portugal, «pelo menos, não se agravou, havendo até uma inversão da atitude das autoridades públicas». Garante ainda que o Observatório «não se conformará com uma observação neutral dos fenómenos racistas e xenófobos» na Europa.

EXPRESSO - O relatório do Observatório relativamente ao racismo e xenofobia em 1998 na UE traça um quadro altamente preocupante. Já há dados que permitam confirmar se houve um agravamento em 1999?

PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS - No mínimo, as tendências mantêm-se, embora de uma forma assimétrica, no conjunto dos Quinze.

Em Portugal, pelo menos, não é possível falar de um agravamento em 1999. Não há, e creio que tem a ver com uma inflexão (sem precedentes) da atitude das autoridades públicas e dos responsáveis políticos relativamente a manifestações dessa natureza.

O caso que me parece mais gritante é o inquérito da Inspecção-Geral da Administração Interna àqueles incidentes em Aldoar, que concluiu pelos indícios de responsabilidade policial na morte de um dos ciganos. Isto vem provocar uma assunção das responsabilidades. Ora, quando de forma absurda, o Comando Distrital da PSP do Porto afirmou que um cigano algemado se teria suicidado no interior da esquadra (com a arma de fogo de um dos agentes), nessa altura não tinha havido quaisquer consequências...

Há já condenação social e a atitude inquiridora do Ministério Público relativamente a este tipo de ocorrências teve algum impacto, associado também a algumas receitas de natureza social que puderam pelo menos para já, travar estes fenómenos nos locais onde se manifestavam mais.

Em Portugal, eu diria que 1999 houve realmente uma inversão na atitude das autoridades públicas em relação à condenação em termos de opinião pública e envolvendo a comunicação social. Para já, isto é objectivo, é incontestável.

Lá fora não é bem assim, se pensarmos no que se passou na Catalunha, no País Basco (em Bilbau), no que está a passar-se na Andaluzia, envolvendo minorias étnicas ou movimentos de discriminação que contemplam diferentes grupos, até com uma relação diferente com a sociedade onde se encontram. Há um agravamento e ele é reflectido também nos resultados eleitorais que têm surgido também um pouco por todo o lado. E este resultado na Áustria, nas eleições de Outubro, é disso bem evidente. Os 27% de Joerg Haider significam alguma coisa, em termos de permeabilidade a estes preconceitos nacionalistas e raciais...

EXP. - De todas essas tendências ou situações, qual é a mais graves? É o que se passa na Áustria?

P.B.V. - O mais grave é se a estas atitudes de condenação destes acontecimentos não se acrescenta, e de uma forma concertada no espaço europeu, políticas que atendam à importância crescente que a questão da imigração tem na Europa.

Há que ter em conta outra coisa na globalidade da UE, é que com os conflitos nos Balcãs as atenções e as pressões vieram mais do lado da pressão dos pedidos de asilo e dos refugiados do que da chamada imigração económica. Creio que esses factores poderão perturbar o diagnóstico da situação em 1999.

Por outro lado, há realmente que garantir uma solidariedade europeia em matéria de política de asilo e de imigração. Foi um sinal positivo a evolução da revisão da Lei da Nacionalidade na Alemanha, mas é preciso haver um compromisso sério entre os Quinze para obstar às situações clamorosas que se vivem na Itália de discriminação, de abandono desumano de milhares de refugiados que atravessam o Adriático e que já vão em mais de uma geração de pessoas acantonada em Florença em Milão, no norte de Itália.

EXP. - Até que ponto é que a revisão das leis de imigração que sucessivamente foi acontecendo em diversos países da UE tem reflexos no aumento do racismo e xenofobia?

P.B.V. - Da maneira mais óbvia. Por um lado, a questão da imigração tem que ser entendida como uma política positiva. A imigração pressupõe sempre um deslocamento substancial de populações e, portanto, defender uma política de imigração justa não é defender uma política de portas abertas. Por todas as razões, e desde logo com aquelas que se prendem na própria origem dos movimentos migratórios: as pessoas saem porque não têm condições nos sítios onde estão.

Por outro lado, a confusão entre imigrantes e outros sectores objecto de exclusão social nas sociedades tem constituído verdadeiros barris de pólvora. A acumulação destes imigrantes em determinadas áreas, por razões económicas ou de ausências de uma política de regulação, vai sobrecarregar as periferias urbanas ou vai proporcionar conflitos graves em zonas menos cosmopolitas, mais fechadas, onde o confronto de culturas «estranhas» gera o caldo de cultura propício à emergência de atitudes de violência. E aqui tenho bons exemplos, de que decerto se recordará, aqui no Norte. Eu, no meu caso... mas também em Francelos e Águeda e até no Alto Minho, em Viana do Castelo, embora se tenha falado menos disso... além de todos os conflitos em toda aquela periferia suburbana do Porto.

EXP. - Em 1997, cerca de um terço dos inquiridos no Eurobarómetro declarava-se «muito» ou «bastante» racista e metade dessas pessoas não se encontrava satisfeita com as políticas de imigração prosseguidas pelos respectivos Governos. Ora, é de presumir que a sua insatisfação não se deve à falta de políticas de protecção dos imigrantes.

P.B.V. - Sem dúvida...

EXP. - Por outro lado, o relatório do Observatório não hesita em afirmar que as classes políticas europeias tendem a fazer deste tema um tabu e não querem ter políticas claras nem uma mensagem inequívoca. Admite que se cria assim um vazio que os partidos extremistas, racistas e xenófobos, vão aproveitar para ocupar?

P.B.V. - É um terceiro nível destes problemas, que permite estes casamentos entre ideologias anacrónicas de raiz ou de inspiração nazis ou neonazis com problemas que não são frontalmente assumidos e atacados pelos responsáveis políticos. Não tenho qualquer dúvida de que a chave do problema está em conseguir ultrapassar o condicionamento mediático, que resumiu a política a um exercício de navegação à vista, de acordo com os índices de popularidade.

EXP. - O vazio que nesta área vai sendo ocupado pelos populistas, racistas e xenófobos (como há 13 anos vem sendo o caso de Joerg Haider) é ou não uma ameaça para a União Europeia?

P.B.V. - Creio que é mesmo a principal ameaça com que a Europa dos Quinze se confronta para se construir e ser capaz de afirmar-se como uma entidade política autónoma no plano global e com capacidade de determinação de políticas concretas no seu interior.

EXP. - E o que é que o Observatório pode fazer?

P.B.V. - O Observatório acaba de afirmar, com a atitude que tomou em apoio da posição dos 14, algo extremamente importante. Não vamos limitar-nos ao registo de factos, à emissão de recomendações aos Estados e às instituições da UE, nem vamos limitar-nos à elaboração de um relatório anual... como alguns gostariam.

É extremamente importante dizer que, na reunião de 3 e 4 de Fevereiro em Viena a posição que assumimos foi tomada com relativa facilidade, sem oposição. Isto num colectivo de gente de partidos conservadores ou sociais-democratas, de países do Norte ou do Sul, gente que tem experiência de conflitos e gente que não tem. Conseguir um consenso tão substancial no momento e no local próprio é um sinal importante de que o Observatório se não conformará com uma observação neutral dos fenómenos xenófobos e racistas na Europa.

O Observatório vai ser um espevitador de consciências e um suporte para uma avaliação crítica da apreciação destes fenómenos no conjunto do espaço europeu. O Observatório poderá ter um papel muito positivo, permitindo comparar o que se passa em Espanha ou na Dinamarca e não se fechar numa mera avaliação técnica da recolha de informação e do seu tratamento por especialistas.

EXP. - Não é uma ironia que o Observatório esteja sediado em Viena neste momento e seja, aliás, a única instituição da EU sediada em Viena?

P.B.V. - É. Quando lá cheguei para a reunião, disse isso mesmo: «Finalmente, percebemos porque o Observatório foi instalado em Viena». E houve, três ou quatro outras pessoas que comentaram: «Pois... nós também já o tínhamos dito». É, de facto, uma ironia, porque não só somos a única instituição da UE sediada na Áustria, como isso aconteceu a pedido deles...

EXP. - Como é que se sentiram durante a reunião? Uma espécie de extraterrestres?

P.B.V. - Não, não, de todo. E há outro aspecto curioso. Quando eu, há quatro anos, e em desespero de causa, apontei o dedo ao racismo e xenofobia, fiquei um bocado isolado. Não deixa de ser gratificante ouvir hoje o nosso primeiro-ministro a apontar o dedo e a chamar os bois pelos nomes... e não o digo com acinte, antes pelo contrário. Não é motivo de contentamento, porque era preferível que esta coligação não se tivesse feito na Áustria. E teria sido também preferível que eu também não tivesse tido a necessidade de dizê-lo quando tive de enfrentar as atitudes de intolerância.

                                                                                                       LUÍS TIBÉRIO
                                                                                      Lisboa, Expresso, 12 Fevereiro 00
 

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