Distinguindo os EVENTOS do
passado dos FACTOS históricos
Fonte:
Teorias da História, ed. Patrick Gardiner, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1995, pp. 302- 319 ( O texto é extraído de Collingwood, The Idea of History, Oxford,
Clarendon Press, 1946)
Distinção Entre História e Ciência Natural
O
historiador estabelece uma distinção entre aquilo a que se pode chamar o
exterior e o interior de um acontecimento. Pelo exterior do evento entendo tudo
aquilo que, pertencendo-lhe, se pode descrever como se tratasse de corpos e dos
seus movimento: a passagem de César, acompanhado de certas pessoas, através de
um rio chamado Rubicon, numa certa data, ou o
derramamento do seu sangue no pavimento do senado, em outra data. Pelo interior
do evento entendo aquilo a que nele só pode ser descrito em termos de
pensamento: o desafio de César à lei da República, ou o conflito da política
constitucional entre ele próprio e os seus assassinos. O historiador nunca se
ocupa de um destes aspectos com a exclusão do outro. Ele investiga, não meros
eventos (e eu entendo por meros eventos aqueles que só têm exterior e não interior),
mas acções, e uma acção é a unidade do exterior e do interior de um
acontecimento. Interessa-se pela travessia do Rubicão só na medida em que ela
está relacionada com as leis da República, e pelo derramamento do sangue de
César só na medida em que ele se relaciona com um conflito constitucional. O
seu trabalho pode começar pela descoberta do exterior de um acontecimento, mas
não poderá nunca ficar por aí; deve lembrar-se sempre de que o acontecimento
foi uma acção e de que a sua tarefa principal consiste em se imaginar dentro
desta acção, em discernir o pensamento do seu agente.
No
que se refere à natureza, não surge esta distinção entre o exterior e o
interior de um evento. As ocorrências da natureza são ocorrências, não são
actos de agentes cujo pensamento o cientista esforça por descobrir. É certo
que, tal como o historiador, o cientista tem de ir além da mera descoberta dos
acontecimentos, mas é diferente a direcção em que se move. Em vez de conceber o
evento como uma acção e de tentar redescobrir o pensamento do seu agente
penetrando, do exterior, no interior do acontecimento, o cientista vai além do
evento, observa as suas relações com outros, submetendo-o assim a uma fórmula
geral ou lei da natureza. Para o cientista a natureza é sempre, e tão-somente,
um «fenómeno», não no sentido de carecer de realidade, mas no sentido de ser um
espectáculo apresentado à sua observação inteligente; ao passo que os
acontecimentos da história não são nunca meros fenómenos, nem meros
espectáculos para serem contemplados, antes são coisas para as quais o
historiador não olha, mas sim através das quais olha, para descobrir o
pensamento que dentro delas existe.
Penetrando
deste modo no interior dos eventos e detectando o pensamento que eles exprimem,
o historiador faz algo que o cientista não precisa, nem pode, fazer. Deste
modo, a tarefa do historiador é mais complexa que a do cientista. Sob outro
aspecto, ela é mais simples: o historiador não precisa, nem pode (sem deixar de
ser historiador) competir com o cientista na busca das causas ou das leis dos
acontecimentos. Para a ciência, o evento descobre-se, percebendo-o, e a busca
ulterior das suas causas é orientada
pela sua referência à classe a que pertence e pela determinação da relação
entre essa e outras classes. Para a história, o objecto a ser descoberto é, não
o mero evento, mas o pensamento nele expresso. Descobrir esse pensamento é já
compreendê-lo. Uma vez que o historiador tenha verificado os factos, não há
qualquer processo ulterior para a investigação das suas causas. Quando ele sabe
o que aconteceu, sabe já também por que aconteceu.
Isto
não quer dizer que palavras como «causa» estejam necessariamente deslocadas em
referência à história; significa apenas que se usam aí com um sentido especial.
Quando o cientista pergunta: «Porque ficou cor-de-rosa este papel de
tornesol?», quer ele dizer: «Em que circunstâncias ficam cor-de-rosa os papéis
de tornesol»? Quando um historiador pergunta: «Porque é que Bruto apunhalou
César?», quer ele dizer: «o que é que Bruto pensou que o levou a apunhalar
César?». Para ele, a causa do acontecimento significa o pensamento no espírito
da pessoa por cuja intervenção o evento ocorreu; e isto não é algo diferente do
evento: é o seu próprio interior.
Os
processos da natureza podem, pois, descrever-se correctamente como sequências
de meros eventos; já não assim os da história. Não são processos de meros
acontecimentos, mas processos de acções, as quais possuem uma face interior que
consiste em processos de pensamento; e o que o historiador procura são estes
processos de pensamento. Toda a história é história de pensamento.
Mas
como discerne o historiador os pensamentos que procura
descobrir? Só existe um meio de o fizer: repensá-los no seu próprio espírito. O historiador da
filosofia, ao ler Platão, procura saber o que é que Platão pensou quando se
exprimiu através de certas palavras. O único meio de o conseguir é pensá-lo
também ele próprio. É isto realmente o que pretendemos dizer quando falamos em
«compreender» as palavras. Do mesmo modo, o historiador das ciências políticas
ou da guerra, a quem é apresentado um relato de certas acções praticadas por
Júlio César, procura compreender estas acções, isto é, procura descobrir que
pensamentos tinha César em mente que o levaram a praticá-las. Isto implica
enfrentar ele próprio a situação em que Júlio César se encontrou, e pensar por
si próprio aquilo que César pensou acerca da situação e das vias possíveis de a
enfrentar. A história do pensamento, e consequentemente toda a história, é a representação
do pensamento passado, no próprio espírito do historiador.
Esta
representação só se realiza, respectivamente nos casos de Platão e César, na
medida em que o historiador faz incidir sobre o problema todas as faculdades do
seu espírito e todo o seu conhecimento de filosofia e política. Não se trata de
uma rendição passiva à magia de outro espírito; trata-se do trabalho de
pensamento activo e, por conseguinte, crítico. O historiador não se limita a
representar pensamento passado; representa-o no contexto do seu próprio
conhecimento e assim, ao representá-lo, critica-o, faz sobre ele um juízo de
valor, corrige os possíveis erros que nele encontre. A crítica do pensamento
cuja história ele revela não é menos importante do que
revelar a sua própria história. É uma condição indispensável ao próprio
conhecimento histórico. Não poderia haver erro mais flagrante relativamente à
historia do pensamento do que supor que o historiador, como tal, verifica
somente «o que fulano pensou», deixando que outrem decida «se foi verdade».
Todo o pensamento é pensamento crítico; por isso, o pensamento que representa
pensamentos passados, representando-os, critica-os.
Torna-se
agora evidente por que é que normalmente os historiadores restringem o domínio
do conhecimento histórico aos problemas humanos. Um processo natural é um
processo de eventos, um processo histórico é um processo de pensamentos.
Considera-se o homem o único objecto do processo histórico porque se considera
que ele é o único animal que pensa, ou que pensa o suficiente, e
suficientemente claro, para converter as suas acções em expressões dos seus
pensamentos. A crença de que o homem é o único animal que de facto pensa é, sem
dúvida, uma superstição; mas é provável que a crença de que o homem pensa mais,
e com maior continuidade e eficácia, do que qualquer outro animal, e de que é o
único animal cuja conduta é, numa medida bastante razoável, determinada pelo
pensamento em vez de por mero impulso ou apetite, esteja suficientemente bem
fundamentada para justificar a norma prática do historiador.
Daí
não se conclui que todas as acções humanas sejam assunto de história e, de
facto, os historiadores concordam em que assim não acontece. Mas quando lhes
perguntam como se há-de distinguir entre as acções humanas históricas e as não-históricas, ficam um tanto ou quanto atrapalhados com a
resposta a dar. Do nosso ponto de vista presente, podemos oferecer uma
resposta: enquanto for determinada por aquilo a que podemos chamar a sua
natureza animal -- pelos impulsos e apetites --, a
conduta do homem é não-histórica; o processo dessas
actividades é um processo natural. Assim, o historiador não se interessa pelo
facto de que os homens comem e dormem e amam, satisfazendo assim os seus
apetites naturais; mas interessa-se pelos costumes sociais que os homens criam
pelo pensamento como uma moldura dentro da qual esses apetites encontram
satisfação sob formas sancionadas pela convenção e pela moralidade.
Consequentemente,
embora a concepção da evolução tenha revolucionado as nossas ideias acerca da
natureza, substituindo a velha concepção do processo natural como uma
transformação dentro dos limites de um rígido sistema de formas específicas
pela nova concepção desse processo como incluindo urna transformação também
nestas formas específicas -- não identificou, de modo algum, a ideia do
processo natural com a do processo histórico; e a moda, muito vulgar ainda
pouco tempo, de usar a palavra «evolução» num contexto histórico, e de falar da
evolução do parlamento e coisas semelhantes, embora natural numa época em que
as ciências da natureza eram consideradas a única forma válida de conhecimento,
e em que outras formas de conhecimento, para justificarem a sua existência, se
viam obrigadas a seguir aquele modelo, foi o resultado de confusas formas de
pensar e urna fonte de novas confusões.
Só
há urna hipótese em que os processos naturais se poderiam considerar, em última
análise, de natureza histórica: a hipótese de que estes processos são, em
realidade, processos de acção determinados por um pensamento que é precisamente
a sua face interior. Isto implicaria que os acontecimentos naturais são
expressões de pensamentos, sejam eles pensamentos de Deus ou de intelectos
finitos, ou angélicos ou demoníacos, ou de espíritos como o nosso que habitassem
os corpos orgânicos e inorgânicos da natureza, tal como os nossos espíritos
habitam os nossos corpos. Pondo de lado meros voos de fantasia metafísica, tal
hipótese só poderia exigir a nossa atenção séria se conduzisse a urna melhor
compreensão do mundo natural. Mas a verdade é que o cientista pode
razoavelmente dizer dela «je n’ai
pas eu besoin de cette hypothèse», e o teólogo
recuará perante qualquer sugestão de que a acção de Deus no mundo natural se
assemelha à acção de um espírito humano finito submetido às condições de vida
histórica. Uma coisa, pelo menos, é certa: que até onde chega o nosso
conhecimento científico e histórico, os processos dos acontecimentos que
constituem o mundo da natureza são de espécie completamente diferente dos
processos de pensamento que constituem o mundo da história...
Compreensão Histórica
Como,
ou em que condições, pode o historiador conhecer o passado? Considerando esta
pergunta, o primeiro ponto a notar pelo historiador é que o passado nunca é um
facto dado que ele possa apreender empiricamente pela
percepção. Ex hipothesi, o
historiador não é testemunha ocular dos factos que pretende conhecer. Nem
sequer imagina que o é; ele sabe perfeitamente que o único conhecimento do
passado que lhe é possível é mediato ou ilativo ou indirecto, nunca empírico. O
segundo ponto consiste em que esta mediação não pode realizar-se por
testemunho. O historiador não chega ao conhecimento do passado pelo simples
facto de acreditar numa testemunha que presenciou os acontecimentos em causa e
deixou registado o seu depoimento. Esse tipo de mediação forneceria, não
conhecimento, mas, quando muito, crença, e, mais ainda, crença mal fundada e
improvável. E o historiador sabe, mais urna vez, que não é esta a sua maneira
de agir, está perfeitamente consciente de que a sua atitude para com as suas
chamadas autoridades não é acreditar nelas, mas criticá-las. Se, portanto, o
historiador não tem dos seus factos qualquer conhecimento directo ou empírico,
nem tem deles qualquer conhecimento transmitido ou testemunhal, que espécie de
conhecimento tem ele? Por outras palavras: Que deve o historiador fazer para os
conhecer?
A
minha recensão histórica da ideia de história teve como resultado o
aparecimento de uma resposta a esta pergunta: a saber,
que o historiador deve representar o passado no seu próprio espírito.
Compete-nos agora olhar mais de perto esta ideia e ver o que ela em si
significa e que consequências implica.
De
um modo geral, compreende-se facilmente o significado desta concepção. Quando
um homem pensa historicamente, tem diante de si certos documentos ou relíquias
do passado. A sua missão consiste em descobrir o que foi esse passado que
deixou tais relíquias atrás de si. Se, por exemplo, as relíquias são certas
palavras escritas, ele tem de descobrir o que é que a pessoa que as escreveu
queria com elas significar. Isto significa descobrir o pensamento expresso por
meio delas. Para descobrir qual foi esse pensamento, deve o historiador
pensá-lo de novo ele próprio.
Suponhamos,
por exemplo, que ele está a ler o Código de Teodósio e tem diante de si
determinado édito de um imperador. O simples facto de ler as palavras e de ser
capaz de as traduzir nada conta para lhes conhecer o significado histórico.
Para que isso aconteça, o historiador terá que enfrentar a situação que o
imperador tentava resolver, e terá que a enfrentar tal qual esse imperador a
enfrentou. Terá então que ver, por si próprio, tal como se fosse realmente sua
a situação do imperador, como se poderá resolver tal situação: terá que
verificar as alternativas possíveis bem como as razões para escolher uma e não
outra; e assim terá que seguir até ao fim o processo que conduziu o imperador à
decisão deste caso particular. Assim, o historiador representa, no seu próprio
espírito, a experiência do imperador, e só na medida em que o faz é que tem
qualquer conhecimento histórico, distinto de um conhecimento meramente
filológico, do significado do édito.
Ou
então suponhamos que o historiador está a ler o passo de um filósofo antigo. Mais
uma vez lhe é necessário conhecer a linguagem no sentido filológico e estar
apto a traduzir; mas, fazendo-o, não compreendeu ainda o passo como um
historiador de filosofia o deve compreender. Para que assim aconteça, terá que
verificar qual era o problema filosófico cuja solução o seu autor aqui apresenta. Terá que pensar de novo por si
próprio o problema, verificar que soluções se lhe poderiam oferecer e descobrir
por que razão este filósofo
escolheu essa solução, em lugar de outra qualquer. Isto significa repensar, por
ele, o pensamento deste autor, e nada que se não aproxime disto fará dele o
historiador da filosofia deste autor...
[Collingwood passa depois a considerar com algum
desenvolvimento dois tipos de objecções que poderiam levantar-se contra a
opinião de que o historiador pode repensar pensamentos passados. Suponhamos que
se sustenta que repensar um desses pensamentos acarreta uma de duas coisas: ou
«representar um acto de pensamento semelhante ao primeiro» ou representar um
«literalmente idêntico ao primeiro». Ambas estas interpretações levantam
dificuldades. A primeira implica que o historiador tratará apenas de cópias de
pensamentos passados e não dos próprios pensamentos passados; a segunda, que o
historiador não pode nunca repensar um pensamento passado, visto que o acto de
pensar representa uma experiência individual, e nenhuma experiência pode ser
«literalmente idêntica» a outra. Collingwood tenta
resolver o problema argumentando que um acto de pensamento não é uma mera
experiência no sentido em que as sensações e os sentimentos o são; embora
«ocorra num tempo determinado, e num determinado contexto de outros actos de
pensamento, emoções, sensações, etc.», apresenta a característica de ser capaz
de «sobreviver a uma alteração de contexto e reviver num contexto diferente».]
Se
eu, neste momento, repensar um pensamento de Platão, será o meu acto de
pensamento idêntico ao de Platão ou diferente dele? Se não for idêntico, o meu
suposto conhecimento de filosofia de Platão é um erro puro. Mas se não for
diferente, o meu conhecimento da filosofia de Platão implica o esquecimento da
que me é própria. O que é necessário para eu conhecer a filosofia de Platão é,
simultaneamente, repensá-la no meu próprio espírito e também pensar outras
coisas à luz das quais a posso julgar. Alguns filósofos tentaram resolver esta
dificuldade recorrendo vagamente ao «princípio da identidade na diferença» e
argumentando que há um desenvolvimento de pensamento desde Platão até mim e que
aquilo que se desenvolve permanece idêntico a si próprio, embora se torne
diferente. Outros replicaram com justeza que o problema consiste em saber em
que é que as duas coisas são exactamente as mesmas e em que é que diferem. A
resposta é que, considerados como experiências imediatas que são, organicamente
unidas ao corpo da experiência de que resultam, o meu pensamento e o de Platão
são diferentes. Mas, na sua mediação, são o mesmo. Isto requer talvez uma
explicação mais completa. Quando leio no Teeteto a
argumentação de Platão contra a opinião de que o conhecimento não passa de
sensação, não sei que doutrinas filosóficas ele ataca; ser-me-ia impossível
expor essas doutrinas e dizer pormenorizadamente quem as defendeu e com que
argumentos o fez. Na sua qualidade de fenómeno imediato, experiência concreta
do próprio Platão, a sua argumentação tornou-se indubitavelmente a partir de
uma discussão qualquer à qual esteve intimamente ligada, embora eu não saiba de
que discussão se trata. No entanto, se eu não me limitar a ler a sua
argumentação mas também a compreender — a seguir no meu próprio espírito rediscutindo-a com e por mim mesmo --, o processo de
argumentação que eu percorro não é meramente semelhante ao de Platão: é
exactamente, tanto quanto o apreendi, o do próprio Platão. A argumentação em
si, partindo destas premissas e conduzindo por este processo a esta conclusão
-- a argumentação tal qual se pode desenvolver tanto no espírito de Platão como
no meu ou no de qualquer outra pessoa -- é aquilo a que chamo pensamento na sua
mediação. Existiu este no espírito de Platão num determinado contexto de
discussão e teoria; no meu espírito, porque não conheço esse contexto, existe num contexto diferente: o das discussões que têm
origem no sensorialismo actual. Porque se trata de um
pensamento e não de um mero sentimento ou sensação, pode existir em ambos estes
contextos sem perder a sua identidade, embora não pudesse de modo algum existir
sem um contexto apropriado. Se se tratasse de uma
argumentação falaciosa, parte do contexto em que ele existe do meu espírito
poderia ser formada por outras actividades do pensamento capazes de a
refutarem; mas mesmo que eu a refutasse, ela continuaria a ser a mesma
argumentação, e continuaria a ser absolutamente o
mesmo o acto de seguir a sua estrutura lógica.
O Assunto da História
Se
perguntarmos: «De que é que se pode ter conhecimento histórico?», a resposta é:
«Daquilo que pode ser representado no espírito do historiador». Em primeiro
lugar, é isto sem dúvida a experiência. Não pode existir história acerca daquilo
que não é experiência, antes é mero objecto da experiência. Não há, portanto,
nem pode haver, história da natureza, quer enquanto percebida quer enquanto
pensada pelo cientista. Não há dúvida de que a natureza contém processos, está
submetida a eles ou mesmo consiste deles; são-lhe essenciais as suas
transformações no tempo, que podem até ser, como muitos supõem, tudo quanto ela
tem ou é; e tais transformações podem ser genuinamente criadoras: não meras
repetições de rígidas fases cíclicas mas o desenvolvimento de novas ordens no
ser natural. Mas nada disto se orienta no sentido de provar que a vida da
natureza é uma vida histórica ou que o conhecimento que dele temos é um
conhecimento histórico. A única condição que tornaria possível uma história da
natureza seria se os fenómenos da natureza fossem acções praticadas por algum
ou alguns seres pensantes e se nós pudéssemos descobrir, ao estudar estas
acções, que pensamentos exprimem elas e de novo pensar, por nós próprios, estes
pensamentos. Eis uma condição que dificilmente alguém afirmará poder
observar-se. Consequentemente, os processos da natureza não são processos
históricos, nem é histórico o conhecimento que temos da natureza, embora de
certo modo esta se possa assemelhar superficialmente à história, e. g., pelo facto de serem ambas cronológicas.
Em
segundo lugar, a própria experiência não é, como tal, o objecto do conhecimento
histórico. Na medida cm que ela não passa de experiência imediata, um mero
fluxo consciente de sensações, sentimentos, etc., o se processo não é um
processo histórico. Esse processo pode, sem dúvida, ser não só directamente
experimentado na sua imediação, mas também conhecido; os seus pormenores
especiais e as suas características gerais podem ser estudadas pelo pensamento;
mas o pensamento que o estuda limita-se a encontrar nele um objecto de estudo,
o qual, para ser estudado, não precisa, nem sequer pode ser representado quando
sobre ele se pensa. Na medida em que pensamos acerca dos seus pormenores
particulares, recordamos experiências nossas ou penetramos em harmonia e
imaginação nas de outrem; em tais casos, porém, nós não representamos as
experiências que recordamos ou que nos dizem alguma coisa; limitamo-nos a
contemplá-las como objectos exteriores ao nosso eu actual,
auxiliados talvez pela presença em nós de outras experiências
semelhantes a elas. Na medida cm que pensamos acerca tias suas características
gerais, estamos já a comprometer-nos com a ciência da psicologia. Em nenhum dos
casos estamos a pensar historicamente.
Em
terceiro lugar, nem o próprio pensamento na sua imediação de acto único de
pensamento com o seu contexto único na vida de um pensador individual é objecto
de conhecimento histórico. Não pode ser representado; se isso fosse possível, o
próprio tempo desapareceria e o historiador seria a pessoa acerca de quem ele
próprio pensa, de novo vivendo em todos os pormenores as mesmas coisas. O
historiador não pode apreender, na sua individualidade, o acto individual de
pensamento, tal qual ele aconteceu realmente. O que o historiador apreende
desse acto individual é apenas algo que ele possa ter em comum com outros actos
de pensamento, algo que tem de facto em comum com o seu próprio acto de
pensamento. Mas este algo não é uma abstracção, no sentido de ser uma característica
comum compartilhada por diferentes indivíduos e considerada fora dos indivíduos
que dela partilham. É o próprio acto de pensamento, na sua sobrevivência e
ressurgimento em diferentes épocas e em diferentes pessoas: ora na própria vida
do historiador, ora na vida da pessoa cuja história ele
narra.
Assim,
a expressão vaga de que a história é o conhecimento do indivíduo exige um campo
a um tempo demasiado amplo e demasiado estreito: demasiado amplo, porque está
fora do seu âmbito a individualidade de objectos percebidos, factos naturais e
experiências imediatas, e, sobretudo, porque está igualmente fora do seu âmbito
a própria individualidade de personagens e eventos históricos -- se é nisso que
consiste a singularidade destes; demasiado estreito, porque exclui a
universalidade, e é exactamente a universalidade de um evento ou de uma figura
que os torna objectos possíveis e autênticos do estudo histórico, se por
universalidade entendermos algo que ultrapassa limites da existência meramente
local e temporal e possui um significado válido para todos os homens em todos
os tempos. Também estas são, sem dúvida, expressões vagas; mas são tentativas
para descrever algo real -- o modo pelo qual o pensamento, transcendendo a sua
própria imediação, sobrevive e revive em outros contextos e para exprimir a
verdade de que os indivíduos e os actos individuais aparecem na história, não
em virtude da sua individualidade como tais, mas porque essa individualidade é
o veículo de um pensamento que, porque era de facto deles, pertence
potencialmente a toda a gente.
Não
pode existir história de nada que não seja pensamento. Assim, uma biografia,
por exemplo, por mais história que contenha é constituída sobre princípios que
não só não são históricos mas também anti-históricos. Os seus limites são
factos biológicos: o nascimento e a morte de um organismo humano. A sua
estrutura é, pois, não uma estrutura de pensamento mas de processo natural.
Através desta estrutura -- a vida corpórea do homem, com a infância, a
maturidade e a velhice, as doenças e todos os acidentes da existência animal
deslizam, cruzando-se, as marés do pensamento -- do que lhe é próprio e do
alheio — indiferentes à sua constituição, ondas deslizando por entre os
destroços do barco naufragado que o mar lançara à praia Ao espectáculo de uma
vida assim corpórea com suas vicissitudes se associam muitas emoções humanas, e
é a biografia, como forma literária, que sustenta estas emoções de um alimento
que poderá ser saudável; isto, porém, não é história. Como também não é
história o relato de experiência imediata, com seu fluxo de sensações e
sentimento»s, fielmente conservados num diário ou
evocados num livro de memórias. No melhor dois casos, pode ser poesia; no pior
uma manifestação importuna de egotismo; história, é
que nunca pode vir a ser.
Mas
existe ainda outra condição sem a qual nada pode vir a ser objecto de
conhecimento histórico. O abismal espaço de tempo existente entre o historiador
e o seu objecto deve ser transposto, como já disse, a partir de ambos os lados.
O objecto deve ser de natureza a ressurgir no espírito do historiador; o
espírito do historiador deve ser susceptível de oferecer habitação a esse
ressurgimento. Não quer isto dizer que o seu espírito deva ser de determinada
espécie, dotado de temperamento histórico; ou que ele tenha de ser treinado em
regras de técnica histórica. Significa apenas que ele deve ser o homem
competente para estudar aquele objecto. O que ele está a estudar é um
pensamento determinado; estudá-lo implica representá-lo em si próprio; e para
que ele possa tomar o lugar que lhe compete na imediação do seu próprio
pensamento, este tem de ser, por assim dizer, previamente preparado para ser o
hospedeiro daquele. Isto não implica, no sentido técnico da expressão, uma
harmonia preestabelecida entre o espírito do historiador e o seu objecto; não
se trata, por exemplo, de confirmar o dizer de Coleridge
de que os homens nascem ou platónicos ou aristotélicos, visto que não foi
previamente considerada a questão sobre se um platónico ou um aristotélico
nasce assim ou se constrói. Um homem que a dada altura da vida verifique a
esterilidade de determinados estudos históricos, por não poder penetrar sozinho
no pensamento daqueles sobre quem vai pensando, descobrirá em outra altura que isso
se lhe tornou possível, talvez em consequência de um esforço pessoal
deliberado. No entanto, em qualquer estádio da sua vida, e na posição em que se
encontra, o historiador sabe que tem, seja qual for a razão, afinidades mais
profundas com certos modos de pensar do que com outros. Isto acontece, em
parte, por certos modos de pensar lhe serem totalmente, ou relativamente,
estranhos; em parte, por lhe serem demasiado familiares, sentindo ele a
necessidade de se afastar deles no interesse do seu próprio bem-estar moral e
mental.
Se,
remando contra a maré do seu próprio espírito -- porque lhe exigem que estude
assuntos assim inadequados ou porque estes se encontram «naquele período» que o
capricho da sua própria consciência transviada lhe ordena que trate em todos os
seus aspectos -- o historiador procura dominar a história de um pensamento em
que não pode penetrar pessoalmente, acontecerá que, em vez de escrever a sua
história, se limitará a repetir os relatos que registam os factos externos da
sua evolução: nomes e datas, e descrições já feitas. É muito possível que sejam
úteis tais repetições; não, porém, por serem história. São ossadas nuas que
poderão um dia vir a ser história, quando alguém for capaz de as revestir da
carne e do sangue de um pensamento que simultaneamente lhes pertença e a esse
alguém. Isto é somente um modo de dizer que o pensamento do historiador deve
irromper da unidade orgânica da sua experiência total e ser uma função de toda
a sua personalidade, com os seus interesses tanto práticos como teóricos. É
quase desnecessário acrescentar que, visto que o historiador é homem do seu
tempo, há todas as probabilidades de que aquilo que o interessar interessará os
seus contemporâneos. É sabido que cada geração se vai interessar por vestígios
e aspectos do passado — habilitando-se assim a estudá-los historicamente — que
para seus pais tinham sido nuas ossadas, sem qualquer significado.
O
conhecimento histórico tem, pois, como verdadeiro objecto o pensamento: não
coisas sobre que se pensou, mas o próprio acto de o pensar. Serviu-nos este
principio, por um lado, para discriminar a história das ciências naturais --
estudo de um mundo objectivo e determinado, distinto do acto de o pensar —, e,
por outro lado da psicologia -- estudo da experiência imediata, da sensação, do
sentimento -- - a qual, embora sendo a actividade de um espírito, não é
actividade de pensar. Mas o significado exacto do princípio exige maior
determinação. O que é que se pretende abranger, muito ou pouco, sob a
designação de «pensamento)»?...
Actos de Pensamento Reflectivo
Para
que, portanto, qualquer particular acto de pensamento se torne objecto da
história, é preciso ele seja um acto não só de pensamento mas também de
pensamento reflectivo, isto é, que ele se realize consciente da sua realização
e de que é essa sua consciência que lhe dá a forma que ele tem. O esforço nesse
sentido terá de ser mais do que um esforço meramente consciente. Não poderá ser
o esforço cego para se conseguir não se sabe o que, como o esforço de recordar
um nome esquecido ou de apreender assunto confuso; terá de ser um esforço
reflectivo, o esforço de algo de que já temos uma concepção antes de o
fazermos. Uma actividade reflectiva é aquela em que nós sabemos o que é que
estamos tentar fazer, de tal modo que, uma vez feito,
sabemos que está feito ao ver que ele se coaduna com o padrão ou critério que
foi a concepção inicial que dele tivemos. Trata-se, pois, de um acto que somos
capazes de realizar porque sabemos antecipadamente como realizá-lo.
Nem
todos os actos são desta espécie. Samuel Butler
tirava dum lado, uma conclusão errada ao dizer que um recém-nascido tem de
saber mamar pois de contrário seria incapaz de o fazer; outros tiraram a errada
conclusão inversa, afirmando que nós não sabemos o que vamos fazer senão depois
de já o termos feito. Butler tentava provar que são
realmente reflectivos os actos irreflectivos,
exagerando deste modo, o lugar da razão na vida em oposição ao materialismo
dominante; os outros sustentam que os actos reflectivos são realmente irreflectivos, porque concebem toda a experiência corno
imediata. É claro que, na sua qualidade de fenómeno imediato, único e
individual, completo em todos os seus pormenores e enquadrado no único contexto
em que lhe é possível existir imediatamente, o nosso acto futuro não pode
nunca, de modo algum, ser delineado com antecedência; por mais cuidadosamente
que o estudemos, há-de ele sempre conter muito de imprevisível e surpreendente;
mas inferir daqui que ele não pode, em absoluto, ser delineado é denunciar a
hipótese que a qualidade de ser imediato é a única que ele possui. Um acto algo
mais do que um mero fenómeno individual único; é algo que um carácter
universal, e quando se trata de um acto reflectivo ou deliberado — um acto que
não só praticamos, mas que tínhamos já antes a intenção de praticar — este
carácter universal é o plano ou ideia acto que concebemos no nosso pensamento
antes de praticar o acto em si, e o critério segundo o qual, depois de o
praticarmos, passando a saber que praticámos aquilo que tínhamos tido em mente.
Há
certos actos que não podem ser praticados senão nestas condições: isto e, não
podem ser praticados senão reflectivamente, por
alguém que saiba aquilo que está a tentar fazer e que por isso seja capaz de
julgar, após o acto praticado, a sua própria acção em função cia sua intenção. Característica destes actos é que eles
sejam praticados, segundo a expressão corrente, «de propósito»: que exista,
como fundamento, um propósito sobre o qual se erga toda a estrutura do acto e
com o qual ele esteja de acordo. Podemos descrever, de modo grosseiro, os actos
reflectivos como aqueles que praticamos de propósito: são estes os únicos actos
que constituem o assunto da história...
Ora
poder-se-ia pensar que toda a acção propositada tem de ser acção prática por
existirem nela dois estádios: primeiro, conceber o propósito — o que é uma
actividade teorética ou um acto de puro pensamento — ,
e depois, levá-lo a cabo — o que é uma actividade prática que sobrevem à teorética. Desta análise se concluiria que agir,
no sentido restrito ou prático da palavra, é a única coisa que pode ser feita
de propósito. Porque, poderia objectar-se, nós não podemos pensar de propósito,
visto que, se concebessemos o nosso próprio acto de
pensamento antes de o efectuarmos, já o teríamos efectuado. Concluir-se-ia
ainda que as actividades teoréticas não podem ser propositadas: tem de ser como
que praticadas no escuro, sem que haja a mínima ideia acerca do que poderá
advir do facto de nos lançarmos nelas.
Isto
é um erro, mas um erro com certo interesse para a teoria da história, visto que
tem realmente influenciado a teoria e a prática da historiografia ao ponto de
levar muita gente a pensar que o único objecto possível da história é a vida
prática dos homens. Está ainda largamente divulgada a ideia, outrora quase
universal, de que a história só se ocupa, e só pode ocupar-se, de temas como a
política, a guerra, a vida económica e, de um modo geral, o mundo da actividade
prática. Vimos já corno o próprio Hegel, que mostrou de modo tão brilhante como
se devia escrever a história da filosofia, subscreveu, nas suas conferências
sobre a filosofia da história, a opinião de que o verdadeiro assunto da
história é a sociedade e o estado, a vida prática, ou -- na sua própria
linguagem técnica — o espírito objectivo, espírito este que se exprime
exteriormente em acções e instituições.
Hoje
já não é necessário afirmar que a arte, a ciência, a religião, a filosofia,
etc., são legitimamente objectos de estudo histórico; é demasiado conhecido o
facto ele eles serem historicamente estudados. Mas é
necessário perguntar por que é que assim acontece, tendo em conta o argumento
em contrário acima citado. Em primeiro lugar, não é verdade que uma pessoa
empenhada em pensamento puramente teorético esteja agindo sem um propósito. O
homem que se entrega a qualquer trabalho científico — tal como investigar o causa da malária tem em mente um propósito perfeitamente
bem definido: descobrir a causa da malária. É certo que ele não sabe qual é essa
causa; mas sabe que, quando a encontrar, saberá que realmente a encontrou,
aplicando à sua descoberta certos testes ou critérios que desde o início teve
na sua presença. O plano da sua descoberta é pois o plano de uma teoria que
há-de satisfazer esses critérios. O mesmo acontece ao historiador ou filósofo.
Jamais navega sem carta; por poucos pormenores que contenha, a sua carta tem
marcados os paralelos da latitude e da longitude, e o seu propósito é descobrir
o que se há-de colocar sobre e entre aquelas linhas. Por outras palavras: toda
a verdadeira investigação parte de um certo problema e o propósito de
investigação é solucionar esse problema; por conseguinte, o plano da descoberta
está já conhecido e formulado quando se diz que a descoberta, seja ela qual
for, terá de satisfazer os termos do problema. É claro que este plano se
altera, tal como no caso da actividade prática, à medida que a actividade de
pensamento avança; alguns planos consideram-se impraticáveis, abandonam-se e
substituem-se por outros; outros levam-se a cabo com êxito e descobre-se que
conduzem a novos problemas.
Em
segundo lugar, a diferença entre conceber e realizar um propósito não ficou
correctamente definida quando se disse que era a diferença entre um acto
teorético e um acto prático. Conceber um propósito ou formar uma intenção é já
uma actividade prática. Não é pensado como se fosse uma antecâmara para a
acção; é a própria acção no seu estado inicial. Se tal não se reconhece
imediatamente, talvez se reconheça ao examinarem-se as suas implicações. O
pensamento, como actividade teorética, não pode ser moral nem imoral; só pode
ser verdadeiro ou falso. O que é moral ou imoral é necessariamente acção. Ora,
se um homem tem a intenção de cometer assassínio ou adultério, decidindo posteriormente
não levar a cabo a sua intenção, a própria intenção já lhe acarreta a
condenação moral. Não se diz a seu respeito: «ele concebeu rigorosamente a
natureza do assassínio ou do adultério, por isso o seu pensamento foi
verdadeiro e digno de admiração»; dir-se-á: «ele não é sem dúvida tão pecador
como seria se tivesse levado a cabo a sua intenção; mas ter sequer feito parte
das suas intenções tal acção, foi já pecado».
O
cientista, o historiador e o filósofo avançam assim, não menos do que o homem
prático, nas suas actividades de acordo com planos, pensando intencionalmente e
assim alcançando resultados que podem ser julgados segundo critérios derivados
dos próprios planos. Consequentemente, pode existir história destas coisas.
Tudo quanto é necessário é que haja comprovação de como foi levado a cabo tal
pensamento, e que o historiador seja capaz de o interpretar, isto é, de
representar no seu próprio espírito o pensamento que é objecto do seu estudo,
tendo em consideração o problema do qual ele partiu, e reconstruindo os degraus
através dos quais se foi tentando a sua solução. Na prática, a dificuldade mais
frequente do historiador é identificar o problema, visto que, se o pensador é
de um modo geral cuidadoso ao expor as fases do seu próprio pensamento, por
outro lado, fala normalmente para os contemporâneos que já conhecem o problema,
e pode muito bem acontecer que nem sequer o chegue a mencionar. E sem saber
qual o problema de que se ocupava, o historiador não pode avaliar o êxito do
seu trabalho. É o esforço do historiador por descobrir este problema que dá
importância ao estudo das «influências», o qual é tão fútil quando se concebem
as influências como o transvasar de pensamentos já existentes de um espírito
para o outro. Uma investigação inteligente acerca da influência de Sócrates
sobre Platão, ou de Descartes sobre Newton, procura revelar não os pontos em
comum, mas de que modo as conclusões obtidas por um pensador levantam problemas
ao pensador seguinte.
Notas bio-bibliográficas
R.G. COLLINGWOOD (1889-1943)
«A
tarefa principal da filosofia do século xx é
ocupar-se da história do século xx». Este comentário
tirado da Autobiography
de Collingwood exprime claramente a ideia dominante
que orientou a maior parte do seu pensamento e da sua obra. Robin
George Collingwood passou
quase toda a vida em Oxford, tendo sido Fellow do Pembroke College durante vários anos e, a partir de 1935, Wynflete Profèssor de Filosofia
Metafísica. Não esteve, contudo, de acordo com o clima filosófico dominante,
corno bem claramente manifestou em vários dos seus escritos. As suas simpatias
iam antes para a anterior escola «idealista», representada por Green e Bradley, descobrindo Collingwood que pouco tinha em comum com homens como Cook Wilson e Prichard.
A sua opinião era que a pretensão deles de que o conhecimento pode ser
representado como constituindo essencialmente urna relação entre o espírito e
as coisas que lhe são exteriores era um erro. Mais ainda, enquanto
aparentemente dispostos a tratar a pesquisa científica como um campo frutuoso
para a investigação filosófica, parecia a Collingwood
que eles descuravam as exigências da história — o que era outro erro. É que Collingwood acreditava que esta negligência conduzia, em
primeiro lugar, a concepções erradas sobre a natureza das questões que os
filósofos discutiram no passado: o problema do carácter e da função das teorias
metafísicas, por exemplo, não pode abstrair-se compreensivelmente do contexto
histórico em que se originaram tais teorias. Além disso, os estudos históricos
tinham avançado em passadas tão largas desde os meados do século xix que não poderia continuar a ignorar-se a necessidade de
urna análise filosófica dos princípios e conceitos por eles usados.
O
nome de Collingwood aparece muitas vezes associado ao
de Croce, e é, sem dúvida, verdade que muitas das
ideias de Croce sobre história aparecem nas obras de Collingwood, expressas de forma menos mística e mais
compreensível. Mas existem semelhanças de natureza mais lata. Tal como Croce, Collingwood interessou-se
por assuntos que se mantiveram fora da principal linha da investigação
filosófica durante o século xx — em The Principles of Art, por exemplo, tentou
enfrentar os problemas suscitados pela experiência e juízo estéticos.
Assemelhou-se também a Croce porque os seus
interesses não se limitavam a assuntos teóricos: Collingwood
foi um historiador e um arqueólogo activo — o que explica a sua consciência
nítida das feições características do método e da explicação históricos. É de
ambos que trata em The Idea of History, obra publicada
postumamente em 1946.
Constitui
a parte central do livro a reivindicação da história como disciplina autónoma,
com métodos e categorias próprias, sendo características singulares do
historiador a compreensão e o conhecimento da sua própria matéria. Assim, Collingwood rejeita na sua totalidade todas as crenças que
foram, em sua opinião, legadas pelo positivismo do século xix
-- a ideia de que o papel do historiador se podia comunicar ao do cientista da
natureza e a suposição de que os acontecimentos históricos podem ser
legitimamente agrupados mediante leis universais, o que implicava (no entender
de Collingwood) que as pessoas e as acções históricas
eram susceptíveis de um acesso «a partir do exterior», como os fenómenos da natureza.
Por este motivo, os sistemas de Spengler e Toynbee (ver os ensaios relacionados com os dois
historiadores nesta página) eram,
a seus olhos, tão inaceitáveis como os de Comte e
Marx, por mais diferenças de pormenor que entre eles existissem; todos esses
projectos estavam infestados de «naturalismo», do errado preconceito de que o
único conhecimento autêntico é o conhecimento científico, e que as únicas
formas autênticas de explicação são as que apresentam ocorrências particulares
como exemplos de leis.
Collingwood desenhou a sua própria imagem da actividade do
historiador. Substituiu a noção «positivista» de história por outra que
considera o pensamento o conceito fundamental da investigação histórica.
Para apreender a verdadeira natureza dos acontecimentos históricos particulares
é necessário penetrar no interior dos eventos e discernir os pensamentos dos
agentes históricos em causa. O historiador tem de repensar, em seu espírito,
estes pensamentos, o que acarreta urna reconstrução pessoal da situação em que
os agentes se encontravam e o modo como a encararam. Para uma tal concepção, as
ciências da experimentação e da observação não têm qualquer espécie de
utilidade, sucedendo que, segundo Collingwood, as
perguntas do género «Porque ocorreu X ?» têm, quando formuladas no contexto das ciências
naturais, uma força completamente diferente da que têm quando formuladas por um
historiador. É pois, segundo Collingwood, impossível
assimilar a história a ramos de investigação cujo objecto e finalidades são, de
uma maneira geral, totalmente diferentes: nas suas próprias palavras, é tempo
de ela ser libertada do «estado de tutela das ciências naturais».
As
ideias de Collingwood têm sido objecto, nos últimos
anos, de certo número de controvérsias filosóficas. A crítica dirige-se,
sobretudo, contra a sua teoria do conhecimento histórico, que sugere que o
historiador tem qualquer espécie de acesso directo ou «intuitivo» a actividade
mental do povo cujas acções procura compreender e explicar. Tem-se chamado a
atenção para o facto de que, embora o historiador possa servir-se da imaginação
para se colocar no lugar da figura histórica cujas acções tenta compreender,
podendo talvez assim construir uma hipótese favorável sobre as razões dessas
acções, a hipótese a que ele chegar, seja ela qual for, terá de ser confirmada
por provas e inferências aceitáveis. Sem tal comprovação, ficará por justificar
a pretensão de que a hipótese representa um «renascimento» de um fragmento de
pensamento passado. Quando muito, a reconstrução imaginativa representa um
passo a caminho da descoberta, nada mais. Por outro lado, os defensores de Collingwood, embora não rebatendo este ponto, argumentam
que ele não invalida o que Collingwood pretendia
afirmar. Assim acontece porque, nos passos onde discute o problema de repensar
pensamentos passados, ele não tentava descrever como se chega (ou devia chegar)
ás conclusões históricas, e como se estabelecem, antes
tentava elucidar o que os conceitos de conhecimento histórico e de compreensão
implicavam e presupunham logicamente: sugerem eles
que Collingwood se empenhava acima de tudo em
salientar as condições a que tem de obedecer-se para que seja possível o
conhecimento histórico, e que, se, como ele supunha, a história é
essencialmente o conhecimento do pensamento passado, exige uma investigação
acerca do que é implícito na noção de conhecer os pensamentos de qualquer outra
pessoa. Afirmam eles que é no contexto de uma tal investigação conceptual que
devem entender-se as suas referências aí repensar e ao representar, e não como
parte de uma tese metodológica segundo a qual se conferem ao historiador
estranhas faculdades cognoscitivas.