Fonte: Dominique Grisoni e
Robert Maggiori (org.), Ler
Gramsci, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1973, pp. 173-183.
Depois de Marx, sabemos desmontar os mecanismos
que explicam como é que uma classe explora outra. Gramsci não repete esta
temática: o que interessa ao marxista-leninista italiano é saber porque
é que as classes dominadas («os subalternos», que têm, virtualmente, nas mãos
os instrumentos da ciência marxista que lhes permitiriam quebrar a sua
sujeição, continuam a sofrer — a aceitar — a sua exploração. Daí a importância concedida por Gramsci
a este complexo simultaneamente inextrincável e diáfano que serve de máscara ou
soporífero e se chama ideologia; daí a importância concedida por Gramsci aos
trabalhadores da ideologia, aos intelectuais.
O que sublinha ainda mais a coerência de
Gramsci é que tal projecto já estava presente logo a seguir à sua prisão.
Assim, em Março de 1927, podia ele escrever à cunhada, Tatiana Schucht:
Seria
necessário fazer qualquer coisa fur ewig ... Tenho, até agora, pensado
em quatro assuntos: 1) uma investigação.., sobre os intelectuais italianos, as
suas origens, os respectivos agrupamentos, conforme as correntes culturais, as
diferentes maneiras de pensar... “
Conhece-se
o modo como Gramsci conduzirá o seu inquérito sobre os intelectuais: estes são
«responsáveis» pela difusão da. ideologia burguesa e a sua generalizada
aceitação, sob a forma de senso comum, pelas classes populares dominadas. A
reflexão gramsciana articula-se, finalmente, à volta desta questão fundamental:
como é que a classe dominante conseguiu obter o consentimento das
classes que oprime? Pergunta cuja resposta permitiria dar uma solução ao
problema da impugnação desse consentimento, isto é, da «irrupção simultânea» na
vida política das amplas massas operárias e camponesas, levando à «subversão da
estrutura social existente», o que Grarnsci traduzirá, nos Cadernos, nestes
termos:
Quando
é que se pode afirmar que existem as condições para que uma vontade colectiva
nacional-popular possa nascer e desenvolver-se?
Responder a esta pergunta é, primeiro, tentar ver porque é
que uma tal vontade colectiva não pôde nascer numa época histórica dada, ou,
por outras palavras, tentar isolar aquilo que a abafou. É neste sentido que
deve ser compreendida a análise historicista das diferentes etapas que
permitiram à classe dominante-dirigente impor e legitimar, fazer, portanto,
admitir, o seu domínio, ou, por outras palavras, permitiram que a filosofia da
classe dominante se tornasse, em parte, «senso comum».
A
elaboração teórica gramsciana visa, pois, efectuar urna «desmontagem» da
ideologia dominante — daí a crítica incessante à filosofia de Croce —, pôr em causa os seus
esquemas constitutivos e tornar, assim, eficaz a acção revolucionária, que
deverá levar à sua substituiçao: é evidente que esta elaboração é contemporânea
do trabalho político-teórico de constituição e difusão de uma «concepção do
mundo» propriamente proletária (marxista) que se substituirá à filosofia do
bloco hegemónico, à sua «ideologia», na consciência das massas exploradas: é
neste enquadramento que se inscreve a concepção gramsciana do Partido como
«intelectual colectivo».
Esse trabalho constitutivo de urna «cultura» proletária
será, essencialmente, crítico, desenvolvendo-se a partir desse «espírito popular
criador» que Gramsci colocava como denominador comum a todas as suas
investigações e que constitui o «núcleo» ideológico que a cultura hegemónica
não consegue absorver e anular. É no quadro do desenvolvimento crítico desse
«espírito criador» do povo que se poderá realizar a reforma intelectual e moral
necessária à constituição da hegemonia do proletariado. Ora, um tal trabalho só
pode começar por uma análise dos movimentos culturais que, no passado,
impediram que se libertasse e realizasse o espírito criador do povo.
O
ESTADO COMO SOCIEDADE POL1TICA E SOCIEDADE CIVIL
Já vimos que
o ensaio sobre a questão meridional, como obra de transição, nos introduzia,
directamente, na. temática dos Cadernos do cárcere: condição para
a revolução, a aliança do proletariado urbano e do campesinato significava que
o primeiro devia quebrar a integração do segundo no bloco histórico
industrial-agrário. Esta integração, ou, melhor, esta sujeição dos camponeses
ao bloco agrário meridional, e, portanto, indirectamente, ao bloco industrial
do Norte, funciona segundo um duplo registo: é imposto pelo aparelho coercivo
do Estado e é mantido pela adesão das classes dominadas — o campesinato mas também
o proletariado — à «Weltanschauung» da classe dirigente, adesão essa que
permite, à última, o exercício da «direcção intelectual e moral.
A manutenção e harmonização daquelas duas
funções — uma
função de domínio e uma função de hegemonia - caracteriza, segundo Gramsci, o aparelho do Estado.
O Estado é constituído pela união da
sociedade política que preenche a função de domínio — com a sociedade civil que preenche a função de
hegemonia. No Estado democrático liberal, sublinha Gramsci, as rédeas da
sociedade política, detentora dos meios legislativos e de repressão, são
mantidas, quase exclusivamente, pelos organismos do Estado propriamente ditos,
enquanto a sociedade civil, que abrange o complexo das superstruturas
ideológicas, é entregue, na maior parte do tempo, nas mãos de organismos do
sector privado.
Gramsci
subscreve, inteiramente, a definição marxista-leninista do Estado como
«expressão prática» do domínio de uma classe sobre uma ou várias outras, como
«violência organizada» que se manifestou num determinado grau de evolução da
sociedade, quando esta, minada pelo antagonismo irrevogável das classes
opostas, não teria podido subsistir sem um «poder» funcionando, pretensamente,
acima das classes, em resumo, do Estado como instrumento da ditadura de um
grupo social. Gramsci, no entanto, estabelece esta nova distinção entre
sociedade política e sociedade civil não só para fornecer um método que permite
demonstrar a dupla articulação da superstrutura — que
traduz a ordenação de uma determinada estrutura económico-social, mas também
para pôr a descoberto a «estratégia» dessa «violência organizada», dessa
organização não-violenta da violência, que passa da sociedade política à
sociedade civil, agindo, simultânea e alternadamente, sobre o registo da
coerção e o consenso, a função de domínio e a de hegemonia.
O
Estado não é a «expressão prática» de um domínio concebido, exclusivamente,
como imposição policial dos interesses dum grupo social. Rousseau já dizia, num
sentido aproximado, que «o mais forte nunca é suficientemente forte para ser
sempre o senhor, se não transformar a sua força em direito e a obediência em
dever». E, com efeito, esta primeira função jurídico-militar do Estado
necessita de ser corroborada por uma acção educativo-persuasiva, uma acção de
«conformação» de todo o corpo social, acção essa capaz de fazer surgir os
interesses, as concepções, os objectivos, os valores do grupo social que detem
o instrumento estatal corno correspondendo aos interesses, às concepções, aos
objectivos, aos valores do conjunto das outras classes. Quer isto dizer
que, para Gramsci, o Estado não é apenas o órgão de coerção penal, jurídico ou
policial (sociedade política) mas compreende também, como base «ética», a
sociedade civil, este amplo complexo de instituições «educativas» (escolas,
editoras, bibliotecas, casas de cultura, «mass media», publicidade, etc....)
com vista a criar, difundir, universalizar a ideologia própria da classe
dominante, detentora do aparelho do Estado, a alargar e a inculcar ao conjunto
do corpo social a moral, os gostos, o way of life, a religião, a
filosofia da classe dominante.
Assim
que este trabalho de uniformização ideológica consegue atingir a maioria dos
membros do corpo social, estes aderem «espontaneamente» à concepção difundida
por toda a área social, às «ideias dominantes da época», que, como afirmava
Marx, são as da classe dominante Ao obter, deste modo, o consenso, a classe
dominante, que já detinha o poder coercivo, torna-se dirigente, apodera-se da
«direcção intelectual e moral» do país e estabelece, assim, a sua «hegemonia».
Tem, então, verdadeiramente o «poder de Estado», um Estado concebido, portanto,
como Produto da compenetração dos órgãos da sociedade civil e política, isto é,
para retomar a fórmula muito expressiva de Gramsci, um Estado concebido como a «hegemonia
couraçada de coerção».
OS FUNCIONÁRIOS DAS SUPER-ESTRUTURAS
A análise
gramsciana do Estado leva a afirmar que a direcção de uma classe se encontrará
tanto mais reforçada quanto as duas instâncias que regulam este
domínio-direcção funcionarem de maneira homogénea e concertada. Ora esta
coordenação, dado que o papel da sociedade política é constante em todo o
sistema estatal, depende, em grande parte, da sociedade civil e dos parâmetros
que a mesma comporta.
Assim,
a estabilidade ou a crise de um determinado bloco histórico dependerão, em
larga medida, da eficiência ou da deficiência dos orgãos da sociedade civil. E
éjustamente quando estes deixam de «funcionar» que se produz a desagregação do
bloco histórico, que se desfaz o vínculo orgânico entre a estrutura e a
superstrutura, no sentido em que as orientações dadas aos fenómenos sociais e
económicos deixam de estar justificadas ideologicamente, no sentido, portanto,
em que a classe dirigente e as classes a ela aliadas no interior do bloco
histórico, tendo perdido o consenso, se encontram em estado de «crise
orgânica». Daí, a importância dada por Gramsci aos intelectuais, visto incumbir
a estes a tarefa de manter unidos os componentes do bloco histórico, de impedir
qualquer «desfasamento» entre a estrutura e as superestruturas, superstruturas
de que são os funcionários.
* * *
No
seu ensaio inacabado sobre o problema do Mezzogiorno, Gramsci já tinha
sublinhado o papel essencial desempenhado pelos intelectuais na constituição e
solidificação do bloco industrial-agrário. Nos Cadernos do cárcere, depois
de ter afastado toda e qualquer definição baseada na oposição
«horno-faber»/«homo-sapiens», Gramsci vai dedicar-se a explicitar a função
eminentemente específica dos intelectuais no seio da sociedade.
Parece
que não basta afirmar que os intelectuais, os «ideólogos», mascaram
cinicamente, por meio de falaciosas e mistificantes elaborações teóricas, a
opressão que as classes dirigentes fazem pesar sobre as outras classes sociais,
ou que são os «cães de guarda» do regime vigente. Toda a afirmação deste género
— ainda que verdadeira — poderia evitar que se procedesse a uma análise crítica do
verdadeiro papel e da verdadeira posição ocupada pelos intelectuais no seio do
complexo social. Formarão os intelectuais um grupo social autónomo e
independente? Possuirá cada grupo social urna determinada camada de
intelectuais? Qual a sua função? Para Gramsci a questão é clara:
«Cada grupo social, ao nascer no terreno de origem de uma
formação essencial no mundo da produção económica, cria, ao mesmo tempo que
ele, organicamente, uma ou várias camadas de intelectuais que lhe dão
homogeneidade e a consciência da sua própria função, não só no domínio
económico mas também no político e social»
Assim, por exemplo, o empresário capitalista,
continua Gramsci, cria com ele os seus «intelectuais orgânicos», isto é, o
técnico industrial, e também o especialista em economia política, o organizador
de uma nova cultura, de um novo direito, etc....
O
intelectual orgânico da burguesia não se encontra, ao contrário do empresário
capitalista, em ligação imediata com a infra-estrutura: funciona ao nível da
superstrutura, elaborando, aqui, e difundindo, depois, por toda a área social,
uma concepção do mundo que coordena, confirma e legitima a organização
infraestrutural. Esse «funcionário das superestruturas», escreve Gramsci, «é o
intermediário (o «amanuense») através do qual a classe que organicamente o
criou, exerce a sua hegemonia e o seu domínio político, dado que o intelectual
não só trabalha no sentido de fazer com que o grupo social de que proveio seja
uma verdadeira classe consciente da sua função histórica mas também
suscita o assentimento concedido pelas grandes massas às orientações dadas,
pela classe hegemónica, à vida socioeconómica, organizando, ainda, a coerção
estatal, ao assegurar «jurídica» e «legalmente» a disciplina social.
Por
isso, uma das tarefas fundamentais do intelectual orgânico, que deve tornar
homogénea e autónoma a concepção do mundo da classe a que se encontra
organicamente ligado, consistirá em subtrair os membros dos grupos sociais não
dominantes a todas as outras «concepções do mundo» dantes existentes e que eram
as das classes outrora dominantes, isto é, consiste, praticamente, em assimilar
os intelectuais das antigas classes dominantes, intelectuais que Gramsci
classifica como «tradicionais», dado que a classe a que estavam organicamente
ligados deixou de exercer a hegemonia. Esses intelectuais tradicionais, que os
intelectuais orgânicos da nova classe hegemónica devem assimilar, constituem
uma camada social que parece escapar às modificações do modo de produção:
«Todo o grupo social ‘essencial’, emergindo
à superfície da história depois da anterior estrutura histórica, encontrou,
como expressão do desenvolvimento da referida estrutura, pelo menos na história
desenrolada até aos nossos dias, categorias de intelectuais que se apresentam e
que surgem mesmo corno os representantes de urna continuidade histórica, que as
mais complexas e radicais mudanças das formas sociais e políticas não tinham
interrompido»
Esses «intelectuais tradicionais» aparentam
não ser os «amanuenses» seja de que classe for: apresentam-se e são
reconhecidos como autónomos e independentes, como representantes eméritos da
continuidade histórica. Neste sentido, vêem-se rodeados de uma aura de
prestígio e podem exercer influência, uma certa atracção sobre os membros dos
diversos grupos sociais. A classe dirigente, para estender a sua hegemonia
sobre essas camadas sociais, deverá, portanto, por intermédio dos seus
intelectuais orgânicos, conquistar para si os «tradicionais», e beneficiar,
assim, do seu poder de atracção. Instalada a ditadura do proletariado, a classe
operária deverá, assim, por intermédio do seu «intelectual orgânico colectivo»,
o Partido, trabalhar ideologicamente no sentido de desarmar ou conquistar a
adesão dos intelectuais (orgânicos) da burguesia.