Lisboa:
JL, 22 de Março de 2000
“Não se deve imaginar
que o historiador passeia através das riquezas do passado como um visitante ocioso
diante das vitrinas de um museu, parando aqui ou ali, conforme lhe despertam a
curiosidade ou o interesse – ligando-se dessa maneira a um herói , a uma época,
a um problema, a um encontro, a uma aventura, a uma amizade” – a afirmação é de
Henri-Irénée Marrou, e merece a nossa reflexão. História é conhecimento, o que
exige, a um tempo, o rigor e a compreensão da complexidade dos acontecimentos.
E o historiador não é um “indivíduo abstracto”, mas um “ser comprometido”,
enraizado no “meio humano a que pertence – meio social, político, nacional,
cultural – que fez dele o que ele é e ao qual tudo o que ele raz regressa e
aproveita” (Do Conhecimento Histórico, trad. Ruy Belo, Aster, s.d., pp.
255-256). No domínio da História, não se trata, pois, de recriar ou de reanimar
o passado, à nossa imagem, mas de o perceber, nas suas diferentes implicações,
indo ao encontro do tempo longo, dos corsi e ricorsi de que
falava Vico, a partir dos factos concretos. A História é, assim, uma relação
entre o passado e o presente a que esse passado não é indiferente. Estamos,
deste modo, perante uma relação com o passado tal como nós o podemos conhecer,
com recurso ao rigor científico necessário e adequado.
Como participa, porém, a
obra histórica da “eternidade da obra de arte”? Ao invocarmos a importância do
“conhecimento histórico” e da educação da História, temos de ir muito além da
atitude do “visitante ocioso” ou do mero cultos de mitos – que se limita a
partir de um preconceito nacional, étnico ou de grupo, para pôr a análise
histórica ao serviço desse mesmo preconceito. Daí a importância de olhar a
História como uma oportunidade para responder aos desafios da procura da
identidade – não vista como uma simplificação, mas como um encontro de factores
múltiplos e, tantas vezes, contraditórios. Por isso mesmo, José Mattoso
disse-nos sobre a “identidade portuguesa” que ela está longe da coerência, do
“carácter natural” e da uniformidade que muitos pretenderam. Afinal, “as
tentativas de fazer coincidir os Estados com as áreas culturais resultaram
normalmente de ideologias totalitárias...” (A Identidade Nacional, Gradiva,
1998, p.8). A História deve, pois, recusar a dimensão mítica e ideológica,
privilegiando as atitudes científica e artística, através do seu sentido
testemunhal ou do modo como procura apreender a realidade a que se reporta. O
“conhecimento histórico” alcança-se através da sensibilidade do historiador e
da sua capacidade criadora, com fidelidade ao sentido crítico e ao espírito
científico. Será que Tucídides foi fiel aos acontecimentos da guerra do
Peloponeso? O importante é contarmos com a sua leitura, uma vez que só dela dispomos, praticamente, como
fonte primária... E Michelet, sobre a Revolução francesa, ilustra magnificamente
o que aqui dizemos. Afinal, o fundamental para o nosso conhecimento histórico é
que tenhamos a perspectiva de alguém, pertencente a uma geração seguinte à de
1789, para percebermos qual o sentido e o alcance da herança de um
acontecimento que alterou radicalmente o curso de outros acontecimentos. “A
verdade da história é uma verdade em partido duplo, feita daquilo que apreende
no seu objecto e do que o esforço do historiador aí introduz de si mesmo”
(Marrou, p. 263). E aqui a “arte” representa a força criativa do testemunho,
que vai do conhecimento à procura da compreensão. Não há, pois, juízos
definitivos, mas um diálogo constante entre o longo prazo e o curto prazo. E
assim, o historiador torna-se em simultâneo, protagonista do seu tempo e
artífice do conhecimento do passado, no desempenho de uma tarefa
permanentemente aberta.
Estamos, pois, na
encruzilhada fundamental da educação de hoje – onde deve encontrar-se o
conhecimento e a compreensão. Num texto importante elaborado para a UNESCO por
Edgar Morin como contributo para o debate internacional sobre a educação para
um futuro viável são suscitados sete temas que têm tudo a ver com a necessidade
de colocar o conhecimento histórico em relação com a complexidade, com a
inovação científica e técnica e com o valor do pluralismo. Deste modo, a
aprendizagem da cidadania, no sentido de Dewey ou de António Sérgio, tem de se
ligar à participação concreta, à democracia da “república escolar”. E os
“saberes necessários” ligam-se à permanente busca de um sentido de cidadania,
assente numa cultura de autonomia e de responsabilidade. São sete estes
saberes, segundo a formulação de Morin: (a) a prevenção do conhecimento contra
o erro e a ilusão; (b) o ensino de métodos que permitam ver o contexto e o
conjunto, ao invés do conhecimento fragmentado; (c) o reconhecimento do elo
indissolúvel entre a unidade e a diversidade da condição humana; (d) a
aprendizagem da identidade planetária, considerando a humanidade como uma
comunidade de destino; (e) a exigência de afrontar o inesperado e o incerto,
como marcas do nosso tempo, devendo preparar-se os cidadãos para responderem
aos desafios da incerteza; (f) a educação para a compreensão mútua entre
pessoas, próximas e estrangeiras, de pertenças e culturas diferentes, como
factor de paz, estudando as raízes, as modalidades e os efeitos da
incompreensão, do racismo e da xenofobia; e (g) o desenvolvimento de uma ética
do género humano, de acordo com um conceito de cidadania inclusiva,
respeitadora da dimensão individual, social e de humanidade de todos.
Dir-se-á que estas
preocupações têm existido ao longo do tempo, apesar dos sinais contraditórios
na sua afirmação ou na sua recusa. Sabemos, contudo, que a mitologia e as
simplificações ideológicas trouxeram nos dois últimos séculos uma certa
manipulação do “conhecimento histórico” e da sua dimensão pedagógica. E assim
se cultivou uma História de virtuosos e vilões, de fronteiras que separam
irremediavelmente e de projectos protegidos... E o certo é que, nos dias de
hoje, quando nos interrogamos sobre a ideia de progresso, somos invadidos por
sentimentos contraditórios, dos que enaltecem os passos positivos no sentido da
liberdade e da igualdade de todos os seres humanos e do assumir de uma visão
universalista dos direitos e deveres fundamentais e de uma consciência ecológica planetária, de um lado, e dos que
preferem realçar a emergência das nuvens da incerteza, da incompreensão e da
indiferença, de outro.
O que nos trouxe o
século XX? Indiscutivelmente, o progresso e o bem estar, o combate à ignorância
e à doença, o alargamento das experiências democráticas e de auto-determinação,
mas também as manifestações da barbárie e do totalitarismo e as guerras
mortíferas de que há memória na história da humanidade. E se dúvidas houvesse,
eis que continuamos a assistir à coexistência, tantas vezes trágica, de sinais
contraditórios, da mundialização da cidadania que se deseja conquistar e da
proliferação das situações de intolerância e de violência, de cegueira e de
indiferença.
E a verdade é que muitas
leituras da História foram tributárias desses conceitos redutores, assentes na
hipertrofia de alguns elos de pertença, à frente dos quais se encontra o
relativo ao Estado-nação, herdeiro das revoluções liberais e cristalizado no proteccionismo da segunda revolução
industrial. O Estado aparece como a expressão de uma “vontade”, com um papel
político fundamental, enquanto factor de uniformidade e de criação da coerência
nacional. Ora, o conhecimento histórico e a vivência de uma cidadania livre e
responsável não podem corresponder a esta missão. Por isso, quando se caminha
para as democracias supranacionais, para a universalização dos direitos e para
a mundialização da cidadania, torna-se necessário compreender a importância da
pluralidade de pertenças, da complexidade, de diálogo de culturas e de saberes,
de um novo conceito de fronteira, capaz de significar não apenas o que
diferencia, mas também o que aproxima... Não se trata, porém, de cultivar um
conhecimento histórico asséptico, privado das diferenças e dos conflitos, ou
uma História que ninguém verdadeiramente assume e onde ninguém se encontra, mas
de entender um passado que não nos é indiferente – de uma Europa, em diálogo
com o mundo, com raízes comuns e com o peso permanente e dilacerante da
tragédia, com Antígona como símbolo e com Hamlet como sombra... Daí a
importância de compreender como acto intelectual objectivo e como relação
humana intersubjectiva.
Longe das
simplificações, apetrechadas com os “sete saberes necessários” de Morin,
compreendendo que o “progresso” não se opõe a fatalidade e a atraso e que a
centralidade e a periferia tendem a evoluir por força das redes, do saber de
experiência feito e da inovação científica e técnica, eis que o “conhecimento
histórico” não pode tornar-se preconceito ou constrangimento. Trata-se de
contribuir para superar o saber esparso e compartimentado que conduz à atrofia
mental e impede a percepção do global e do contexto das coisas e dos factos. É
o mesmo espírito que leva a cultivar a língua como factor de compreensão e
comunicação e a medida ou o número não como abstracções mas como sinais de
simplicidade e exactidão. Educar para o conhecimento e a compreensão deve,
assim, pôr a liberdade e a responsabilidade, a autonomia e o respeito mútuo na
ordem do dia.