Goa: Apenas uma mestiçagem espiritual

 

 

 

Orlando Ribeiro, Goa em 1956: Relatório ao Governo, Lisboa, CNCDP, 1999

 

 

“Em termos gerais, e salvo algumas excepções que ressalva, «a província de Goa», surgiu-lhe como «a terra menos portuguesa de todas as que vira até então». E explica detalhadamente porquê, tomando como tópicos o «desconhecimento geral da nossa língua», a «persistência de uma sociedade estranha e indiferente, quando não hostil à nossa presença», a limitada influência portuguesa «encerrada como um quisto no flanco do hinduísmo renascente» ou o predomínio dos sentimentos autonomistas ou pró-indianos sobre o «patriotismo português». Não se inibe, mesmo, Orlando Ribeiro, de lamentar as deturpações da propaganda oficial (a manipulação falsificatória das estrofes dos Lusíadas, a referência errónea a uma «maioria cristã», a alusão à duração da presença portuguesa na Índia...), ou verberar os casos de «corrupção», «prepotência», «exorbitação da autoridade», «parcialidade», imputados às autoridades portuguesas que encontrara envoltas em ambiente de «suspeição e delação» e de algum «nervosismo».  Para o leitor de hoje, dir-se-ia que, fosse por erros históricos da colonização portuguesa no lidar com a complexa sociedade indiana, fosse por características de fechamento e de nacionalismo anti-ocidentais próprias desta ou por ela desenvolvidas, Portugal «perdera o pé» na índia, desligara-se política, social e culturalmente do «escol» indiano sem criar outro que lhe fosse fiel, não estando à vista, salvo medidas pontuais, uma solução fácil para os desafios que colocava a pressão da União Indiana.” ( Prefácio de Fernando Rosas, pp. 23-24)

 

Ao eminente geógrafo português foi incumbida a «missão de geografia na Índia» em 1955. Levava como adjuntos Raquel Soeiro de Brito e Mariano Feio. Orlando Ribeiro ficou em Goa de Outubro até 26 de Fevereiro. Os seus adjuntos continuaram as suas pesquisas em Goa até o mês de Maio. A primeira difusão de resultados fez-se através do número especial da revista Garcia de Orta (1956), «dedicado à Índia Portuguesa e integrado nas Comemorações do IV Centenário da Introdução da Imprensa em Goa». Raquel Soeiro de Brito publicou em 1966 Goa e as Praças do Norte, re-editada em 1998, com o título Goa e as Praças do Norte Revisitadas, pela Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses. No ano anterior, 1997, a mesma Comissão editou outra obra da autora, No Trilho dos Descobrimentos – Estudos Geográficos, que contempla os aspectos mais monográficos das suas investigações na Índia («Encontros de Civilizações na Índia ex-portuguesa», pp. 222-287).  Mariano Feiro publicou a síntese dos seus estudos geomorfológicos no número especial de Garcia de Orta, e em 1979, um livro sobre As Castas Hindus de Goa. Quanto a Orlando Ribeiro, enviou de Porvorim (em Goa)  um artigo para o Diário Popular, «A cruz e o tulôsse», saído em 9 de Fevereiro de 1956. Entrou com várias contribuições para o citado número especial de Garcia de Orta, Mas o seu Relatório ao Governo nunca teve a menor difusão até agora.

[Introdução de Suzanne Daveau, pp. 25-36]

 

[pp. 29-30]:

 

“Ao contrário de outros lugares onde o português, sensível à atracção das mulheres de cor, originou rapidamente uma população mestiçada, opôs-se-lhes aqui a rigidez do sistema das castas, obrigando-o a formar outra – a dos descendentes.  O sonho de Albuquerque, de criar uma população luso-indiana, como D. Manuel insistentemente lhe recomendara, em breve se esvaiu. Apenas algumas mulheres, cuja casta as condenava a uma condição inferior, encontraram maneira de se elevarem socialmente pelo casamento com estes homens estranhos.”

 

“Ao contrário do Brasil, onde tantas famílias ilustres ou humildes entroncam numa ascendência lusitana, que timbram em reconhecer, a par de uma frequente mestiçagem; ao contrário de Cabo Verde, cuja população crioula está sentimentalmente tão perto de nós, porque os antigos escravos africanos absorveram na verdade o sangue do seus brancos, os goeses conservaram a pureza da sua casta, mas revelam uma surpreendente assimilação dos nossos usos e maneiras de ser. Aqui a mestiçagem foi apenas de ordem espiritual. Custa a crer que não corra nenhum sangue português nas veias da nobreza rural de Salcete ou das antigas famílias cristãs de Margão.  Os salões dos seus palácios, as camas de dossel, a vida patriarcal da família, tutelando numerosa criadagem, a cortesia um tanto reservada com que sabem receber, a presença discreta das senhoras da casa, a conversa que decorre sobre os nossos escritores e a vida provinciana que eles revelaram a quem nunca saiu de Goa, tudo evoca horizontes distantes da tradição portuguesa. Onde estamos? Na índia ou no Brasil, nos Açores ou em Cabo Verde, ou ainda entre velhas famílias da nossa aristocracia mais provinciana e mais autêntica?! Assim, não surpreende que o filho da casa graduado por uma Universidade portuguesa, ocupe algures, no Ultramar ou na Metrópole, lugar de relevo: tão português na aparência, nos modos e na expressão, que a sua origem de uma raça estranha facilmente passaria despercebida, se não fosse o sotaque especial, o cabelo negro e corredio e o tom bronzeado da pele”

 

“Por outro lado, surpreende a pouca difusão que teve a nossa língua entre a população cristã de Goa. A gente culta fala com fluência e correcção, não raro até com eloquência. Muitas famílias de Margão usam o português entre si. Mas todos falam concanim com os criados e, entre o povo, esta língua é às vezes exclusiva. Mas, nas festas, nas conversas da rua, nas representações teatrais, o ouvido atento surpreendem, no meio da língua ininteligível, o perpassar de palavras portuguesas: pai, mãe, família, casamento, e estas bastam para mostrar até onde foi funda a nossa influência na vida da intimidade.”

 

[pp. 64-65] :

 

“Conhecendo razoavelmente todas as Ilhas Adjacentes e tendo escrito um livrinho sobre a Madeira, havendo visitado todos os territórios portugueses da África, desde Moçambique, e estudado com profundidade a Guiné e algumas ilhas de Cabo Verde, tendo viajado quase quatro meses pelo Brasil e observado alguns dos seus recantos mais sertanejos, sabendo alguma coisa do mundo muçulmano, já pelos estudos árabes da minha juventude já por viagens em Marrocos, no Egipto e na África Ocidental, possuía assim uma perspectiva ampla ao iniciar as investigações na província de Goa. Esta apareceu aos meus olhos como a terra menos portuguesa de todas as que vira até então, menos portuguesa do que a Guiné, pacificada em 1912! O desconhecimento geral da nossa língua, a persistência de uma sociedade estranha e indiferente, quando não hostil, à nossa presença, a limitação da nossa influência, encerrada como um quisto no flanco do hinduísmo renascente, fizeram-me olhar Goa com uma grande decepção.”

 

“O meu íntimo modo de ser, se não bastasse o propósito deste relatório, leva-me a ser inteiramente sincero, a não esconder aspectos menos agradáveis, a não dissimular facetas que ferem a nossa sensibilidade nacional. Penso que é bom olhar de frente a realidade, por menos grata que nos seja esta contemplação. Só assim se evitam equívocos, miragens, hesitações, e se sabe ao certo com que contar e donde se tem de partir”.

 

[ p. 92]:

 

“Pessoas inteligentes encontram-se a cada passo e a boçalidade, traço frequente do povo entre nós, não existe.”

 

[pp. 95-96]:

 

“A sociedade hindu de tipo tradicional vive fechada sobre si. O convívio com gente estranha é vedado no interior das casas, que seriam conspurcadas por estes imundos, que comem carne de vaca e de porco. As viagens por mar e as estadias no estrangeiro são ainda vistas com maus olhos, por causa dos perigos a que expõem na falta de cumprimento dos ritos, pelos prelados hindus. O português é repelido, as mulheres não devem olhar para ele. É o pacló, quer dizer, o boçal, o que «só diz asneiras»; nada sabe... do hinduísmo, com ele se mete medo às crianças irrequietas, viola mulheres, é capaz de comer gente.”

 

 

“Entre os «notáveis» o estranho é recebido com cortesia, mas à porta ou à varanda. Por nada se podem pôr os pés no chão lavado a bosta da cozinha de um brâmane ou nos aposentos reservados às mulheres. Os templos têm lugares inacessíveis aos não hindus, e quando o Ministro do Ultramar foi recebido na prelazia de Queulá, gastaram-se 1200$00 em devoções para purificar o recinto que ele e a comitiva haviam conspurcado.”

 

[pp. 108-110]

 

“Ao contrário das missões africanas, a Igreja nada faz, no geral, pela difusão da nossa língua, visto que o clero local a não utiliza nas práticas e orações em comum. Surpreende dolorosamente que, num ofício religioso celebrado em terra portuguesa, por um clero que Portugal aí formou, entre gente cristianizada pelo esforço português, apenas o latim seja para nós inteligível. Foi preciso na cidade mais cosmopolita de Goa, Vasco da Gama, que alguns portugueses da Metrópole, assíduos à missa da tarde, pedissem ao pároco o favor de fazer, em português, um como resumo da homilia.”

 

“O mais importante instituto de ensino secundário é o liceu de Goa; dos seus professores goeses, uns alcançaram as habilitações profissionais em Portugal, outros transitaram do antigo liceu de Margão, onde parece que a selecção não fora nada rigorosa; raros metropolitanos, que preferem ensinar em Moçambique ou Angola, uma vez que os vencimentos de Goa são sensivelmente inferiores aos daquelas províncias;  e um número exagerado de professores provisórios, falhados da profissão que se cansaram de andar por colégios, senhoras que aproveitam ensinar aqui por terem maridos empregados em Goa. Sobre tudo isto, um critério de benevolência que faz com que, neste liceu-sanatório, venham estudar alguns maus alunos de Moçambique. Escola sem nível, com raros professores que se imponham pelo saber e pela distinção, alunos de grandes olhos vivos e inteligentes, certamente capazes, mas mal preparados na língua em que têm de fazer os estudos, o liceu que devia ser um dos mais vivos focos de cultura portuguesa no Ultramar é talvez o que , muito justamente, possui pior reputação”.

 

“Outros mais competentes no assunto poderão referir-se à única escola superior de Goa, a de Medicina. É voz corrente que o ensino deixa aí muito a desejar, que são professores catedráticos médicos que na Metrópole nem seriam assistentes e há uma forte corrente de opinião no sentido de substituir por bolsas de estudo, para virem aprender a sério em Portugal, o dinheiro que a Escola Médica custa ao Estado. Visitei as instalações dela, conheci vários professores e médicos formados por lá, e estou longe de partilhar esta opinião.”

 

[p. 119]:

 

Ao contrário da África Portuguesa, onde há o maior cuidado em empregar as expressões como Metrópole e metropolitano, em Goa opõe-se esta província a Portugal e o goês cristão opõe-se a português. É corrente sermos assim designados por gente  muito próxima de nós na fala e nos usos, mas alheia ao nosso sentido de Pátria. Pátria para o goês é Goa, é nela que eles desejam gozar liberdades e proeminências; entre os partidários da integração – e os hindus são-no em geral pelas razões de sentimento e cultura apontadas – e os partidários da união com Portugal (parece que mais ou menos convictos consoante sopram os ventos) situa-se grande número de goeses cristãos, que acima de tudo desejariam íntimas relações com a Índia e a autonomia da sua terra.  Aquilo que para alguns é uma espécie de dupla cidadania, goesa e portuguesa, de que eles sabem tirar todo o proveito, preferiam-no eles em relação à União Indiana.”

 

[pp. 125-126]:

 

“... a maior corrente da emigração, que tradicionalmente se dirigia para Bombaim, se encontra estancada [resultado do boicote económico imposto pela União Indiana em 1954], como muitos goeses residentes na Índia foram repatriados e os países aliados e amigos desta potência não deixarão de pôr obstáculos à colocação de emigrantes sob a nossa bandeira. É preciso encontrar uma saída para eles, problema tanto mais dificil quanto é certo que a emigração da Metrópole é já de si considerável e a emigração goesa pertence a um tipo muito especial: gente de qualidade e de educação, a quem repugnam certos serviços, ocidentalizada (em grande parte inglesada) nos costumes e desejosa de manter as posições no comércio, no funcionalismo, na indústria hoteleira, etc.”

 

“Timidamente, vão-se criando alguns bispos goeses (na altura da sagração do primeiro, D. Altino Ribeiro, não deixou de notar-se que, existindo seminários há quatrocentos anos na Sé da Velha Goa, só agora deles saísse um prelado...) e abrindo o Ultramar aos médicos saídos da Escola de Goa, onde pelo carácter especial da patologia local, nenuma experiência adquirem das endemias tropicais que afligem a África.”

 

[Orlando Ribeiro certamente ignorava a existência nessa altura de 15  bispos goeses nas várias dioceses da União Indiana, e de dois cardiais, nomeadamente em Bombaim e em Carachi. Devia-se inteiramente à política colonial portuguesa a falta de bispos goeses na jurisdição colonial portuguesa. Aliás, não parece ter sido ignorância nenhuma como se pode concluir da sua tomada de posição logo a seguir. Na sua generalização parece esquecer-se de que houve brancos que sofriam das mesmas tendências] !- Nota do coordenador desta  página web.

 

“ O meu sentimento pessoal não é favorável à larga utilização dos índios [indianos?] nos quadros da administração ultramarina. Ao contrário dos cabo-verdianos, colaboradores devotados e leais dela, tão portugueses nos sentimentos e na mentalidade, esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos), dos seus preconceitos de casta, da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam. Quer dizer: como colaboradores de uma política de indiscriminação étnica e de verdadeira assimilação, teriam tendência de fazer o contrário do que se exigiria deles. Isto é, evidentemente, um perigo. Por isso o índio será menos nocivo entre gente branca, nas cidades e vilas da Metrópole, onde tem conquistado, tantas vezes como brilho e distinção, as mais altas posições. Depois, há ainda a contar com a reacção das populações nativas. Que razão haverá de se pôr à frente do clero de Cabo Verde um bispo índio, quando já no tempo do Pe. António Vieira os cónegos, «tão negros como azeviche», pareceram ao eminente jesuíta mais compostos, piedosos e instruídos que os de muitas sés do Reino!”

 

[“O que justifica um bispo goês na área de mais intensa colonização portuguesa em Angola (Huíla), homem de cor para os brancos, pessoa de raça diferente para os pretos (à parte as suas qualidades pessoais)?!”  OR, 1977]

 

[p. 132]

 

[Acho infelizes as seguintes linhas de auto-comiseração no final do Relatório – Observação do coordenador desta página web. ]

 

“No entanto, os goeses cristãos, nos mandós (canções) ou no teatro, entregam-se à protecção de São Francisco Xavier mas não têm uma palavra de simpatia ou de agradecimento por aqueles que aqui vieram defender a integridade do seu território, o sossego dos seus lares e o livre exercício das suas crenças. A gratidão não é o seu forte. Termos de dar muito, contando receber bem pouco...”

 

“Quando, há vinte e três anos, tomei parte num cruzeiro de férias às províncias do Atlântico, ficou-me a lembrança de simpatia, de caloroso acolhimento, que ao português era reservado pelas populações africanas. Permanências mais largas na Guiné, em Cabo Verde, em São Tomé, só vieram confirmar as impressões daquele primeiro e rápido contacto. Aqui, pelo contrário, domina a prevenção, a desconfiança. Quando não antipatia mais ou menos declarada.”