Os 25 Anos de
"Orientalismo": Uma Janela para o Mundo
Por EDWARD SAID
Lisboa, Jornal PÚBLICO, Domingo, 24 de Agosto de 2003
Há nove anos escrevi um posfácio para "Orientalismo" que, ao
tentar clarificar aquilo que eu penso ter ou não ter afirmado, sublinhava não
apenas as muitas discussões que tinham sido iniciadas desde que o meu livro
apareceu em 1978, mas também as formas como um trabalho sobre as representações
do "Oriente" se prestou a uma crescente interpretação errada. Que eu
me sinta hoje mais irónico do que irritado por causa
disso é um sinal de como a idade tem avançado em mim. As
mortes recentes dos meus dois principais mentores intelectuais, políticos e
pessoais, os escritores e activistas Eqbal Ahmad e Ibrahim Abu-Lughod, trouxe-me tristeza e vazio, bem como
resignação e uma certa vontade teimosa de seguir em frente.
No meu livro de memórias "Out of Place" (1999) descrevi os
estranhos e contraditórios mundos em que cresci, fornecendo a mim próprio e aos
meus leitores um relato detalhado do pano de fundo em que eu penso ter sido
formado na Palestina, Egipto e Líbano. Mas esse era
um relato muito pessoal que deixou de fora todos os anos do meu envolvimento
político que começou depois da guerra israelo-árabe
de 1967.
"Orientalismo" é um livro muito ligado às tumultuosas dinâmicas da
História contemporânea. A primeira página começa com uma descrição, em 1975, da
guerra civil libanesa que terminou em 1990, mas cuja violência e derramamento
horroroso de sangue humano continua até hoje. Tivemos o fracasso do processo de
paz de Oslo, o início da segunda Intifada e o terrível sofrimento dos
palestinianos nas reinvadidas Cisjordânia e Faixa de
Gaza. O fenómeno dos bombistas suicidas apareceu com
todos os seus odiosos estragos, nenhum deles tão medonho e apocalíptico como os
acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e as consequentes
guerras contra o Afeganistão e o Iraque.
Enquanto escrevo este texto a ocupação imperial ilegal do Iraque pelos Estados
Unidos e a Grã-Bretanha continua. E continuará
verdadeiramente a ser algo horroroso de contemplar. Tudo isto faz parte do que
é suposto ser um choque de civilizações, implacável, irremediável, inabalável.
Ainda assim, penso que não.
Gostaria de poder dizer que a compreensão geral do Médio Oriente, dos árabes
e do islão nos Estados Unidos melhorou, mas a verdade é que isso não aconteceu.
Por todo o tipo de razões, a situação na Europa é consideravelmente melhor. Nos
EUA, o endurecimento das atitudes, o reforço das vil generalização e do cliché triunfalista, a predominância de poder irreflectido aliado ao desprezo simplista pelos dissidentes
e pelos "outros" encontrou um correlativo à medida na pilhagem e
destruição das bibliotecas e museus do Iraque.
Aquilo que os nossos líderes e os seus lacaios intelectuais parecem ser
incapazes de perceber é que a História não pode ser limpa com uma esponja como
um quadro negro, limpa para que "nós" aí possamos inscrever o nosso
próprio futuro e impor as nossas próprias formas de vida para que estas sejam adoptadas por esses seres inferiores.
É muito comum ouvir altos responsáveis políticos em Washington e não só a
falarem em mudar o mapa do Médio Oriente, como se as sociedades antigas e uma
miríade dee povos pudessem ser agitados como
amendoins num jarro. Mas isto aconteceu muitas vezes com o "Oriente",
essa construção semi-mítica que, desde a invasão napoleónica do Egipto em finais
do século XVIII, tem sido feita e refeita vezes sem conta. Neste processo, os
múltiplos sedimentos de História, que incluem inúmeras histórias e uma
variedade impressionante de povos, idiomas, experiências e culturas, todos eles
são marginalizados ou ignorados, enterrados nas pilhas de areia e terrenos de
tesouros como os fragmentos sem sentido que foram retirados de Bagdad.
O meu argumento é que a História é feita por homens e mulheres, tal como
pode ser desfeita e reescrita, de modo a que o "nosso" Leste, o
"nosso" Oriente se torne de facto "nosso" para possuir e dirigir.
E acredito verdadeiramente nos poderes e capacidades dos povos daquela região
para continuarem a lutar por aquilo que são e querem vir a ser. Tem havido um
ataque tão maciço e calculadamente agressivo sobre sociedades árabes e
muçulmanas contemporâneas pelo seu atraso, falta de democracia e negação dos
direitos das mulheres, que simplesmente nos esquecemos que noções como
modernidade, luzes e democracia não são de modo algum simples e foram
construídas sobre conceitos difíceis de definir.
A incrível indiferença dos estéreis colunistas, que falam em nome da
política internacional mas que não têm qualquer conhecimento da linguagem que
as pessoas reais falam, criou uma paisagem árida pronta para que o poder
americano aí construa um modelo de "democracia" de livre mercado.
Não precisamos dos árabes ou persas ou mesmo dos franceses para nos
mostrarem como o efeito de dominó da democracia é o que o mundo árabe precisa.
Mas há uma diferença entre o conhecimento de outros povos e outros tempos que é
o resultado da compreensão, compaixão, estudo cuidadoso e análise feita em seu
próprio bem, e, por outro lado, o conhecimento que faz parte de uma campanha
global de auto-afirmação. Existe, afinal de contas, uma diferença entre a
vontade de compreensão para objectivos de coexistência e alargamento de
horizontes e o desejo de dominar com objectivos de controlo.
É certamente uma das catástrofes intelectuais da História que uma guerra
imperialista confeccionada por um pequeno grupo não eleito de responsáveis
políticos americanos tenha sido empreendida contra uma devastada ditadura do
Terceiro Mundo, tendo como fundamento ideológico o domínio mundial, o controlo
da segurança e a escassez dos recursos, mas disfarçada na sua verdadeira
intenção, acelerada e justificada por orientalistas que traíram a sua vocação
de eruditos.
As maiores influências sobre o Pentágono e o Conselho Nacional de Segurança
de George W. Bush foram as de homens como Bernard Lewis e Fouad
Ajami, peritos no mundo árabe e islâmico que ajudaram
os predadores americanos em tão absurdos fenómenos
como a mente árabe e o já antigo declínio islâmico que só o poder americano
poderia inverter.
Actualmente, nos Estados Unidos as livrarias estão
cheias de discursos longos e gastos com títulos gritantes sobre o slão e o terror, o islão exposto, o perigo árabe e a ameaça
muçulmana, todos eles escritos por agitadores políticos que divulgam as
informações fornecidas a si e a outros por especialistas que, supostamente,
conseguiram penetrar o coração desses estranhos povos orientais. A acompanhar
tais agitadores estiveram a CNN e a Fox, mais uma
miríade de rádios evangélicas e de orientação política de direita, inúmeros
tablóides e jornais semi-sérios, todos eles
reciclando as mesmas inverificáveis ficções e vastas generalizações para atiçar
a "América" contra o demónio estrangeiro.
Sem uma noção clara de que esses povos não são como "nós" nem
partilham os "nossos" valores - o centro do
tradicional dogma orientalista - não teria havido qualquer guerra.
Vindos do mesmo rol de intelectuais profissionais pagos pelos conquistadores
holandeses da Malásia e Indonésia, pelos exércitos britânicos que conquistaram
a Índia, a Mesopotâmia, o Egipto, a África Ocidental,
pelos exércitos franceses da Indochina e do Norte de África, os conselheiros
americanos chegaram ao Pentágono e à Casa Branca, usando os mesmos clichés, os mesmos vis estereótipos, as mesmas
justificações para o poder e violência (afinal, sem rodeios, o poder é a única
linguagem que entendem) neste caso como em anteriores. A estas pessoas
juntaram-se agora no Iraque um exército de empreiteiros privados e ansiosos
empresários a quem será confiado tudo, desde a redacção
dos textos legais e da Constituição à reconstrução da vida política iraquiana e
da sua indústria petrolífera.
Todos os impérios, nos seus discursos oficiais, afirmam não ser como os
restantes, defendem que as circunstâncias em que se formam são especiais, que a
sua única missão é iluminar, civilizar, estabelecer a ordem e democracia e que
usam a força apenas como último recurso. Mas, mais triste ainda, há sempre um
bando de intelectuais dispostos a dizerem doces palavras sobre o quão benignos ou altruístas são estes impérios.
Vinte cinco anos depois da publicação do meu livro, o
"Orientalismo" levanta uma vez mais a questão de saber se o
imperialismo moderno terminou alguma vez ou continuou no Oriente desde a
entrada de Napoleão no Egipto há dois séculos. Foi
dito a árabes e muçulmanos que a vitimização e
insistência nos saques do império é apenas uma forma
de evasão às responsabilidades do presente. Vocês falharam, vocês seguiram o
caminho errado, diz o moderno orientalista. Esta é obviamente também uma contribuição
de V. S. Naipaul para a Literatura: que as vítimas do
império se lamentem enquanto o seu país é destruído. Mas que fraco cálculo da
intrusão imperial é este, que deseja tão pouco enfrentar a extensa sucessão de
anos ao longo dos quais o império continua a impor-se na vida dos palestinianos
ou dos congoleses ou dos argelinos ou dos iraquianos.
Pensemos na linha que começa com Napoleão, continua com o início dos estudos
orientais e com o controlo do Norte de África, e prossegue com actos semelhantes no Vietname, no Egipto,
na Palestina e, durante todo o século XX, na luta pelo petróleo e pelo controlo
estratégico do Golfo [Pérsico], Iraque, Síria, Palestina e Afeganistão.
Então pensemos na ascensão do nacionalismo anticolonial no curto período da independência
liberal, a era dos golpes militares, de sublevação, guerra civil, fanatismo
religioso, luta irracional e inflexível brutalidade contra o último punhado de
"nativos". Cada uma destas fases e períodos gera um conhecimento
distorcido sobre as restantes, cada uma produz as suas próprias imagens
redutoras, as suas próprias polémicas.
A ideia que defendia no "Orientalismo" era a de usar a crítica
humanista para abrir campos de batalha, para introduzir uma sequência
mais longa de pensamento e análise que substituam as pequenas explosões de polémica e de fúria que nos impedem de pensar. Chamei o que
tento fazer de "humanismo", uma palavra que teimosamente persisto em
utilizar apesar da rejeição jocosa deste termo por parte dos sofisticados
críticos pós-modernos.
Por humanismo entendo, primeiramente, a tentativa de dissolver os grilhões
que nos aprisionam o pensamento, segundo Blake, de
modo a que possamos usar a nossa mente, histórica e racionalmente, em função de
uma compreensão reflexiva. Além disso, o humanismo assenta num sentido de
comunidade com outros intérpretes e com outras sociedades e períodos: assim
sendo, não há tal coisa como um humanista isolado. Quer isto dizer que cada
domínio está ligado a todos os outros e que tudo o que acontece no mundo não
acontece de forma isolada ou sem qualquer influência exterior.
É preciso falar das questões da injustiça e sofrimento num contexto
amplamente situado na História, na cultura e na realidade sócio-económica.
O nosso papel é o de alargar o campo de discussão. Passei muito tempo da minha
vida, durante os últimos 35 anos, defendendo o direito do
povo palestiniano à autodeterminação nacional, mas tentei fazê-lo sempre
tendo em atenção à realidade do povo judeu e o que este sofreu devido à
perseguição e genocídio de que foi alvo. O aspecto primordial é que a luta pela
igualdade entre a Palestina e Israel deveria ser orientada em função de um
objectivo humano, isto é, a coexistência, e não em função da repressão e
rejeição.
Não acidentalmente, indiquei que o Orientalismo e o moderno anti-Semitismo têm raízes comuns. Deste modo, pareceria ser
uma necessidade vital dos intelectuais independentes apresentarem alternativas
aos modelos simplistas e limitativos, baseados na ideia de uma hostilidade
mútua, que têm prevalecido no Médio Oriente e no resto do mundo.
Como humanista cuja área de investigação é a da Literatura, tenho idade
suficiente para ter recebido formação no campo da literatura comparada, cujas
principais ideias remontam à Alemanha dos finais do século XVIII e início do
século XIX. Devo também mencionar a contribuição extremamente criativa de Giambattista Vico, o filósofo e filólogo napolitano, cujas
ideias anteciparam as de pensadores alemães como Herder
e Wolf, mais tarde seguidos por Goethe, Humboldt, Dilthey, Nietzsche, Gadamer e,
finalmente, os grandes filólogos do romance do século XX como Erich Auerbach, Leo Spitzer
e Ernst Robert Curtius.
Para os jovens da actual geração a noção de Filologia sugere a ideia de algo
incrivelmente antiquado e bafiento, mas a Filologia
é, no entanto, a mais básica e criativa das artes interpretativas. O que se
torna claro no interesse de Goethe pelo islão em geral, e pelo poeta persa Hafiz em particular, uma paixão insaciável que levou à composição
do West-östlicher Diwan e
influenciou mais tarde as ideias de Goethe sobre a Weltliteratur,
o estudo de todas as literaturas do mundo como um todo sinfónico
que pode teoricamente ser apreendido como se tivesse preservado a
individualidade de cada trabalho sem perder o todo de vista.
Há uma considerável ironia em percebermos que no mundo globalizado e
convergente dos nossos dias, podemos estar a aproximarmo-nos do tipo de standardização e homogeneidade contra as quais as ideias de
Goethe eram especificamente formuladas. No ensaio "Filologia da Weltliteratur" que publicou em 1951, no período do
pós-guerra e do início da Guerra Fria, Erich Auerbach alertava exactamente
para isso.
O seu fantástico livro "Mimesis",
publicado em Berna em 1946 mas escrito enquanto Auerbach
ensinava línguas do Romance em Istambul durante o período do exílio, deveria
ser um testamento à diversidade e ao concretismo da realidade representada na
literatura ocidental desde Homer a Virgina Wolf; mas lendo o ensaio
de 1951 percebemos que, para Auerbach, o grande livro
que escreveu é uma elegia a um período em que as pessoas podiam interpretar
textos filologicamente, concretamente, sensatamente e intuitivamente, usando a
erudição e um excelente domínio sobre diversas línguas para suportar o tipo de
compreensão que Goethe exigia para o seu entendimento da literatura islâmica.
O conhecimento positivo das linguagens e da história era necessário, mas
sempre tão suficiente como a recolha mecânica de um conjunto de factos constituiria um método adequado compreender um autor
como Dante, por exemplo.
O principal requisito para o género de
entendimento de que falavam e tentaram pôr em prática Auerbach
e os seus antecessores, é aquele que, simpática e subjectivamente, entra na vida do texto escrito visto a
partir da perspectiva do seu tempo e do seu autor (einfühlung).
Em vez da alienação e hostilidade com outros tempos e com culturas diferentes,
a Filologia aplicada à Weltliteratur envolvia um
profundo espírito humanístico cheio de generosidade e, se posso mesmo dizer,
hospitalidade.
Desta forma, a mente do intérprete cria dentro de si um espaço para um Outro
que lhe é estranho. E é esta criativa abertura de um espaço para trabalhos que,
de outro modo, pareceriam alienígenas e distantes, a faceta mais importante da
missão do intérprete.
Tudo isto foi obviamente minado e destruído na Alemanha pelo Nacional Socialismo. Depois da guerra, Auerbach
nota, tristemente, a standardização das ideias, uma
cada vez maior especialização do conhecimento que gradualmente vai restringindo
as oportunidades para um trabalho filológico de investigação e de permanente
interrogação que ele representara, sendo, ai de mim, ainda mais deprimente o
facto de, desde a morte de Auerbach em 1957, tanto a
ideia como a prática de uma pesquisa humanística tenha diminuído não só em
âmbito mas também em centralidade. Em vez de lerem, no sentido real da palavra,
os nossos estudantes de hoje são frequentemente distraídos pelo conhecimento
fragmentado disponível na Internet e nos "mass
media".
Pior ainda, a educação é ameaçada pelas ortodoxias nacionalistas e
religiosas frequentemente disseminadas pelos "mass
media", uma vez que estes, sem fornecerem qualquer tipo de contextualização
histórica, cobrem sensacionalmente as distantes guerras electrónicas,
dando aos espectadores a sensação de uma precisão cirúrgica, mas obscurecendo o
terrível sofrimento e destruição causados pela guerra moderna.
Na demonização do inimigo desconhecido, etiquetado
de "terrorista" com o objectivo de atiçar e assustar as pessoas, as
imagens mediáticas direccionam demasiada atenção que
pode ser explorada em tempos de crise e insegurança como os que o pós-11 de
Setembro produziu.
Falando simultaneamente como americano e comoárabe,
devo pedir ao meu leitor para não subestimar a visão simplificada do mundo
formulada por uma relativa mão cheia de elites civis do Pentágono para definir
a política americana sobre todo o mundo árabe e islâmico, uma visão na qual o
terror, a propaganda da guerra e a mudança unilateral de regime suportada pelo
maior orçamento militar da história são as ideias fulcrais debatidas
indefinidamente pelos "media" que assumem para si o papel de produzir
os chamados "peritos" que validam as linhas gerais propostas pelo
governo.
Reflexão, debate, argumentação racional, princípios morais baseados na noção
secular de que os seres humanos devem criar a sua própria história foram substituídos
por ideias abstractas que celebram o carácter de excepção da cultura
americana e ocidental, denegrindo a relevância do contexto e olhando para as
outras culturas com desdém.
Talvez pensem que estou a fazer transições demasiadamente abruptas entre a
interpretação por um lado e política estrangeira por outro, e que a sociedade
tecnológica moderna, que, juntamente com um poder sem precedentes, possui a
Internet e caças F-16, deve em última análise ser dirigida por peritos técnicos
em política como Donald Rumsfeld ou Richard Perle. No
entanto, o que realmente foi perdido é o sentido da densidade e
interdependência da vida humana, que não pode ser reduzida a uma fórmula nem
varrida como se fosse irrelevante.
Este é um dos lados do debate global. Nos países árabes e muçulmanos a
situação é pouco melhor. Como Roula Khalaf defendeu, a região caiu num fácil anti-americanismo que revela um reduzido entendimento do
que os Estados Unidos são realmente enquanto sociedade. Devido ao facto de
serem relativamente impotentes para influenciar a política norte-americana face
a si próprios, os governos dirigem as suas energias para reprimir e manter
subjugadas as suas populações, o que gera ressentimento, angústia e
desesperadas imprecações que em nada ajudam a iluminar sociedades onde as
ideias seculares acerca da história humana e do seu desenvolvimento foram
ultrapassadas pelo fracasso e frustração, assim como por um islamismo
construído sobre ensinamentos decorados e sobre a obliteração do que é
entendido como outras formas competitivas de conhecimento secular.
O desaparecimento gradual da extraordinária tradição da "ijtihad" islâmica, ou interpretação pessoal, tem sido
um dos maiores desastres culturais do nosso tempo, resultando na extinção do
pensamento crítico e do confronto individual com os problemas do mundo moderno.
Isto não significa que o mundo cultural tenha simplesmente recuado a um
beligerante neo-orientalismo, por um lado, ou a um
manto de rejeicionismo, por outro. Devido a todas as
suas limitações, a cimeira das Nações Unidas, realizada o ano passado em
Joanesburgo, revelou de facto uma vasta área comum de preocupação global que
sugere ser desejável a emergência de um novo eleitorado colectivo,
o que atribui à frequentemente condescendente noção de "novo mundo"
uma singular urgência.
Em tudo isto, porém, temos de admitir que possivelmente ninguém conhece a
extraordinariamente complexa unidade do nosso mundo globalizado, apesar de ser
verdade que o mundo assenta numa interdependência das suas partes que não deixa
margem para o isolamento.
Os terríveis conflitos que agregam as pessoas em nome de falsos conceitos de
unidade como "América", "Ocidente" ou "Islão"e
inventam identidades colectivas para grande número de
indivíduos que são na realidade muito diversos, não podem permanecer tão
poderosos como são e devem ser destruídos. Ainda temos ao nosso dispor as
capacidades racionais interpretativas que são o legado da educação humanística,
não como uma piedade sentimentalista que nos leva de volta aos valores
tradicionais ou aos clássicos, mas como uma prática activa
do discurso racional secular mundial.
O mundo secular é o mundo da História feito pelos seres humanos. O
pensamento crítico não se submete às ordens para integrar as fileiras que
marcham contra um ou outro inimigo confirmado. Em vez do conflito manufacturado das civilizações, precisamos concentrar-nos
no lento trabalho feito em conjunto por culturas que se imbricam, que partilham
e vivem juntas sob formas muito mais interessantes do que qualquer modo de
compreensão limitado e não autêntico pode permitir. Mas para esse tipo mais
amplo de percepção precisamos de tempo e de um questionamento paciente e
céptico, apoiado na crença nas comunidades de interpretação que são difíceis de
manter num mundo que exige acção e reacção instantâneas.
O humanismo centra-se nas ideias de individualidade humana e de intuição subjectiva, mais do que em ideias recebidas e autoridade
aprovada. Os textos devem ser lidos como textos que são produzidos e vivem no
domínio histórico em todos os modos do que eu tenho chamado formas mundiais.
Mas isto de maneira nenhuma exclui o poder, pelo contrário tenho tentado
mostrar as insinuações, as imbricações do poder até nos estudos mais
recônditos.
E, por fim, mais importante, o humanismo é a única e, iria mais longe
dizendo, a última resistência de que dispomos contra as práticas desumanas e as
injustiças que desfiguram a história humana. Vivemos hoje fascinados pelo
enormemente encorajador campo democrático do ciberespaço, aberto a todos os
utilizadores de formas impossíveis de serem sonhadas pelas gerações anteriores
de tiranos e ortodoxias.
Os protestos a nível mundial antes do início da guerra no Iraque não teriam sido possíveis se não fosse a existência de comunidades alternativas em todo o mundo, esclarecidas por informação alternativa e profundamente conscientes das questões ambientais, dos direitos humanos e dos impulsos não-deterministas que nos ligam uns aos outros neste minúsculo planeta.
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* EDWARD W. SAID nasceu em Jerusalém em 1935. Deixou a Palestina em 1947
para o Egipto, e depois para os EUA. Licenciado nas
Universidades de Princeton e de Harvard, é professor de Literatura Inglesa e de
Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova York. É autor de
vários ensaios literários e de obras sobre a questão palestiniana.