Fazer
Rir a Verdade: Teoria e prática pós-modernas em O Nome da Rosa
[Fonte:
Peter Bondanella, Umberto Eco e o Texto Aberto,
Lisboa, Ed. Difel, 1998, pp. 105-137.]
Quando Eco publicou a sua primeira obra
de ficção, em Setembro de 1980, um romance passado na Idade Média, ninguém (e
menos ainda o próprio autor) era capaz de imaginar o sucesso internacional sem
paralelo que teria. Em Itália Eco era bem conhecido do público letrado, por
causa da fama das suas anteriores obras teóricas sobre a cultura popular, a
teoria da narrativa e a semiótica. Além disso, colaborava regularmente no
principal jornal italiano,1'Espresso, colaboração
essa que começara em 1965 e acabaria por garantir ao jornal uma coluna semanal («La
Bustina di Minerva»). Por outro lado, também passará a contar com um numeroso
grupo de discípulos nas universidades italianas ao publicar um popular manual
de preparação de teses em Ciências Humanas, de acordo com as normas de
licenciatura nestas instituições do saber em Itália: Como
Si Fa Una Tese di Laurea: Le Materie Umanistiche (manual este tão
popular quanto o são nos Estados Unidos o MLA Handbook ou o Chicago
Manual of Sty1e). Por conseguinte, não surpreendeu o
bom acolhimento crítico do romance de Eco em Itália e a atribuição do
prestigiado Prémio Strega, em 1981. Porém, era impossível imaginar o
acolhimento popular sem precedentes, tanto em Itália como no estrangeiro, com
dezenas de milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro e traduções para
cerca de trinta línguas. Para os seus críticos mais violentos, os «intelectuais
apocalípticos» que desconfiavam de qualquer intelectual cujo interesse pela
cultura popular o tivesse tornado famoso, o sucesso internacional de Eco só
confirmava as suas suspeitas quanto à orientação seguida pela sua evolução
intelectual. Em 1986, o realizador francês Jacques Annaud fez um filme de O Nome
da Rosa, com Sean Connery (actor que fazia parte do elenco habitual
dos filmes de James Bond, que Eco analisara alguns anos antes num ensaio já
clássico), Christian Slater e F. Murray Abraham (que em 1984 tinha recebido um
Oscar pela sua interpretação em Amadeus). Assim, pouco tempo após a
publicação do romance, já a reputação de Umberto Eco ultrapassara largamente o
círculo relativamente pequeno de eruditos e intelectuais familiarizados com a
sua obra teórica e ganhara fama internacional.
O Nome da Rosa é o livro italiano com mais sucesso em
termos de vendas do século XX e esse sucesso, não só como «best-seller»,
mas também como o livro mais vendido durante muito tempo no mundo inteiro,
desencadeou um debate crítico acerca do seu significado e importância, que
ainda hoje continua a inspirar comentários extremamente sofisticados. A
literatura crítica sobre este romance transformou-se numa espécie de pequena
indústria que vai desde os guias práticos com a tradução das muitas passagens
em latim, para ajudar o leitor menos instruído, até volumes mais eruditos
dedicados a questões teóricas implicitamente suscitadas pelo texto. Na sobrecapa
da primeira edição italiana, Eco previu os públicos, anormalmente
diversificados, que seriam atraídos por O Nome da Rosa, e que vão
da grande massa de leitores de «best-sellers» até aos intelectuais e
eruditos mais sérios. Este material, que infelizmente não apareceu na capa da
edição em inglês, destinada quase exclusivamente ao mercado popular, foi-me
fornecido pelo próprio Eco e define os três tipos diferentes de leitores que
ele tinha previsto:
Difícil de definir («gothic novel»,
crónica medieval, romance policial, narrativa ideológica do tipo «roman à
clé», alegoria), este romance (cuja história se entrelaça com a História --
visto que o autor afirma, porventura mentindo, que nem uma só palavra é sua)
pode talvez ser lido de três maneiras. A primeira categoria de leitores será
seduzida pelo enredo e pelos golpes de teatro e aceitará igualmente as longas
discussões livrescas e os diálogos filosóficos, pois aperceber-se-á de que é
precisamente nessas páginas divagantes que se aninham os signos, os indícios,
os sintomas reveladores. A segunda categoria deixar-se-á arrebatar pelo debate
de ideias e tentará estabelecer conexões (que o autor se recusa a autorizar)
com o presente. A terceira dar-se-á conta de que este texto é um tecido feito
de outros textos, um «giallo» de citações, um livro feito de livros. Seja como
for, o autor recusa-se a revelar a qualquer destas categorias o que o
livro significa. Se escreveu um romance é porque descobriu, chegado à
maturidade, que essas coisas sobre as quais não se pode teorizar devemos
narrá-1as.
A frase final desta passagem, uma
importante alusão às ideias do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
adverte-nos de que O Nome da Rosa se propõe juntar a teoria e a prática,
a teoria da narrativa e a própria narrativa. E também sublinha implicitamente a
circunstância de o Eco contador de histórias ter começado a dominar, mas não a
eliminar, o Eco teórico. Os académicos puristas em busca de uma superteoria da
cultura humana talvez vejam neste casamento da teoria semiótica com a prática
da narrativa um passo atrás, um desvio da teoria «dura». Pelo contrário, sou de
opinião que só o mergulho de Eco na teoria durante os anos que precederam a sua
ousada e bem-sucedida transição para a condição de romancista tornou possível
viragem tão abrupta na sua carreira.
Além disso, na sobrecapa, Eco define o
seu leitor-modelo de tal maneira que ele encarna uma série de características
que não se excluem mutuamente. Em primeiro lugar, o seu leitor-modelo pode ser
identificado em certos aspectos com o consumidor ávido de «best-sellers»,
que se concentra no enredo -- o mesmo modelo filistino severamente criticado
pelos escritores modernistas de uma geração anterior. Para sublinhar a ligação
do romance à literatura popular e mesmo à «pulp literature», associada à
cultura popular, a intrigante história dos estranhos acontecimentos ocorridos
numa abadia italiana no fim de Novembro de 1327 -- incluindo a morte de sete
frades (dois por suicídio e cinco assassinados) e a destruição final da abadia
pelo fogo -- situa-se dentro do género tradicional e familiar da história
policial. Como já observámos, numa fase anterior da sua carreira Eco afirmara
que a história policial é uma «tentação perpétua» para o homem de cultura e,
com a sua estreia na prática da ficção, em oposição à apreciação teórica da
ficção na teoria da literatura ou da cultura, sucumbe totalmente a essa
tentação, e com resultados verdadeiramente surpreendentes.
Um segundo grupo de leitores
implicitamente imaginado pelo autor inclui aqueles que vêem em qualquer
tratamento histórico do passado uma subtil alegoria sobre acontecimentos do
presente. A descrição da génese deste seu romance em Postilie a Il Nome
della Rosa (1983) confere peso a esta abordagem, pois nesta breve mas
importante avaliação da sua própria obra especifica que começou a escrevê-la em
Março de 1978. Esta data representa sempre um momento histórico inesquecível
para todos os italianos, pois no dia 16 Aldo Moro (1916-1978), então presidente
do Partido Democrata-Cristão e primeiro-ministro de Itália, foi raptado pelas
Brigadas Vermelhas, vindo a ser assassinado meses depois. Moro era responsável
pela chamada «abertura à esquerda» dentro do Partido Democrata-Cristão e, mais
especificamente, pelo «compromisso histórico» entre os democratas-cristãos e o
Partido Comunista liderado por Enrico Berlinguer (1922-1984), compromisso esse
que significou um importante passo na evolução do Partido Comunista italiano em
direcção a uma espécie de euro-comunismo e à social-democracia. Eco e muitos
outros intelectuais italianos ficaram profundamente chocados com o assassínio
de Moro.
Os leitores que desconheçam
completamente este pano de fundo especificamente italiano do romance de Eco não
terão de qualquer modo dificuldade em ver nas forças antagónicas do papado e no
império de que se fala no romance o reflexo de um conflito semelhante entre os
dois grupos antagónicos de nações envolvidas na luta ideológica da guerra fria.
E ainda que o leitor-modelo imaginado pelo texto de Eco rejeite tomar em
consideração uma alegoria tão vaga, não deixa de ser verdade que a cultura
popular do século XX revela um especial fascínio pela Idade Média, como o
demonstram os muitos filmes passados nessa época, os «best-sellers» sobre
esse período de escritores como Barbara Tuchman ou as inúmeras obras de ficção
científica cujo cenário é medieval ou pseudomedieval. Num ensaio escrito em
1972 para a colectânea Dalla Periferia dell'Impero, o próprio Eco
estabelece um paralelo entre uma Idade Média que assiste ao colapso de uma
«grande paz» e o fim do que ele chama a «crise da Pax Americana». Se bem que
isto fosse escrito no auge da guerra do Vietname e não prefigurasse a morte do
outro império muito mais caro aos corações dos intelectuais europeus, a União
Soviética, Eco voltou ao tema em 1983, num ensaio intitulado Dez Modos de
Sonhar a Idade Média, incluído em Sugli Specchi. De novo,
define a Idade Média como a infância do mundo moderno e esboça dez abordagens
contemporâneas diferentes do período: a Idade Média como um pretexto ou um
lugar mitológico onde situar personagens contemporâneas; como revisitação
irónica (um seu exemplo são os «remakes» irónicos de Sergio Leone dos
«westerns» americanos); como uma época de sentimentos elementares e perigosos
(as óperas de Wagner); como um cenário romântico (castelos em ruínas assolados
pela tempestade, fantasmas); como um cenário perene para o neotomismo (a
aplicação da filosofia de S.Tomás de Aquino a problemas contemporâneos); como
um momento de identidade nacional (em particular no século XIX); como ambiente
decadente (os pré-rafaelitas ou D'Annunzio); como um período que inspira aos
investigadores a reconstrução filológica; e como a sede de filosofias
anticientíficas e ocultistas (como os cultos dos Templários ou dos rosa-cruzes,
ou a suposta procura do Graal pelos nazis); e, finalmente, como um modelo para
o pensamento milenarista. O leitor atento pode encontrar no romance de Eco
elementos de todas estas Idades Médias embora não necessariamente vistas a uma
luz positiva pelo autor.
O terceiro grupo de leitores implícito
no leitor-modelo de Eco é, evidentemente, a categoria mais sofisticada e inclui
o «leitor culto», bem como o erudito-especialista ou o crítico, como ele
próprio. Porém, a característica mais importante do leitor-modelo de Eco é que
deve abarcar todo o leque de possibilidades, do consumidor
de «best-sellers» ao académico erudito em busca de fontes e alusões
literárias (mais ou menos como o leitor imagina o que um modernista como James
Joyce tinha em mente). No entanto, o que diferencia Eco de Joyce é a sua
sensibilidade pós-modernista (enquanto oposta à sensibilidade modernista de
Joyce), pois com O Nome da Rosa empreendeu conscientemente escrever
um romance que possa servir de manifesto pós-modernista e de demonstração
prática da possibilidade de apelar para uma grande variedade de públicos ao
mesmo tempo. Importa igualmente observar que Eco não está interessado em
dirigir-se apenas ao terceiro grupo referido, o mais reduzido, que certamente
teria de incluir a vanguarda. Na realidade, rejeita especificamente a anterior
identificação modernista de «popularidade» com «falta de qualidade» que ele e
os outros membros do Gruppo 63 haviam tenazmente utilizado como argumento nos
seus ataques aos romancistas italianos que consideravam excessivamente
populares nos anos 60, como Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1869-1957), Giorgio
Bassani (1916) e Carlo Cassola (1917-1987).
Eco afirma que «é possível encontrar
elementos de ruptura e contestação em obras que aparentemente se prestam a um
fácil consumo» -- ou seja, em obras da cultura popular -- e que «certas obras,
que surgem como provocatórias e ainda fazem o público dar saltos nas cadeiras,
não contestam, afinal, absolutamente nada», uma posição estética e filosófica
que só pode ser qualificada como pós-moderna. E também poucas dúvidas restam
quanto a Eco ter querido que o seu primeiro romance fosse interpretado não
apenas como uma obra de ficção mas, também, como uma afirmação de estética
pós-modernista. Burkhart Kroeber, o tradutor alemão, chamou a atenção para uma
importante entrevista de Eco ao diário italiano La Republica (15 de
Outubro de 1980), em que declara: «A minha ambição é que nada no meu livro seja
escrito por mim, mas apenas textos já escritos» - de modo que a obra pudesse
ser comparada a um relicário «produzido com uma técnica de artesão medieval:
peças díspares, reunidas em volta dos ossos de um santo com mais de mil anos».
Isto não pode deixar de recordar aos leitores de Eco um outro ensaio
provocatório sobre a repetição de lugares-comuns numa obra da cultura popular,
o filme Casablanca: «Dois clichés fazem rir. Cem clichés comovem.
Porque se adverte obscuramente que os clichés estão falando entre si e celebram
uma festa de reencontro.» Neste mesmo ensaio, Eco analisa ainda outros filmes
«pós-modernos» muito conhecidos, tornando-se claro que a intertextualidade que
concebe um texto literário como «um tecido feito de outros textos, um 'giallo'
de citações, um livro feito de livros», como Eco diz na sobrecapa do romance,
constitui um dos elementos-chave na formação de uma narrativa pós-moderna.
Considerando a carreira de Eco anterior
à publicação de O Nome da Rosa, parece evidente que a sua
evolução intelectual -- sobretudo o interesse pela chamada obra
«aberta», bem como o fascínio pelo papel do leitor e o seu tipo de
reacção -- atinge um ponto culminante com a publicação do primeiro
romance. O próprio Eco se recusa, timidamente, a «interpretar» a sua obra, mas
não deixa de a analisar pormenorizadamente em «Porquê 'O Nome da
Rosa'?» Já que este ensaio aparece agora em apêndice a todas as edições
brochadas italianas do romance (tal como à edição brochada inglesa mais
recente), acabou por representar um verdadeiro pós-escrito. Matei Calinescu
chamou a atenção para o facto de até o «pós-escrito» de Eco ao seu romance
representar uma reescrita ou «revisita» (para empregar o seu termo favorito) de
The Philosophy of Composition, de Edgar Allan Poe, a explicação passo a
passo do seu poema «O Corvo». Com efeito, em «Porquê 'O Nome da
Rosa'?» refere-se à explicação de Poe do seu famoso poema e fá-lo,
ironicamente, no contexto de uma recusa de «interpretar» o seu próprio romance.
O precedente de Poe é aqui duplamente importante, não só por constituir um
precedente literário de «Porquê 'O Nome da Rosa'?» de Eco, mas também por
ele ser universalmente considerado o inventor da história policial moderna, o
género popular de que o romance de Eco é devedor e com cujas convenções brinca
de uma maneira particularmente pós-moderna.
No entanto, e apesar da irónica
declaração de Eco de que «Porquê 'O Nome da Rosa'?» não pretende ser uma
interpretação, poucas análises da essência do pós-modernismo são melhores.
Quando investigava os cronistas medievais, à procura de material para o seu
romance, eis o que Eco constata:
«Foi assim que voltei a descobrir
aquilo que os escritores sempre souberam (e que tantas vezes nos disseram): os
livros falam sempre de outros livros e qualquer história conta uma
história já contada. Já o sabia Homero e já o sabia
Ariosto, para não falar de Rabelais ou de Cervantes. Posto o que a minha
história não poderá começar senão com o manuscrito reencontrado, e mesmo assim
seria uma citação (naturalmente).»
Numa definição do pós-modernismo que é
talvez não só a mais divertida como também a mais útil, Eco compara a atitude
pós-moderna à de um amante:
A resposta pós-moderna ao moderno
consiste em reconhecer que o passado, não podendo ser destruído, porque a sua
destruição conduz ao silêncio, deve ser reformulado: com ironia, de uma forma
não inocente. Penso na posição pós-moderna como em alguém que ame uma mulher
muito culta e que saiba que não lhe pode dizer «amo-te desesperadamente»,
porque sabe que ela sabe (e que ela sabe que ele sabe) que estas palavras já
foram escritas por Liala. Há, porém, uma solução. Poderá dizer: «Como diria
Liala, amo-te desesperadamente». Nesse momento, tendo evitado a falsa
inocência, e tendo dito claramente que já não se pode falar de uma
maneira inocente, ele terá, no entanto, dito à mulher o que lhe
queria dizer... Ironia, jogo metalinguístico, enunciação ao quadrado.
Em «Porquê 'O Nome da Rosa'?»,
há muitas outras afirmações que demonstram que o romance de Eco
foi fruto de uma reflexão muito cuidada, não só sobre a história,
como também sobre a teoria da literatura. Para além da criação de um
leitor-modelo, baseado no reconhecimento de uma grande variedade de públicos
literários potenciais e no desejo consciente de apelar para todos eles em
níveis muito diferentes, a «dupla codificação» de que falam teóricos
pós-modernos, como Charles Jencks, Linda Hutcheon, ou Matei Calinescu, também
há a dependência de uma saudável dose de tradição literária quando se
trata de dar forma à sua narrativa pós-moderna. Em primeiro lugar, tal como
observa em «Porquê 'O Nome da Rosa'?», escolhe, de entre os modelos
de enredo, «aquele que é mais metafísico e filosófico, o romance policial».
Além disso, considerado no seu conjunto, «Porquê...?» apresenta uma
lista relativamente rigorosa dos tipos de escritores de que usará e abusará e
parodiará no romance: James Joyce, Sir Arthur Conan Doyle, Jorge Luis Borges,
Alessandro Manzoni, Rabelais e uma grande quantidade de autores medievais, de
S. Tomás de Aquino (cuja morte pouco digna será repetida com a morte do abade,
constituindo um momento de cómica descontracção na narrativa) a Bernardo
Morliacense, monge beneditino do século XII cujo poema em latim fornece o
titulo do romance e a famosa última linha do livro: «Stat rosa pristina nomine,
nomina nuda tenemus» («a rosa de ontem perdura no seu nome, nós conservamos
nomes vazios» [De Contemptu Mundi, I, 952].
Pode ser útil aqui um breve resumo do
enredo de O Nome da Rosa. O aspecto mais significativo da arte
narrativa de Eco é o consumado talento com que muda constantemente de um nível
para outro, com o objectivo de seduzir os seus três públicos. A história
passa-se em finais de Novembro de 1327 numa abadia beneditina no Norte de
Itália, para a qual se dirigem um franciscano inglês, Guilherme de Baskerville,
e o seu noviço beneditino alemão, Adso de Melk. Guilherme é ali enviado por
Luís IV da Baviera (m. 1347) para encetar negociações entre o Papa João XXII
(m. 1334) e um grupo de franciscanos críticos do Papa e da Igreja Católica por
causa da atitude tolerante da Igreja para com as riquezas e da forma como
negligencia a prática da pobreza pregada por Cristo. Quando Guilherme chega,
depara com uma situação de emergência: um monge foi encontrado morto e em breve
descobrem outros mortos, não se sabe se assassinados. Pedem-lhe que resolva os
mistérios, antes de o grupo do Papa chegar, visto que faz parte dele um
inquisidor, Bernardo Gui. Então, Guilherme dedica-se a investigar os mistérios
do edifício (o edifício principal da abadia) e da gigantesca biblioteca
construída como um labirinto à maneira de Piranesi, com as obrigatórias
passagens secretas, alçapões e recessos obscuros e imperscrutáveis. No decurso
da sua investigação, o leitor fica a saber muitas coisas sobre a história
eclesiástica da época, sobretudo os vários movimentos heréticos que se opõem às
riquezas acumuladas pela Igreja no exercício do poder temporal, bem como grande
cópia de pormenores a respeito dos variados tipos de manuscritos que nessa
época se podiam encontrar numa biblioteca abacial verdadeira. O romance acaba
quando se descobre que um velho monge cego originário de Espanha, Jorge de
Burgos, é a mente perversa que está por detrás de grande parte dos aterradores
acontecimentos. Esta revelação, bem como a descoberta de que os crimes e
maquinações de Jorge visavam ocultar o livro perdido de Aristóteles sobre a
comédia, dá-se demasiado tarde para Guilherme, que com Adso escapa por pouco à
morte num terrível incêndio que engole a abadia e a sua inestimável biblioteca
(incluindo o manuscrito de Aristóteles, que representava o que Alfred Hitchcock
teria chamado o «McGuffin» da história -- o mecanismo imprescindível em volta
do qual se desenrola todo o enredo).
Guilherme é um frade medieval
particularmente anacrónico, e os seus anacronismos reflectem o sentido de humor
pós-moderno de Eco. E adepto dos ensinamentos de Roger Bacon (e. 1214-c.1292),
Guilherme de Occam (c. 1285-1349) e Marsilius de Padua (c. 1275-1342), o que é
de esperar num erudito medieval. Mas também possuía um conhecimento mais que
superficial da teoria semiótica contemporânea de Peirce e Eco! E Guilherme de
Baskerville fumaria uma forma medieval de marijuana, usava óculos e estava
equipado com um imã que lhe prestou bons serviços quando se perdia no labirinto
da biblioteca. Assim, é uma combinação de Sherlock Holmes, de filósofo céptico,
de semiótico e de frade. Esta combinação de características aparentemente
díspares segue a melhor tradição dos mais famosos detectives da ficção
policial, de Poe e Conan Doyle aos nossos dias.
Nas palavras exactas de Eco, a
literatura pós-moderna é «ironia, jogo metalinguístico, enunciação ao
quadrado»; e, acima de tudo, aplica este princípio estético ao conceito de
tradição literária em O Nome da Rosa. A sua obra
representa um «pastiche» e uma paródia de um certo número de outras
tradições -- algumas óbvias, outras que o são menos --, que
permitem ao romance apelar simultaneamente para todos os públicos visados.
Examinemos alguns dos exemplos mais óbvios e reveladores desta brincadeira com
a história literária, a começar pelo mais importante: o do romance policial. É
evidente que o protagonista, Guilherme de Baskerville, remete o leitor médio
para Sherlock Holmes, para Sir Arthur Conan Doyle e, especificamente, para o
famoso conto O Cão dos Baskerville. Também Guilherme de Baskerville tem
o seu Watson (que narra as histórias do mais famoso detective do mundo e com
ele vive num modesto apartamento em Baker Street, em Londres): trata-se do
noviço Adso, que já velho conta a história dos terríveis acontecimentos na
abadia. Jorge de Burgos, o vilão do romance de Eco, sugere sem dúvida o malvado
Moriarty, o «Napoleão do crime», como Sherlock Holmes chama à sua Némesis em The
Final Problem. E Jorge de Burgos excede em astúcia o detective medieval de
Eco, já que no final da história frustra os planos de Guilherme de
Baskerville.
Claro que para o leitor-modelo
pós-moderno (em oposição ao leitor empírico mais típico que é o consumidor
de «best-sellers» e romances policiais), um antagonista chamado Jorge
de Burgos traz à mente Jorge Luis Borges (1889-1986), o cego
bibliotecário-escritor de metaficção da Argentina. Vários contos de Borges
ressoam ao longo do romance de Eco --- sobretudo A Biblioteca de
Babel e A Morte e a Bússola, para não mencionar alguns breves
ensaios ou críticas de Borges sobre a história da ficção policial. Eco
refere-se-lhe concretamente em «Porquê 'O Nome da Rosa'?»
: «Eu queria um cego para guardar uma biblioteca (o que me pareceu
uma boa ideia narrativa) e mais cego só pode dar Borges, até porque as dívidas
pagam-se.» O que Eco não diz aqui, mas dá a entender, é que a equação «só pode
dar» deriva de uma teoria da ficção pós-moderna e não de uma necessidade
lógica. Só quando a literatura é definida como «ironia, jogo metalinguístico,
enunciação ao quadrado», é que a equação cego mais biblioteca
dá inevitavelmente Borges. Em «Porquê 'O Nome da Rosa'?», Eco
mantém acerca da função literária da história policial basicamente a mesma
perspectiva que a de Borges anos antes (em 1942), em Sobre as Origens da
História Policial. No que respeita à tradição literária, Borges era um
pensador conservador e neste seu texto argumenta que «a literatura do nosso
tempo esgota-se em interjeições e opiniões, incoerências e confidências: a
história policial representa a ordem e a obrigação de inventar». O que Borges
pretende dizer com esta observação é que uma história policial se assemelha a
um soneto ou a uma sextilha -- tem uma forma narrativa
relativamente fixa, com determinadas regras que devem ser seguidas.
A bravura de um escritor é posta em relevo não ao transgredir todas
as regras, mas ao criar algo original enquanto as segue, da mesma maneira que
Ezra Pound experimentou fazer sextilhas porque os mestres reconhecidos da métrica
na Idade Média (Amaut Daniel, Dante, Petrarca) o haviam feito, e tal como ser
um grande poeta, na opinião de Pound, significava excelência dentro de uma
tradição, em oposição a um corte total e radical com a história literária.
Os intrincados jogos literários
(enunciação ao quadrado) de Eco em O Nome da Rosa são fascinantes,
pois em todos os casos visam lançar uma ponte pós-moderna entre o leitor
erudito, académico, filosófico, e o consumidor ávido de «pulp
fiction» e histórias policiais de grande sucesso. Ao fazê-lo, não apenas
manipula a tradição literária de maneiras divertidas, como incorpora erudição
académica na sua ficção. Examinemos um exemplo clássico deste
aspecto -- a primeira demonstração sherlockiana de Guilherme de
Baskerville da sua mestria a investigar. O talento de Sherlock, o modelo de
Guilherme, para encontrar um indivíduo pela primeira vez e logo definir essa
pessoa com todos os pormenores tornou-se tão conhecido que deu origem a uma
expressão que qualquer rapazinho de língua inglesa reconhece: «Elementar, meu
caro Watson!» Eco não resistiu à tentação de mostrar que Guilherme é como
Sherlock neste aspecto e no primeiro capítulo («Prima») do primeiro dia da sua
narrativa, quando Guilherme e Adso se dirigem para a abadia, encontram Remígio
de Varagine, o despenseiro (que mais tarde Bernardo Gui mandou prender, por
heresia). Sem que Remígio lhe tivesse perguntado se tinha ou não visto um
cavalo extraviado (o cavalo preferido do abade Abbone, Brunello), Guilherme
anuncia ao seu espantado interlocutor:
«O cavalo passou por aqui e dirigiu-se
para o carreiro da direita. Não poderá ir muito longe, porque chegando ao
depósito do estrume tem de parar. É demasiado inteligente para se lançar pelo
terreno íngreme... Não o vimos de modo nenhum, não é verdade,
Adso? -- disse Guilherme, Voltando-se para mim com ar
divertido. -- Mas se procurais Brunello, o animal não pode
estar senão além onde eu disse.»
Surpreendido com os comentários
de Guilherme (que por sinal correspondem a uma descrição rigorosa dos
factos), Remígio pergunta-lhe como sabia ele que o cavalo se chamava Brunello,
e a resposta de Guilherme reforça ainda mais a nossa admiração pelas suas
capacidades sherlockianas:
«Vamos - disse Guilherme - é evidente
que andais à procura de Brunello, o cavalo preferido do abade, o melhor
galopador da vossa estrebaria, de pêlo negro, cinco pés de altura, cauda
majestosa, casco pequeno e redondo mas de galope bastante regular, cabeça
miúda, orelhas finas mas olhos grandes. Foi para a direita, digo-vos, e apressai-vos,
em todo o caso.»
Quando posteriormente Adso lhe pergunta
como soube tudo isso, a resposta de Guilherme começa com o tipo de informação
que esperamos de Holmes -- pegadas de cascos na neve fresca, o
tamanho do cavalo calculado com base no tamanho dos cascos, a direcção indicada
por um ramo de silvas partido no carreiro da direita, onde tinha sido
encontrado um pêlo de cavalo, longo e comprido, e assim por diante. Mas estas
provas empíricas, típicas de todo o trabalho básico do detective, dão lugar a
outras considerações literárias ou filosóficas. Adso observa que a cabeça
pequena, as orelhas aguçadas e os grandes olhos (para não falar do próprio
nome, Brunello) não poderiam ser deduzidos da informação empírica, e é
precisamente aqui que Guilherme se desvia, em certos aspectos, do seu homólogo
inglês moderno:
«Não sei se os tem, mas decerto os
monges o crêem firmemente. Dizia Isidoro de Sevilha que a beleza
de um Cavalo exige ‘ut sit exiguum caput, et siccum prope
pelle ossibus adhaerente, aures breves et argutae, oculi magni, nares
patulae, erecta cervix, coma densa et cauda, ungularum soliditate fixa
rotunditas’. Se o cavalo cuja passagem inferi não fosse na verdade o melhor da
estrebaria, não se explicava por que a persegui-lo não foram só os moços mas se
incomodou o próprio despenseiro. E um monge que considera um cavalo excelente,
para além das formas naturais, não pode deixar de o ver como as ‘auctoritates’
lho descreveram, especialmente se -- e aqui sorriu com malícia
dirigindo-se a mim -- é um douto beneditino.»
«Está bem -- disse -- mas
porquê Brunello?
-- Que o Espírito Santo te ponha
mais miolos na cabeça do que aqueles que tens, meu filho! -- exclamou
o mestre.
-- Que outro nome lhe terias dado se o
grande Buridano, que vai reitor em Paris, tendo que falar de um belo cavalo,
não encontrou nome mais natural?»
Guilherme ultrapassou claramente os
limites de toda a investigação empírica -- começou a fazer
inferências hipotéticas, em vez de deduzir a partir de premissas lógicas. E se
o impacte inicial do desempenho de virtuoso de Guilherme surge ao leitor como
uma paródia literária primorosa do estilo de investigação de Sherlock
Holmes -- só falta Guilherme exclamar, triunfante: «Elementar, meu
caro Adso!» --, no meio de toda a sua explicação, Eco transformou
Guilherme (ao menos para o seu leitor mais erudito) num tipo de pensador muito
diferente. Guilherme torna-se um semiótico que emprega um método muito mais
próximo da abdução de que fala Peirce ou o próprio Eco, do que das deduções
lógicas que associamos aos detectives do mundo real ou à multidão de detectives
da ficção.
A transformação anacrónica de Guilherme
num semiótico contemporâneo torna-se clara com a análise dos ensaios incluídos
numa antologia de que Eco e Thomas A. Sebeok são co-autores, intitulada Il Segno
dei Tre. Esta colectânea é um importante contributo para a história da
teoria semiótica e salienta os interessantes paralelos entre os métodos dos
dois famosos detectives do século XIX -- Dupin, de Poe, e Holmes, de Conan
Doyle -- e a teoria semiótica de Charles S. Peirce, o pensador americano
que se tornou tão fundamental para a teoria semiótica do próprio Eco. O
contributo deste para o volume, um ensaio intitulado Horns, Hooves, Insteps:
Some Hypotheses on Three Types of Abduction, inspira-se em certa medida num
ensaio de Carlo Ginzburg (um dos colegas de Eco na Universidade de Bolonha)
igualmente incluído na antologia, embora tivesse sido publicado originalmente,
com outra forma, em 1978. O ensaio de Ginzburg, bem como o interesse de
Eco por estabelecer relações entre os processos de raciocínio associados a
Sherlock Holmes e a Charles S. Peirce, acabaram por fornecer as «fontes»
literárias do episódio de Brunello em O Nome da Rosa.
Este ensaio de Ginzburg delineia o
aparecimento no século XIX do que ele chama «o modelo conjectural» para a
construção do conhecimento nas ciências sociais, que utilizavam pistas obscuras
ou aparentemente insignificantes de uma forma especulativa, com vista a
construírem um modelo epistemológico que fosse diferente do modelo
matemático-científico proposto por Galileu ou Newton. Ginzburg demonstra este
tipo de lógica em três campos muito diferentes: em relação
ao «connaisseur» de arte Giovanni Morelli, que pretendia identificar a
autoria de uma pintura renascentista através da atenção solícita a pormenores
bastante insignificantes (a forma de uma orelha, a curva de uma mão); nos
ensaios psicanalíticos de Sigmund Freud, que menciona o método de Morelli no
ensaio sobre o Moisés de Miguel Angelo, e cujo método (como o fascínio
por um «lapsus linguae» aparentemente sem importância, ou por casos de
esquecimento banais só na aparência) não era muito diferente do de Morelli; e
na descoberta em Sherlock Holmes, para cuja personagem Conan Doyle se inspirou
nas técnicas de diagnóstico de médicos que conhecia pessoalmente. Ginzburg crê
que o processo de raciocínio comum a Morelli, Freud e Holmes e a muitas outras
disciplinas importantes surgidas no último século muito deve, em última
análise, à sintomatologia, um modelo medieval de semiótica médica. Assim,
define este modelo mais antigo como «a disciplina que permite a diagnose, mesmo
que a doença não possa ser directamente observada, com base em sintomas ou
signos superficiais, muitas vezes irrelevantes aos olhos do leigo». O próprio
Freud disse uma vez a um seu doente, o «Homem do Lobo», que achava muito
interessantes os mistérios de Holmes e admirava a metodologia de Morelli.
O que torna o ensaio de Ginzburg
pertinente para o primeiro romance de Eco (e o que deve ter atraído a sua
atenção quando leu Ginzburg) é a fase seguinte do ensaio, que demonstra que o
tipo de raciocínio característico de Morelli, Freud e Holmes tem antecedentes
na pré-história, quando o homem vivia da caça e os caçadores tinham de aprender
a reconstituir a aparência e os movimentos da sua presa através dos rastos
deixados (Eco chamaria a estes rastos «signos»). Ginzburg afirma que por detrás
do modelo sintomático se esconde «o gesto que é talvez o mais antigo da
história intelectual da raça humana: o caçador agachado na lama, a examinar o
rasto de uma presa». A tradição popular do Médio Oriente conta a velha história
de três irmãos que encontraram um homem que tinha perdido um camelo; apesar de
não terem visto o animal, descreveram-no fielmente ao homem. Julgando que só
ladrões poderiam fazer uma descrição tão rigorosa, o dono do camelo mandou
prender os três irmãos, que tiveram de comparecer perante um juiz. E só a
reconstituição convincente do modo como tinham conseguido inferir o aspecto do
camelo, mesmo sem o terem visto, os salvou da execução. Esta história popular
antiquíssima, assim como muitos outros temas populares da literatura europeia,
entraram na literatura ocidental por intermédio de uma colectânea italiana de
contos -- Novelle, de Giovanni Sercambi
(1348-1424) --, posteriormente incluída numa recolha de contos
orientais muito popular, publicada no Século XVI, em Veneza, com o
título Peregrinaggio di Tre Giovani Figliuoli del Re di Serendippo.
Este livro, por sua vez, com a moda dos temas orientais no século XVIII, teve
numerosas edições e traduções para línguas europeias, e a história destes três
irmãos (agora transformados nos três filhos do rei de Serendippo) era tão
popular que Horace Wapole forjou em 1745 a palavra «serendippity» para
significar uma descoberta feliz e inesperada. Anos antes, Voltaire tinha lido a
versão francesa do livro e incorporado o conto no terceiro capítulo de Zadig:
seguindo esta tradição literária, Zadig descreve uns animais desaparecidos que
nunca tinha visto, e quando é acusado (tal como os três irmãos e os três filhos
antes dele) de ter roubado os animais descritos com tanto pormenor, a
reconstituição do processo de raciocínio que lhe permitira descrição tão
precisa vale-lhe a liberdade. Depois desta fascinante digressão pela história
da literatura, Ginzburg observa que é na reelaboração por Voltaire deste velho
conto popular que «se encontra o embrião da história policial. Inspirou Poe e
Gaboriau directamente e, talvez indirectamente, Conan Doyle».
Que o folclore, a tradição popular, o
raciocínio em várias disciplinas das ciências sociais do século XIX e a lógica
que está por detrás da história policial fossem todos relacionados por Ginzburg
com um novo modelo epistemológico deve ter intrigado Eco, que de imediato pegou
nesta tradição e a parodiou no episódio de Brunello de O Nome da Rosa.
Assim, mais que estabelecer uma ligação com os métodos de Sherlock Holmes, o
objectivo de Eco era chamar a atenção para as bases semióticas do entendimento
humano e, mais especificamente, para as teorias de Charles S. Peirce, que tão
importantes foram para o seu livro Tratado de Semiótica Geral.
Como observa Marcello Truzzi no seu
contributo para I1 Segno dei Tre, uma análise das histórias de
mistério de Conan Doyle revela «pelo menos 217 casos claramente descritos e
discerníveis de inferência efectuada por Holmes»; e chega à surpreendente
conclusão de que, «embora Holmes fale muitas vezes das suas deduções, é
raro expô-las concretamente. Por outro lado, as inferências mais comuns em
Holmes não são, tecnicamente, induções. Mais precisamente, Holmes exibe
consistentemente o que Charles S. Peirce chamou ‘abduções’.» A principal
diferença entre uma dedução e uma abdução é que, enquanto a primeira segue
regras lógicas e não necessita de referência alguma à realidade exterior, as
abduções requerem validação externa, pois são, nos termos de Peirce,
inferências presuntivas ou hipóteses.
O ensaio de Eco incluído em Il
Segno dei Tre que liga o romance policial às abduções de Peirce foi
sem dúvida pensado em 1978, ano em que Ginzburg publicou a primeira versão do
seu ensaio e Eco começou a escrever O Nome da Rosa. Uma
leitura deste ensaio de Eco torna perfeitamente claro que a invenção do
protagonista Guilherme de Baskerville alguma coisa deverá não só às tradições
literárias do romance policial familiares a várias gerações de leitores
de «pulp fiction», mas também ao saber epistemológico contemporâneo
mais sofisticado relacionado com a história da filosofia e a metodologia
científica -- como na obra de Ginzburg, para não falar da teoria
semiótica do próprio Eco, que trata de signos e abduções e da teoria da semiose
ilimitada de Peirce. Ao colocar Guilherme de Baskerville no extremo de uma
longa tradição do discurso sobre o pensamento inferencial, em última análise,
assente na teoria semiótica, e ao desvendar uma dívida directa para com o
romance policial, Eco criou uma figura simbólica cuja investigação
incorpora um argumento extremamente sério, de que resultará a ênfase sobre os
seus próprios pontos de vista não apenas sobre a tradição literária mas,
também, sobre a metafísica.
O êxito ou o fracasso das tentativas de
Guilherme para resolver os mistérios da abadia estão assim carregados de mais
significado do que o que se espera do romance policial. E o objectivo de Eco é
combinar temas provenientes da tradição da «pulp fiction» do
romance policial, por um lado, com problemas teóricos mais sérios, com origem
nas disciplinas da semiótica e da teoria da literatura ou da cultura. Uma
excelente maneira de demonstrar esta abordagem bifurcada das questões que o
ocupam está relacionada com o seu tratamento do padrão do Apocalipse em O Nome
da Rosa. Quando tenta encontrar um padrão nas mortes ocorridas na
abadia, Guilherme começa a entrever um, relacionado com a profecia dos sete
anjos com as sete trombetas no Apocalipse do Apóstolo
S. João (8:6-10:10). O iluminador dos manuscritos da biblioteca,
Adelino (o primeiro corpo encontrado na abadia), caiu de uma janela
alta do edifício, ficando uma mancha de sangue na neve: uma
morte que parece evocar o anjo que com a sua trombeta anunciou
«saraiva, e fogo misturado com sangue» (8:7). Na realidade, vimos a
saber, Adelmo não foi assassinado, mas suicidou-se, assim perdendo
desde logo sentido qualquer padrão que se baseasse em sete homicídios. Quando
Venâncio é encontrado morto numa talha com sangue, evoca-se a profecia do
segundo anjo: «E tornou-se em sangue a terça parte do mar» (8:9). Quanto a
Berengário, encontram-no envenenado nos banhos, o que leva Guilherme a observar
que na terceira profecia, quando o terceiro anjo tocou a trombeta, «a
terça parte das águas tornou-se em absinto» (8:11). Quando a cabeça de Severino
foi esmagada por uma esfera armilar que representava o Sol, a Lua e as outras estrelas,
Guilherme é praticamente forçado a concluir que o assassino está mesmo a seguir
um padrão baseado no Apocalipse, já que o quarto anjo «tocou a sua
trombeta, e foi ferida a terça parte do Sol, e a terça parte da Lua, e a terça
parte das estrelas, para que a terça parte deles se escurecesse, e a terça
parte do dia não brilhasse...» (8:12). Malaquias morre de
um veneno misterioso que parecia ter o poder de mil escorpiões, e
Guilherme convence-se mesmo de que o padrão é válido, ainda que lhe
pareça algo problemática a referência a escorpiões na descrição do quinto
anjo com a quinta trombeta, visto o texto do Apocalipse falar
de gafanhotos «que tinham caudas semelhantes às dos escorpiões, e
aguilhões nas suas caudas» (9:10).
Na altura em que o corpo de
Malaquias é descoberto, já Guilherme tinha deduzido que só estavam a
morrer os que sabiam grego (uma conclusão correcta, a partir dos factos que ele
desenterrara) e que o padrão das mortes na abadia seguia o do Apocalipse (uma
conclusão falsa mas justificada pelos factos à sua disposição). Jorge
de Burgos vem de Espanha, e como Guilherme sabe (correctamente)
que a maior parte dos comentários medievais importantes sobre o
Apocalipse também provém de Espanha -- incluindo um, belíssimo, escrito no
século VIII pelo Beato de Liébana, que o próprio Eco
estudou --, parte naturalmente do princípio de que é Jorge quem, qual
Moriarty, está por detrás das mortes. Esta conexão espanhola com o Apocalipse,
mais a circunstância de o próprio Jorge proferir um dramático sermão
baseado em referências apocalípticas (precisamente o padrão dos sete
anjos e das suas trombetas) no capítulo «Completas» do «Quinto Dia», acabam por
convencer Guilherme de que os assassínios na abadia seguem um padrão
do Apocalipse (inferência falsa) e de que Jorge é o suspeito mais óbvio
(inferência verdadeira, mas pelas razões erradas). Quando a sexta vítima, o
próprio abade, morre sufocado na estreita passagem, depois de
ter sido atraído ao labirinto por Jorge, parece haver uma coincidência
com a profecia que fala de muitas coisas, entre elas, de cavaleiros que matam
com fogo e fumo e enxofre saídos das bocas dos cavalos (9:18). Finalmente,
depois de Guilherme-Sherlock enfrentar Jorge-Moriarty no labirinto da
biblioteca, consegue pôr a vista na única cópia manuscrita ainda existente do
tratado de Aristóteles sobre a comédia, que se encontra num volume encadernado
que reúne textos em árabe, siríaco, latim e (evidentemente) grego. Jorge impede
Guilherme de salvar esta obra inestimável pondo-se a comer as páginas do
manuscrito, que envenenara para impedir os que o lessem de sobreviverem à
experiência de terem lido. Na luta que se seguiu, Jorge morre, e a
abadia mais a sua magnífica biblioteca, incluindo o manuscrito de Aristóteles,
são destruídos pelo fogo. Por ironia, precisamente quando Guilherme se apercebe
de que esteve enganado ao seguir um padrão de crimes
baseado num criminoso assumido que seguia um padrão existente no Apocalipse, a
morte de Jorge confirma esse padrão: o último anjo do Apocalipse (10:9-10) fala
de João, o autor assumido da obra, que come um pergaminho que um anjo
lhe dá e que «na minha boca era doce como mel; e, havendo-o comido, o meu
ventre ficou amargo».
Enquanto o padrão que Guilherme julga
ter descoberto parece revelar uma mente arrumada ou uma trama racional por
detrás de acontecimentos aparentemente irracionais, a crença na existência
dessa mente ou trama tem origem nos erros cometidos quando efectua as abduções
ou inferências, na sua qualidade de detective-semiótico. A morte de Adelmo, que
é quando começa o padrão, resulta de suicídio e é
causada pelo remorso pela sua homossexualidade, e não por homicídio.
É Malaquias, e não Jorge, quem mata Severino. Inicialmente, Jorge nunca baseou
qualquer das suas acções num padrão literário extraído do Apocalipse, mas
depois da quinta morte convenceu-se, tal como Guilherme, de que esse padrão
estava a actuar como parte de um plano divino para punir os seus inimigos e
aqueles que pretendiam divulgar as teorias da comédia de Aristóteles
e minar a autoridade e os valores religiosos estabelecidos e tradicionais. Na
realidade, só é possível discernir o padrão do Apocalipse ignorando quase
intencionalmente grande parte dos «pormenores» das descrições
dos sete anjos e das suas sete trombetas. É preciso concentrarmo-nos apenas nos
pormenores que se ajustam a «um padrão já preexistente» na mente do
investigador (neste caso, Guilherme) para que se possa ver nos crimes o reflexo
do último livro da Bíblia. Com efeito, Guilherme construiu uma hipótese
inferencial -- uma abdução -- que falhou rotundamente
quando confrontada com a realidade. Que ele acabasse por resolver os crimes foi
mera sorte, face aos resultados desastrosos da sua investigação -- a
destruição de toda a abadia, incluindo o valiosíssimo
manuscrito -- sobre que felicitá-lo.
Fiel às suas propensões filosóficas,
Guilherme admite o seu erro:
«Não havia uma trama», disse
Guilherme, «e eu descobri-a por engano... Nunca duvidei da verdade dos
signos, Adso, são a única coisa de que o homem dispõe para se
orientar no mundo. Aquilo que eu não compreendi foi a relação entre os signos.
Cheguei até Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os
delitos e, no entanto, era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor
de todos os crimes, e descobrimos que cada crime tinha no fundo um
autor diferente, ou então nenhum. Cheguei a Jorge perseguindo o desígnio de uma
mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio algum... bem devia saber
que não há uma ordem no universo.» Guilherme continua a confessar tristemente o
seu fracasso e faz uma referência anacrónica a um pensador
alemão -- supostamente, um compatriota de Adso. Mas, na realidade,
trata-se de uma citação famosa do Tractatus Logico-Philosophicus, de
Ludwig Wittgenstein:
«A ordem que a nossa mente imagina é
como uma rede, ou uma escada, em que se constrói para alcançar
qualquer coisa. Mas depois deve-se deitar fora a escada, porque se
descobre que, se acaso servia, era privada de sentido. ‘Er muoz gelichesame die
Leiter abewerfen, sô Er an ir ufgestigen ist’. Diz-se assim?
-- Soa assim na minha língua. Quem o
disse?
-- Um místico da tua terra. Escreveu-o
em qualquer parte, não me recordo onde. E não é necessário que alguém um dia
encontre esse manuscrito. As únicas verdades que servem são instrumentos para
deitar fora.»
As abduções de Guilherme pressupõem a
existência de ordem e desígnio no seu mundo e no universo. Como observou um
crítico perspicaz, o leitor comum de O Nome da Rosa é
igualmente levado a aceitar as hipóteses ou inferências erróneas de Guilherme
como parte das brilhantes percepções de um mestre detective por variadas
razões: porque os leitores, em geral, estão habituados a procurar ordem e
esquemas na narrativa; e, sobretudo, porque os leitores de romances policiais
ou de mistério clássicos apreciam uma tradição de enredos intricados com crimes
e que envolvem padrões complexos. Por exemplo, em The ABC Murders
de Agatha Christie há uma série de assassínios que seguem um esquema
alfabético; os crimes de Ten Days Wonder, de Ellery Queen,
seguem os Dez Mandamentos; os de The Benson Murder Case, de
S.S. Van Dine, baseiam-se em cantigas de embalar; e assim por diante.
Infelizmente, a vida raramente segue
quer as regras da ficção policial, quer as da teoria semiótica,
e ao mostrar que Guilherme falha espectacularmente, quer
como detective, quer como inventor de abduções semióticas,
Eco deseja sublinhar até que ponto podem ser realmente perigosas as nossas
assunções de ordem em relação ao universo. Também me parece que a citação de
Wittgenstein visa informar-nos de que Eco já não acredita que a semiótica
represente uma disciplina mestra que tudo abarca. Tal como a escada que é
posta de lado quando o filósofo atinge o seu objectivo, a semiótica representa
um instrumento útil na busca de uma verdade contingente e limitada, mas que
nunca deve ser confundido com a própria Verdade.
Como vimos, o episódio de Brunello
define o cenário para o duplo desígnio de Eco em O Nome da
Rosa: sugere ao leitor em geral que acaba de abrir um «whodunit»
consumível; e promete ao estudioso e aos «raros privilegiados» um discurso
erudito sobre a metafísica e a linguística. No decurso das suas investigações,
Guilherme descobre uma mensagem numa cifra derivada de um alfabeto zodiacal. É
sem dúvida a chave para o «Finis Africae», a zona do labirinto da
biblioteca onde Jorge esconde o único exemplar da teoria da comédia de
Aristóteles, que foi a verdadeira causa das mortes ocorridas na abadia. No
estábulo da abadia, próximo desse mesmo Brunello que foi objecto da
primeira e aparentemente brilhante abdução de Guilherme, Adso evoca o latim
comicamente incorrecto do infortunado Salvador, entretanto descoberto pelo
inquisidor Bernardo Gui. Salvador exprime-se numa confusa algaraviada
de todas as línguas europeias e clássicas conhecidas, embora não fale com rigor
ou coerentemente nenhuma delas. Uma vez, tinha falado a Adso de
«tertius equi», querendo dizer «o terceiro cavalo». Mas o que na realidade
dissera, ignorante da gramática latina como era, tinha sido «o terceiro do
cavalo». Como Adso explica:
«Nada, recordava-me do pobre Salvador.
Queria fazer sabe-se lá que magia com aquele cavalo, e no seu latim designava-o
como ‘tertius equi’. Que seria o u.
-- O u? perguntou
Guilherme, que tinha seguido o meu devaneio sem lhe prestar muita atenção.»
-- Sim, porque tertius equi
quereria dizer não o terceiro cavalo mas o terceiro do cavalo, e a terceira
letra da palavra cavalo é o u. Mas é uma tolice...
Guilherme olhou para mim e no escuro
pareceu-me distinguir-lhe o rosto alterado:
-- Deus te abençoe,
Adso! -- disse. -- Mas decerto, ‘suppositio materialis’, o
discurso assume-se de dicto e não de re... Que estúpido que eu sou!»
É duvidoso que o leitor comum tenha
seguido esta corrente de raciocínio completamente. Mas a referência de
Guilherme em latim à «suppositio materialis» é uma referência erudita
a uma das teorias de Guilherme de Occam, e a frase pode ser assim interpretada:
«Mas decerto, a suposição material, o discurso, assume-se pelo dito, e não pela
coisa que representa.» Postos em termos filosóficos e não narrativos os erros
de Guilherme e a sua incapacidade de compreender os acontecimentos ocorridos na
abadia baseiam-se num equívoco acerca da linguagem. A linguagem não se refere
necessariamente a alguma coisa no mundo «exterior», a
algo concreto que esteja numa relação de um-a-um com a palavra que é um signo;
a linguagem também pode ser «meta-referencial» e referir-se
«a si própria», da mesma maneira que O Nome da Rosa é
simultaneamente um romance e um livro que se refere a e é constituído por
muitos romances. Assim, o leitor instruído não ficará surpreendido ao descobrir
que a frase latina pronunciada por Guilherme no seu momento de epifania provém
da Summa Totius Logicae, de Guilherme de Occam (1, 63, 67), na qual
o filósofo -- de quem a princípio Eco desejara fazer o protagonista
do seu romance -- argumenta que a suposição material ocorre quando um
termo está no lugar da palavra oral ou escrita, e não daquilo que significa.
Que «tertius equi» possa referir-se à terceira letra do
substantivo «equus» leva Guilherme a aperceber-se subitamente de que
a sua cifra que abrirá o caminho para o Finis Africae se refere não a
outras coisas mas a outras letras do alfabeto nas palavras que se referem a
coisas. Assim, a misteriosa expressão «primum et septimum de quatuor» («o
primeiro e o sétimo dos quatro») refere-se não a uma coisa específica, mas à
primeira e sétima letras do número quatro na expressão gravada sobre o espelho:
«Super thronos viginti quatuor!» («os vinte e quatro anciãos que estão
assentados nos seus tronos!»). Quando Guilherme e Adso carregam na primeira e
na sétima letras da palavra latina «quatuor», a misteriosa passagem
abre-se e entram sem dificuldade na câmara proibida. Esta descoberta acabará
por levar à destruição da abadia e à perda do único exemplar do manuscrito de
Aristóteles. Guilherme e Adso têm a duvidosa satisfação de concluir que Jorge
era o génio do mal por detrás de alguns, mas não de todos, os acontecimentos
que ocorreram ao longo do romance. O insucesso da sua investigação constitui
uma rejeição da tradição literária do detective engenhoso e infalível. E Eco
utiliza o fracasso dos seus dois detectives medievais para lançar um véu
pós-moderno de dúvida não apenas sobre a semiótica como disciplina mestra capaz
de interpretar todas as facetas da cultura humana mas, também, sobre o poder da
própria razão.
A extraordinária qualidade de O
Nome da Rosa reside em um livro como este, repleto de obscuras
citações em latim, de erudição medieval e de questões filosóficas complexas,
ter igualmente podido tornar-se num «best-seller» tão espectacular e
duradouro. A estratégia narrativa de Eco, que é como uma declaração
pós-modernista explícita, visava um casamento de públicos e temas populares com
temas destinados a uma audiência como a de uma assembleia universitária. Grande
parte do sucesso de Eco deve ser atribuída à sua escolha inteligente de uma voz
que narra, a de Adso, o noviço de Guilherme de Baskerville, observador atento
mas ingénuo de tudo o que se passa no romance. Com oitenta anos, Adso evoca os
acontecimentos da sua juventude (quando tinha 18 anos).
Nas palavras de Eco, pretendia contar a
história pela boca de alguém que passasse por entre os acontecimentos, que os
registasse a todos com a fidelidade fotográfica de um adolescente, mas que não
os compreendesse (nem os haveria de compreender nunca a fundo, nem sequer
quando já fosse velho, tanto que depois acabaria por preferir um
escape para o nada divino que não era o que o seu mestre lhe tinha ensinado).
Fazer compreender tudo através das palavras de alguém que não compreendesse
nada.
Eco observa igualmente, e com visível
satisfação, que os leitores cultos gostaram menos do seu narrador, ao
passo que os leitores relativamente pouco sofisticados se identificaram
com a ignorância, a inocência e a relativa falta de compreensão das coisas da
parte de Adso. Neste sentido, os leitores comuns de Eco «apreciaram» a
história sem se sentirem culpados nem terem de correr à enciclopédia para
verificarem datas e fontes. É precisamente a falta de sofisticação intelectual
de Adso, tal como antes dele a de Watson, nos mistérios do Holmes de Conan
Doyle, que apela para o leitor médio.
Há um certo número de estruturas
narrativas inteligentemente construídas que separam o leitor contemporâneo dos
acontecimentos narrados no romance. Primeiro, Adso relata a sua história sob a
forma de manuscrito, evocando os acontecimentos quando já é velho, na
penúltima década do século XIV. O manuscrito é publicado por
Dom J. Mabillon, no século XVIII. A edição de Mabillon é traduzida para
francês pelo abade Vallet e publicada em 1842. E supostamente é essa tradução
de Vallet que é transcrita em 1968 pelo nosso
narrador -- chamemos-lhe Umberto Eco, por razões de conveniência,
embora a teoria da narrativa contemporânea nos proíba identificá-lo com a
pessoa concreta chamada Umberto Eco. Como é dito no prefácio, é «naturalmente,
um manuscrito». Eco recorda-nos imediatamente a longa e gloriosa tradição das
narrativas de ficção baseadas em manuscritos imaginários -- Ariosto,
Cervantes, Manzoni --, que ele próprio segue agora.
Adso também fornece os únicos elementos
românticos do romance, através de um encontro fugaz com uma jovem camponesa sem
nome que faz amor com ele, experiência relatada mediante a referência a uma
série de textos religiosos que Eco foi buscar a diversas fontes --
designadamente, o Cântico dos Cânticos e os seus comentários
medievais, e a descrição mística de Santa Hildegarda de Bingen no arrebatamento
extático. Até o relato de Adso do momento em que acorda a seguir à sua primeira
e única experiência de amor físico nos remete para um livro -- desta
vez trata-se de uma referência metaliterária, visto que a passagem em
questão é o Canto V do Inferno de Dante, que fala de
Paolo e Francesca se terem apaixonado por causa de um livro que leram: «Lancei
um urro e caí como cai um corpo morto». Porém, na descrição que Eco faz desta
recordação, em italiano -- «Lanciai un urlo e caddi come cade un
corpo morto» --, talvez ressoe também o verso mais famoso do poema,
em que Dante, o peregrino e poeta-narrador de A Divina Comédia, desmaia,
depois de ter escutado o que ele interpreta (erradamente) como a
tragédia de Paolo e Francesca, quando devia condenar com a justa indignação de
um profeta os dois amantes -- ponto de vista que Dante-o peregrino acaba
por assumir durante a sua longa viagem pela outra vida.
Neste ponto da aventura do peregrino pela outra vida, Dante-o
peregrino ainda não compreendeu a natureza do mal e é quase tão ingénuo como Adso
sempre o será. Mas em contraste com aquele, que aprenderá com as suas
próprias experiências, Adso nunca alcançará verdadeiramente o significado dos
ensinamentos ou do exemplo de Guilherme de Baskerville.
Adso também nunca vem a saber o nome da
amada, a mulher com quem teve a única experiência sexual da sua vida: «Do único
amor terreno da minha vida não sabia, e jamais soube, o nome.» Este
importante pormenor a respeito de Adso, o papel relativamente menor que as
mulheres desempenham no romance (o que não surpreenderá muito, num romance
passado em abadias medievais) e a circunstância de este começar com a
referência do narrador a alguém com quem viajava (presume-se que uma mulher)
lhe ter subtraído o único exemplar da tradução do século XIX do manuscrito de
Adso, imediatamente a seguir à fuga de Praga quando da invasão pelas tropas
soviéticas, em 1968 --, todos estes factos levaram algumas críticas
feministas a atacar Eco pela sua posição supostamente sexista. Mas claro que há
aqui exagero e uma distorção ideológica da perspectiva de Eco.
O objecto do desejo de Adso é
inatingível (trata-se tão-só do primeiro de muitos objectos de desejo
inatingíveis nos três romances de Eco, como veremos) e essa qualidade de
inalcançável é realçada pela circunstância de ele não conseguir saber o nome da
jovem e nunca vir a saber por que é posteriormente detida e acusada de
bruxaria. Esse objecto de desejo sem nome é-nos recordado no fim do romance,
quando várias décadas mais tarde Adso, cansado do mundo, velho, desiludido e
decerto não mais sábio do que antes, profere a frase final, da qual deriva o
seu problemático título: «Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus»
(«A rosa de ontem perdura no seu nome, nós conservamos nomes vazios».
Também aqui, Porquê «O Nome da Rosa?» lança alguma luz sobre a
razão deste título intrigante:
«A ideia do Nome da Rosa ocorreu-me
quase por acaso e agradou-me porque a rosa é uma figura simbólica tão densa de
significados ao ponto de já quase não ter mais nenhum: ‘rosa mística,
rosa viveu o que vivem as rosas, a guerra das duas rosas, uma rosa é uma rosa é
uma rosa é uma rosa, os rosa-cruz, obrigado pelas belíssimas rosas, rosa fresca
e perfumada’. O leitor ia ficar justamente despistado, sem poder optar por uma
interpretação; e mesmo que tivesse captado as possíveis leituras nominalistas
do verso final, teria acabado então de chegar ao fim, depois de ter feito
sabe-se lá que outras opções. Um título deve confundir as ideias e não
orientá-las.»
Jovem noviço ou monge já
idoso, Adso nunca aprendeu a lição fundamental que Guilherme lhe
ensinou -- que a linguagem e a vida são tão ricas de
significados que devem ser tratadas como a imagem de Eco da rosa,
como uma concha vazia dentro da qual podem ser vertidos múltiplos significados.
Segundo Adso, Guilherme «não estava de modo nenhum interessado na verdade», mas
«divertia-se a imaginar o maior número de possíveis que fosse possível»,
enquanto ele próprio tomava sempre partido «pela sede de verdade que animava
Bernardo Gui» -- e, poderíamos acrescentar, Jorge de Burgos.
E, no entanto, é precisamente contra a
sede fanática de verdade e o seu corolário -- a procura ultrazelosa
de hereges que negam a verdade quando ela é conhecida -- que O Nome da
Rosa é dirigido. O próprio autor admite que a sua frase favorita é
esta, trocada entre Adso e Guilherme: «O que é que mais vos aterroriza na
pureza? -- perguntei. -- A pressa -- respondeu Guilherme.» Pressa,
intolerância, a convicção de que há apenas uma Verdade e que um único
interlocutor compreende essa Verdade única -- todas estas assunções
estão por detrás do mundo representado neste romance. É um mundo que Eco
conhece talvez melhor que muitos outros eruditos, uma cultura que lhe
proporcionou modelos que vieram de todo o lado, da filosofia à
semiótica e à teoria da literatura. Porém, apercebe-se de que não é um mundo
muito amável para com pensadores eclécticos como ele, que estão convencidos,
pelo contrário, de que não há verdades certas; de que ninguém, nem nada,
igreja, governo, ou filosofia, é guardião de uma ortodoxia autêntica,
seja ela qual for; e de que as disciplinas da linguística e da semiótica,
quando aplicadas devidamente, fornecem realmente alicerces teóricos para a
tolerância e a suspensão de juízos definitivos.
Por O Nome da Rosa ser,
em última análise, um romance sobre a liberdade, sobre a tolerância e sobre o
respeito pela diferença, calha bem que o livro perdido que Guilherme
procura e Jorge esconde seja o tratado de Aristóteles sobre a comédia. A
comédia, como Jorge de Burgos bem percebeu, é sempre -- nas mãos
de artistas de génio, como Aristófanes, Rabelais, Ariosto, Shakespeare,
Molière, Mozart, ou Fellini -- uma força subversiva capaz de minar a
autoridade e os costumes estabelecidos. E a melhor protecção, e às vezes a única,
da humanidade perante o fanatismo de toda a espécie. No fim do romance, Eco põe
na boca de Guilherme uma eloquente afirmação desta posição:
«Teme, Adso, os profetas e aqueles que
estão dispostos a morrer pela verdade, que de costume fazem morrer muitíssimos
com eles, frequentemente antes deles, por vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma
obra diabólica porque amava de modo tão lúbrico a sua verdade que ousava tudo
com a condição de destruir a mentira. Jorge temia o segundo livro de
Aristóteles porque ele ensinava talvez a deformar deveras o rosto de toda a
verdade, a fim de que não nos tornássemos escravos dos
nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer
rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é
aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade.»
Assim,
a última frase em latim que tanto intrigou tantos leitores, apesar disso
fascinados por este romance, fornece na realidade um exemplo concreto de como
uma palavra ou um signo, como «rosa», pode conter em si uma incrível
variedade de significados, associações históricas, simbolismos e, contudo,
continuar a ser um mero signo, e nunca uma verdade definitiva. Outros verão
nesta passagem a aceitação pessimista de que a humanidade está condenada a
permanecer para sempre fora do alcance de uma única Verdade inequívoca.
Todavia, Eco tinha-se apercebido de que o princípio semiótico da semiose
ilimitada pode também implicar uma expansão da liberdade humana. E que esta
constatação se tenha dado com a criação de um dos romances mais populares do pós-guerra
confirma o que vem expresso na sobrecapa da edição italiana original de O
Nome da Rosa: «Se escreveu um romance, é porque descobriu,
chegado à maturidade, que essas coisas sobre as quais não
se pode teorizar, devemos narrá-las.»