As
filosofias da história tomaram forma no século XVIII, na
época das luzes. Nascem então as ideias do devir da matéria,
da evolução das espécies, do progresso dos seres humanos.
Pensadores como Voltaire, Kant ou Condorcet acreditam num movimento ascendente
da humanidade em direcção a um Estado ideal. No século
XIX, sob o impacte da Revolução Francesa e de outras revoluções
na Europa, florescem filosofias da história, Quer sejam religiosas
ou ateias, optimistas ou pessimistas, têm todas em comum descobrir
um sentido para a história. As doutrinas de Hegele de Comte representam
modelos do género: organizam os períodos, apreciam as mudanças
ou as permanências, interpretam a evolução geral do
mundo com o auxílio de um princípio único — a
marcha do Espírito ou a lei dos três estados. De urna certa
maneira, Marx, que faz do materialismo histórico uma teoria
científica ligada a uma prática revolucionária, não
sai inteiramente do âmbito da filosofia da história na medida
em que, para ele, a evolução da humanidade permanece orientada
para um fim. No século XX, os historiadores da escola metódica,
depois da escola dos «Annales» instruiram o processo das filosofias
da história e, globalmente, venceram. No dia seguinte à Segunda
Guerra, R. Aron é obrigado a admitir que «a incerteza da documentação,
a imensidade das visões, a pretensão a submeter a complexidade
do real a um esquema rígido, todos estes efeitos que se emprestam
aos sistemas clássicos, passam por características da filosofia
da história». A partir de então, os historiadores profissionais
já só se autorizam a uma reflexão de ordem epistemológica
sobre o andamento do conhecimento histórico. Contudo, em pleno século
XX, existem ainda filosofias da história: são as interpretações
cíclicas do destino das civilizações como as que são
formuladas por O. Spengler ou A. Toynbee; ou então os prolongamentos
do pensamento marxista, como as teorias que G. Lukács exprime em
História
e Consciência de Classe.
l.
Kant e as Luzes
O
pensamento teleológico — que postula um sentido à história
—nasce num texto de Platão: o Fédon. No seu diálogo,
Platão faz enunciar por Sócrates as seguintes afirmações:
«a) há
ordem no universo; b) tudo é ordenado tendo em vista o melhor
resultado; c) uma inteligência ordenadora aplica ao mundo
esta concepção; d) o melhor situa-se ao nível
intelectual e não material; e) existe um Verdadeiro, um Bem,
um Belo em si». Mantidas todas as proporções, Bossuet
esboça uma teleologia — a bem dizer uma teologia — da
história quando afirma «que Deus fez o encademento do universo
[...] e quis que o curso das coisas humanas tivesse a sua continuação
e as suas proporções; [...] que a divina Providência
preside ao destino dos Impérios, ao seu desenvolvimento e à
sua queda». (Discurso sobre a história universal). Do
mesmo modo, Leibniz interroga-se sobre a tendência para o meio: sublinha
a contradição entre a existência de um deus criador,
absolutamente sábio e todo-poderoso, e a manifestação
constante do mal — as guerras, as epidemias e outras catástrofes;
todavia, conclui na racionalidade da escolha divina: «Se tivéssemos
condições para compreendermos a harmonia universal, veríamos
que aquilo que somos tentados a censurar foi digno de ser escolhido»...
«Vivemos no melhor dos mundos possíveis» (Ensaios
de Teodiceia).
Contudo,
a filosofia das Luzes é muitas vezes an-histórica. A este
respeito, a obra de J.-J.Rousseau
é significativa. Em princípio, uma teoria da história
é esboçada no Discurso sobre a origem da desigualdade.
J.-J.
Rousseau parte de uma consideração moral: «Quando se
observa a constituição natural das coisas, o homem parece
evidentemente destinado a ser a mais feliz das criaturas; quando se raciocina
segundo o estado actual, a espécie humana parece de lamentar. Há
grande aparência de que a maior parte dos seus males são obra
sua.» Estabelecida esta constatação, o filósofo
vai, por uma atitude regressiva, despojar o homem de tudo o que lhe veio
do exterior para remontar até ao estado de natureza. Nesta fase
(que é uma ficção e não uma realidade), o homem
vive numa situação não conflitual, em estado de equilíbrio
e de harmonia. E no momento em que o equilíbrio é rompido
entre as faculdades e as necessidades que o homem entra na história,
que deve trabalhar. « À medida que o género humano
se alargou, as dificuldades multiplicaram-se com os homens [...] Anos estéreis,
Invernos longos e rudes, Verões ardentes exigiram deles uma nova
indústria.» A partir de então, a humanidacle evolui
para uma sociedade cada vez mais organizada; pouco a pouco, aparece a propriedade;
cavam-se desigualdades entre os ricos e os pobres; e instituições
jurídicas vêm sancionar relações de força.
É esta, em grandes traços, a passagem do estado natural ao
estado civil. Na reflexão de Rousseau, a história não
passa de uma abstracção (o negativo da natureza) que é
colocada ao serviço de uma demonstração moral.
O
pensamento de Kant mistura uma teleologia oriunda de tradição
cristã e uma reflexão ética própria da era
das Luzes. Deste modo Kant reconcilia a herança de Bossuet e o legado
de Rousseau, como mostra esta passagem: «A história da natureza
começa pelo bem, porque ela é obra de Deus; a história
da liberdade começa pelo mal, porque ela é obra do homem.
No que respeita ao indivíduo que, fazendo uso da sua liberdade,
só pensa em si mesmo, houve perda desta por altura desta mudança.
No que respeita à natureza, preocupada em orientar o fim que reserva
ao homem tendo em vista a sua espécie, foi um ganho. O indivíduo
tem portanto razão em inscrever à sua conta como seu próprio
erro todos os males que sofre.., mas, ao mesmo tempo, como membro de uma
espécie, tem razão para admirar a sabedoria da ordenação
[...]» (Conjecturas sobre os inícios da história
humana). Diferentemente de Rousseau, que concebe uma história
fictícia, Kant quer pensar «a história real»...
«compreendida de maneira empírica». Mas a história
do filósofo não é exactamente a do historiador; continua
a ser uma história do sentido da vida humana. Para Kant, a filosofia
da história afirma-se como uma parte da Moral.
Kant
exprimiu a sua reflexão sobre a história numa série
de opúsculos, nomeadamente A Ideia de uma história
Universal sob um ponto de vista cosmopolítico (1784). A hipótese
de Kant é que, no curso absurdo dos assuntos humanos, na acumulação
dos factos da história empírica, existe uma finalidade. Todavia,
esta finalidade, nenhuma inteligência suprema a concebeu; nenhuma
sociedade humana a quis; corresponde a um «plano da natureza».
Paradoxalmente, a natureza realiza os seus fins através dos homens:
«Os indivíduos e mesmo os povos inteiros não pensam
que ao perseguirem os seus fins particulares em conformidade com os seus
desejos pessoais e muitas vezes em prejuízo de outrem, conspiram
sem o saberem com o desígnio da natureza» (p. 60). O poder
de que o homem está dotado para realizar os seus projectos é
a razão. Portanto, o plano previsto para o homem não é
que atinja o estado de natureza mas que atinja o estado de cultura (a este
respeito Kant opõe-se a Rousseau). Convém notar que a natureza
é avara das suas dádivas: se confia a razão à
humanidade é porque não tem, para esta, nenhuma função
precisa.
Quando
Kant fala do homem, significa a espécie e não o indivíduo.
Com efeito, a natureza precisa de uma linhagem interminável de gerações
para atingir os seus fins. Também a morte não passa de um
acidente para o indivíduo mas não toca no desenvolvimento
da espécie. Mais, ao limitar a sua vida, a natureza obriga o indivíduo
a fazer um esforço, a empenhar-se no trabalho. A consciência
do seu fim obriga o indivíduo a sair do seu torpor, leva-o a agir.
Kant sublinha nitidamente que o indivíduo está ao serviço
da espécie: «O que, nos sujeitos individuais, nos choca pela
forma confusa e irregular, poderá todavia ser conhecido no conjunto
da espécie sob o aspecto de um desenvolvimento contínuo,
apesar de lento, das disposições originais» (p. 59).
O filósofo precisa ainda: «No homem — enquanto única
criatura dotada de razão na Terra — as disposições
naturais que visam a utilização da sua razão não
devem ter recebido o seu desenvolvimento completo no indivíduo,
mas apenas na espécie» (afirmação 1). Através
da obra de Kant, o postulado da vida eterna da espécie humana afirmado
na filosofia da história desempenha o mesmo papel que o postulado
da imortalidade da alma na filosofia moral.
A
natureza deu ao homem «o impulso para a humanidade», mas não
a sua humanidade. «Ao munir o homem da razão, a natureza indicava
claramente o seu plano... O homem não devia ser governado pelo instinto
nem secundado por um conhecimento inato; devia tudo tirar de si mesmo»
(afirmação 3). Por conseguinte, a natureza deixou ao homem
o cuidado de inventar a sua vida material, de satisfazer as suas necessidades
e de assegurar os seus tempos livres, mas também de extrair de si
mesmo «a sua inteligência, até à bondade do seu
querer». Nestas condições, o homem deve viver em sociedade.
E então que se encontra colocado numa situação contraditória:
por um lado, um desejo leva-o a viver com outros homens, a criar laços
sociais; por outro, um impulso condu-lo a isolar-se, a ficar só.
Aquilo a que Kant chama «a inclinação para entrar em
sociedade dobrada da repulsa para o fazer». Na realidade, o antagonismo
entre a sociabilidade e a insociabilidade é o meio de que a natureza
se serve para levar a cabo o desenvolvimento de todas as disposições
da humanidade. A discórdia ao nível da espécie não
é verdadeiramente negativa, mas mais um factor de progresso. O destino
do homem não é a felicidade a todo o custo. Nesta perspectiva,
a hostilidade entre os indivíduos obriga-os a saírem de um
estado de beatitude mais ou menos primitiva e a empenharem-se na aplicação
de tarefas difíceis mas grandiosas.
O
problema essencial com que a razão vai ser confrontada na história
é a realização da sociedade civil, «administrando
o direito de maneira universal». Kant observa: «Pode encarar-se
a história da espécie humana, por grosso, como a realização
de um plano escondido da natureza para produzir uma constituição
política perfeita» (afirmação 8). Trata-se portanto
de edificar uma organização civil tal como as leis podem
regular os antagonismos e instituir as liberdades. Ora este empreendimento
complexo esbarra com dois obstáculos. O primeiro escolho é
a questão da autoridade. Dada a dualidade da natureza humana dividida
entre a aspiração ao bem e a atracção pelo
mal, é preciso impor aos homens «um mestre que ataque
as vontades particulares», necessariamente egoístas. Contudo,
este mestre, que é ele mesmo um homem, deve comportar-se como um
chefe justo, respeitando os outros homens. Imagina-se que não é
fácil descobrir um indivíduo com qualidades tão excepcionais.
O segundo escolho é o problema do entendimento entre as nações.
Os povos despedaçam-se, agridem-se, fazem guerras, muitas vezes
mortíferas para as pessoas e desastrosas para os bens. Todavia,
Kant não se comove: interpreta os conflitos «como outras tantas
tentativas para estabelecer novas relações entre Estados».
Dos confrontos insensatos a que os homens se entregam acabará por
sair «uma comunidade civil universal».., que administrará
o direito internacional de maneira que o mais pequeno Estado possa atingir
a garantia da sua segurança... de uma força unida, e de um
acordo das vontades».
Como
se pode supor, as noções de um soberano justo, arbitrando
entre os interesses particulares, e de uma «sociedade das nações»,
garantindo a segurança dos Estados, são «ideais»
no sentido Kantiano, objectivos morais que a humanidade deve fixar-se,
empenhar-se em realizar. Quanto ao imediato, a espécie humana ainda
não atingiu a «constituição perfeita»;
está apenas «em marcha para a era das Luzes». O tempo
do Aufklarung não é evidentemente o paraíso
reencontrado; parece-se mais com uma «idade de maturidade»,
em que a espécie humana começa a libertar-se das tutelas,
incluindo a dominação divina. Do andamento para as Luzes,
Kant percebe sinais anunciadores: a extensão das liberdades económicas,
civis, religiosas na Inglaterra, na Alemanha ou na Austria no final do
século XVIII; e, no mesmo momento, a Revolução em
França. A filosofia celebra este acontecimento em termos entusiastas:
«Um tal fenómeno na história do mundo nunca se esquecerá,
porque descobriu no fundo da natureza humana uma possibilidade de progresso
moral de que nenhum homem político tinha até então
desconfiado». (O Conflito das faculdades, 1798).
2.
Hegel e a dialéctica
Georg
W. F. Hegel nasceu em Estugarda em 1770. O seu pai era funcionário
das Finanças. Faz estudos secundários em Estugarda, inicia
estudos de teologia em Tubingen, mas renuncia a tornar-se pastor. Continua
marcado durante toda a vicia pela formação religiosa luterana.
Hegel vive das suas actividades de preceptor em Berna e em Francoforte
entre 1793 e 1800; ensina na universidade de Iena de 1801 a 1806; é
redactor na Gazeta de Bamberg em 1806-1807; dirige o liceu de Nuremberga
de 1808 a 1816. E casado, pai de família. Durante esta ascensão
na carreira docente, Hegel assimila as obras filosóficas dos seus
contemporâneos — Kant, Fichte e Schelling. Como toda a élite
intelectual
alemã, Hegel é influenciado pelo pensamento das Luzes, admira
a Revolução Francesa e espera muito da sua difusão
através da Europa graças às conquistas napoleónicas.
O choque da Batalha de Iena (Outubro de 1806), que desperta em Fichte um
nacionalismo prussiano virulento, não abala em Hegel a confiança
nas «ideias francesas». Passada a tormenta das guerras, Hegel
consegue uma cadeira de Filosofia em Heidelberga em 1817; depois substitui
Fichte na cadeira de Filosofia em Berlim, de 1818 a 1831. Aí, acede
à notoriedade, rodeia-se de discípulos — Von Henning, E,
Gans, B. Bauer, etc.,—, apresenta-se como teórico do Estado prussiano.
Morre levado por uma epidemia de cólera, em 1831.
Hegel
pertence inegavelmente ao mundo do
Aufklarung; acredita na força da razão. Dirigindo-se
aos alunos, recomenda-lhes «terem confiança na ciência,
terem fé na razão». Todavia, Hegel continua ligado
à religião; vê na filosofia que professa um desenvolvimento
de protestantismo; é por isso que se propõe elevar a fé
luterana do sentimento subjectivo à certeza racional. Sejam quais
forem as influências que o marcaram, a obra de Hegel aparece como
uma tentativa para constituir um sistema no qual todo o Universo possa
ser pensado. O empreendimento do professor de Berlim apresenta-se sob a
forma de uma ampla dedução que abrange todos os conhecimentos
possíveis. Distinguem-se três secções: 1)a lógica
que trata da ideia abstracta, da formação das categorias
intelectuais; 2) a Filosofia da Natureza que examina a difusão da
Ideia fora de si, no mundo natural; 3) a filosofia do Espírito,
que se interessa pela tomada de consciência do espírito através
da história universal. Ainda Hegel vivo, foram publicadas apenas
três obras: A Fenomenologia do Espírito (1807), A
Lógica, 3 volumes (1812-1817); e A Filosofia do Direito
(1821).
Depois da morte do mestre, alguns dos discípulos — Gans, Marheineke
e outros — transcreveram as suas notas de curso, reviram-nas e fizeram
publicar, sob o nome de Hegel, dezoito volumes, entre os quais A Estética,
A Filosofia da Religião, As Lições sobre a
filosofia da História (entre 1838 e 1845).
O
pensamento de Hegel afirma-se como um idealismo absoluto que supõe
uma identidade entre o sujeito e o objecto, entre o conhecer e o ser. Neste
sentido, Hegel reencontra o «realismo» da Antiguidade abalado
um mornento pelo «nominalismo» da idade Média. Pode
apreciar-se este puro idealismo nesta passagem das Lições
sobre a filosofia da História: «Oespírito
tem justamente em si mesmo o seu centro; não há unidade fora
dele mas encontrou-a, está em si e consigo... O espírito
sabe-se a si mesmo; é o julgamento da sua própria natureza;
é também a actividade pela qual volta a si, se produz assim,
se faz o que é em si. Segundo esta definição, pode
dizer-se da história universal que é a representação
do espírito no seu esforço para adquirir o saber daquilo
que é» (Introdução, p. 27). Nestas condições,
a filosofia da história não poderia dizer o que o mundo deve
ser, a fortiori produzir esse mundo. «A filosofia da história
não significa outra coisa a não ser a sua consideração
reflectida...» A única ideia que a filosofia dá é
que a razão governa o mundo e que, em seguida, «a história
do mundo é o movimento pelo qual a substância espiritual entra
na posse da sua realidade». É difícil imaginar uma
construção mais abstracta: a história do Espírito
confunde-se com a história do Universo.
Hegel,
prolongando Bossuet, acentuando Kant, permanece firmemente numa perspectiva
teleológica: não admite que o mundo seja entregue ao acaso:
«Devemos procurar na história um objectivo universal, o objectivo
final do mundo, não um objectivo particular do espírito subjectivo
ou do sentimento humano. Devemos compreendê-lo com a razão
porque a razão não pode ter interesse em nenhum objectivo
acabado particular, mas apenas no objectivo absoluto.» A realização
perfeita do fim do universo opera-se pelo andamento do Espírito.
«Trata-se portanto do objectivo final que a humanidade persegue,
que o Espírito se propaga no mundo e que realiza levado por uma
força infinita. O seu objectivo é chegar à consciência
de si mesmo, de tornar o mundo adequado a si mesrno.» E a evolução
do Espírito vai no sentido de um progresso. A natureza só
conhece um regresso cíclico das estações; a razão
dirige-se para um fim último: «Na natureza, a ressurreição
não passa da repetição do mesmo, uma história
monótona que segue um ciclo idêntico. Não há
nada de novo debaixo do sol. E diferente em relação ao sol
do Espírito. A sua marcha, o seu movimento não éuma
auto-repetição. O aspecto mutável que o Espírito
reveste é essencialmente um Progresso» (La Raison dans
l’Histoire, edição 10/18, pp. 48, 92 e 95).
Hegel
introduz a dimensão da temporalidade. Na tradição
medieval, o tempo era concebido como uma degradação ontológica.
Na concepção hegeliana, o tempo torna-se uma categoria de
inteligibilidade. «O Espírito manifesta-se necessariamente
no tempo; enquanto não compreender o seu conceito puro» (Fenomenologia
do Espírito, II,
p. 305). O Espírito, actor principal da história, não
toma consciência de si mesmo directamente, mas por um movimento dialéctíco,
por uma operação de ritmo ternário. O movimento dialéctico
comporta três momentos: a tese (o ser); a antítese (o não
ser); a síntese (o devir). Na sua marcha, o Espírito coloca-se
em si, desenvolve-se fora de si, para regressar a si; através destas
mutações, o Espírito atinge uma forma nova, consegue
constituir urna unidade superior: «O Espírito que se forma
amadurece lentamente e silenciosamente até à sua nova figura,
desintegra fragmento por fragmento o edifício do seu mundo precedente...
Este esmigalhamento contínuo que não alterava a fisionomia
do todo é bruscamente interrompido pelo nascer do sol que, num relâmpago,
desenha ainda uma vez a forma do novo mundo» (Fenomenologia do
Espírito, p. 12). Hegel não se limita a enunciar um idealismo
puro, faz corrente no século XVIII; inventa o movimento dialéctico,
que vai dominar o pensamento do século XIX.
Hegel
inspira-se em Kant quando percebe um «plano escondido», escapando
à consciência da espécie humana. A liberdade, realização
pelo espírito da sua própria essência, é a finalidade
absoluta da história. Por que meio a liberdade progride na história?
As acções dos homens derivam dos seus interesses egoístas,
mais frequentemente do que das suas virtudes. Aparentemente, a história
é trágica porque a violência das paixões parece
determinar o curso das questões humanas —as
guerras, as lutas sociais, os conf1itos etáticos, etc. Na realidade,
através das acções dos homens, o Espírito realiza
fins racionais: «Dois elementos intervêm: um é a ideia;
o outro, as paixões humanas; um é a cadeia; o outro é
a trama do grande tapete que a história universal constitui.., apresentando-se
assim sob a forma de essência da vontade da natureza... a necessidade,
o instinto, a paixão, o interesse particular existem imediatamente
por si... Esta massa imensa de querer, de interesse, de actividade constitui
os instrumentos e os meios do génio do Universo para realiza o seu
fim, elevá-lo à consciência e realizá-lo...»
(Lições sobre a Filosofia da história, p. 32).
No limite, a história universal aparece como processo, lento, obscuro,
doloroso pelo qual a humanidade passa do inconsciente para o consciente.
E
então que Hegel avança a ideia de uma «astúcia
da Razão». No curso da história, resulta das acções
dos homens algo diferente do que projectaram, do que sabem ou do que querem.
Os indivíduos julgam realizar os seu próprios fins, defender
os seus interesses; e apenas realizam, sem dar conta disso, um destino
mais amplo que os ultrapassa. A Razão, por uma astúcia, tira
partido do instinto colectivo para fazer avançara humanidade na
via da perfeição. Um caso histórico fará compreender
melhor o mecanismo, No fim da República romana César é
movido pela paixão do poder; acede às principais magistraturas,
ao comando das legiões, ao governo das províncias (tese).
Os seus inimigos — Pompeu, Crassus, etc. —, que têm igualmente ambições
pessoais, erguem obstáculos no caminho; daqui resultam violentas
guerras civis (antítese). César triunfa dos seus rivais,
impõe-se como o único senhor em Roma e instaura o principado
sobre o modelo de uma monarquia helenística (síntese). Durante
este confronto, que põe a ferro e fogo todo o mundo mediterrânico,
os protagonistas foram movidos por forças profundas, sem terem claramente
consciência dos seus objectivos. César criou o império
sem o ter querido explicitamente. A propósito, nota-se como Hegel
concebe o papel dos grandes homens». Na sua opinião, os indivíduos
fora do comum — Alexandre, César, Napoleão, etc. — são
aqueles que o tempo exige», aqueles cujas ambições
e acções correspondem melhor às circunstàncias
históricas (Lições sobre a Filosofia da História,
p.
36).
Em
definitivo, Hegel deixa entrever o objectivo final em direcção
ao qual a Razão guia a humanidade. O filósofo, protegido
da monarquia Prussiana, expôs sobretudo a sua teoria do Estado em
A
Filosofia do Direito (1821 ). A família, a sociedade civil,
o Estado apresentam-se como os três estádios de uma ascensão
para o absoluto. A família é bem soldada por laços
naturais, mas só conhece os seus interesses particulares. A sociedade
civil, a fim de satisfazer as necessidades materiais dos homens, deve organizar
instituições económicas, sociais e jurídicas
— que nem todas podem ser perfeitas. O Estado permite aceder a um nível
superior: a administração, que se apoia na «classe
universal» (os funcionários), consegue conciliar os interesses
privados e os fins gerais. «O Estado é a realidade onde o
indivíduo possui a liberdade e goza dela… O Estado é a vida
verdadeiramente moral porque é a unidade do querer geral... Na história
universal, só pode tratar-se de povos que formam um Estado. Com
efeito, deve saber-se que um Estado é a realização
da liberdade, ou seja do objectivo final absoluto»
(Lições
sobre Filosofia da História, p. 40-41). A conclusão hegeliana
parece muito decepcionante: a longa marcha do Espírito, ritmada
pelos movimentos da dialéctica, culmina na criação
de um Estado moderno, burocrático, que deve incarnar a moral, a
liberdade e a razão, ser a forma última do progresso.
3.
A. Comte e o Positivismo
Augusto
Comte nasceu em Montpellier em 1798. Faz estudos secundários na
sua cidade natal, vai para a capital, entra na Escola Politécnica
em 1814, é expulso por indisciplina em 1816. O jovem tem de ganhar
a vida dando lições de matemática; depois torna-se
secretário de Saint-Simon. E nesta época, entre 1817 e 1824,
que A. Comte «se emancipa das crenças religiosas», adere
às ideias racionalistas e desliza, pouco a pouco, para ideias «socialistas».
A partir de então, durante um quarto de século, A. Comte
edifica a sua grande obra. O Curso de filosofia positiva que, em
cerca de sessenta lições, trata da formação
das ciências e da evolução das sociedades. A publicação
dos seis volumes do «curso», devido a correcções,
complementos, prolongamentos, vai de 1830 a 1852.
Na sua vida privada,
A. Comte conhece graves dificuldades: tem relações penosas
com a esposa, Caroline Massin; sofre de perturbações mentais
que o levam a uma tentativa de suicídio seguida de um internamento
temporário; finalmente, apaixona-se sem êxito por Clotilde
de Vaux, e o seu amor falhado transforma-se em exaltação
mística. A. Comte termina a sua reflexão por duas obras de
tonalidade religiosa: O Catecismo positivista, de 1852, e o Sistemade
política positiva, em 1853-1854. O novo profeta da «religião
da humanidade» morre em Paris em 1857.
Auguste
Comte pode, legitimamente, ser considerado como o «inventor»
da sociologia. O seu mestre — e patrão— H. de Saint Sirnon afirmou
a possibilidade de uma ciência do homem, concebida como uma fisiologia
alargada da orgânica ao social, em O Catecismo dos Industriais
(1823).
A. Comte retoma a ideia de uma ciência da sociedade — a «Física
social» — que seria análoga aos outros ramos da física,
ou, mais amplamente, às ciências da natureza. A Física
social deve ser «a ciência da espécie... percebida como
uma imensa e eterna unidade social». A partir da 47ª lição
de «filosofia positiva», A. Comte dá nome a esse novo
sector do saber: a «Sociologia», e define-a como «a verdadeira
ciência da natureza humana.., e o ponto capital da filosofia positiva».
A acreditar em G. Gurvitch, A. Comte é exactamente o pai da Sociologia:
com efeito, o apóstolo do positivismo pôs em evidência
o carácter irredutível da realidade social; procurou determinar
a posição da Sociologia entre as outras ciências humanas
e em relação às ciências da natureza; pôde
enriquecer a sociologia com as conquistas da história e da etnografia;
finalmente, sentiu a dificuldade metodológica de uma ciência
em que o sujeito e o objecto podem confundir-se, em que um homem se entrega
ao estudo dos outros homens.
Portanto,
segundo A. Comte, a Sociologia é «o estudo positivo do conjunto
das leis fundamentais próprias dos fenómenos sociais».
A dita ciência divide-se em dois ramos segundo se trata de estabelecer
«leis estáticas» — que respeitam à existência
da sociedade — ou de determinar «leis dinâmicas» — que
se referem ao movimento da sociedade. A «Estática social»
seria a teoria da Ordem; a «Dinâmica social», seria a
teoria do Progresso. E a este nível que, a partir da primeira edição
do curso de filosofia positiva, A. Comte descobre a «lei dos três
estados». «Ao estudiar o desenvolvirnento total da inteligência
humana nas suas diversas esferas de actividade, desde o seu primeiro sucesso
mais simples até aos nossos dias, creio ter descoberto uma grande
lei fundamental à qual está sujeito por urna necessidade
invariável e que me parece poder ser solidaniente estabelecida,
quer sobre as provas racionais fornecidas pelo conhecimento da nossa organização,
quer sobre as verificações históricas que resultam
de um exame atento do passado. Esta lei consiste em que cada uma das nossas
concepções principais, cada ramo dos nossos conhecimentos,
passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes:
o estado teológico, ou fictício; o estado metafísico,
ou abstracto; o estado científico, ou positivo...»
No
estado
teológico, o espírito humano, que dirige essencialmente
as suas investigações para a natureza íntima dos seres,
as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o chocam, numa palavra,
para os conhecimentos absolutos, representa para si mesmo os fenómenos
como produzidos pela acção directa e contínua de agentes
sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária
explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado metafísico,
que
no fundo não passa de uma simples modificação geral
do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por
forças abstractas, verdadeiras entidades (abstracções
personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como
capazes de engendrar por si só todos os fenómenos observados,
cuja explicação consiste então em atribuir para cada
um a entidade correspondente. Finalmente, no estado positivo, o
espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções
absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer
as causas íntimas dos fenómenos, para se empenhar unicamente
em descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação,
as suas leis efectivas, ou seja as suas relações invariáveis,
de sucessão e de semelhança. A explicação dos
factos, reduzida então aos seus termos reais, já só
é a partir de agora a ligação estabelecida entre os
diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais cujo número
os progressos da ciência tendem cada vez mais para diminuir (Cours
de Philosophie positive, Primeira lição, t. I, ed. 1864,
pp. 8-10).
Em
princípio, a «lei dos três estados» corresponde
a uma determinada estrutura da inteligência humana. A. Comte observa:
«Cada um de nós, ao contemplar a sua própria história,
não se lembra de que foi sucessivamente teólogo na sua infância,
metafísico na juventude e fisíco na virilidade?» (Cours,
t.
I, p. 11). De facto, a «lei dos três estados» caracteriza
sobretudo o modo de constituição das ciências. Cada
ramo do conhecimento passa pelos três estados e só se torna
ciência no estado positivo. Por outro lado, a emergência progressiva
do estado positivo no saber permite classificar as ciências por ordem
de aparecimento cronológico, de generalidade decrescente e de complexidade
crescente. As cinco ciências fundamentais, às quais se ligam
ciências aplicadas, classificam-se dentro da ordem hierárquica
seguinte: a matemática, a astronomia, a física,
a química,
a biologia. Chega o momento, segundo A. Comte, de junta rà lista
uma sexta ciência: a sociologia (ou física social). Com esta
nova ciência positiva, o homem descobre que é um animal social;
e está em condições de aprender as instituições
religiosas, morais, educativas, políticas, jurídicas, etc.
que regulam o funcionamento das sociedades humanas.
À
primeira vista, a «lei dos três estados» apresenta-se
como uma teoria do conhecimento; considerando-a de mais perto, revela-se
também como uma filosofia da história. Com efeito, ao passo
que Hegel encara a marcha do Espírito segundo os três tempos
da dialéctica, Comte imagina a progressão do espírito
humano por etapa, segundo o ritmo igualmente ternário mas diferentes
na sua essência dos três estados. Nos seus últimos escritos,
A. Comte parece aplicar bem directamente a lei dos três estados à
evolução das sociedades ocidentais. Na Idade Média,
o espírito teológico teria imposto o reconhecimento de uma
autoridade sacralizada, uma confusão dos poderes espirituais e dos
poderes temporais, uma estrita hierarquia social influenciando toda a organização
das instituições feudais. Nos tempos modernos, desde o Renascimento
até ao século das Luzes, o espírito metafísico
teria iniciado uma crítica radical dos modos de pensamento e das
organizações sociais, mas baseando-se em entidades abstractas,
como os Direitos do Homem, o Estado constitucional, etc. No século
XIX, quando a sociedade europeia está empenhada na idade industrial,
o espírito positivo deveria promover as ciências e as técnicas
e instaurar uma nova ordem em que os poderes seriam divididos entre sábios
filósofos e capitães de indústria. A “lei dos três
estados» permite, portanto, interpretar a aventura humana nas suas
grandes linhas, pelo menos no Ocidente.
Depois
de ter fundado uma Sociologia, uma ciência de observação,
A. Comte tem a ambição de edificar uma Política, um
método de acção. O que expõe no Sistema
de política positiva, publicado em 1853-1854. Com efeito, o
conhecimento científico dos factos sociais dá o meio de agir
sobre eles, de os modificar, de os ordenar de maneira racional. Contudo,
a aplicação de uma política positiva implica a fundação
de uma religião positiva. Nesta fase, A. Comte tira uma ideia do
seu mestre Saint-Simon, segundo a qual só uma nova religião,
adaptada à idade industrial, pode dar satisfação ao
altruismo inerente à natureza humana. A partir de então,
A. Comte cai no delírio místico: celebra a «Religião
da Humanidade», cujo dogma assenta numa trindade curiosa: o Grande
Meio (O Espaço), o Grande Idolo (a Terra) o Grande Ser (a Humanidade);
cujo culto supõe a existência de padres, de templos, de sacramentos
e orienta-se para a adoração da Mulher (que se assemelha
singularmente a Clotilde de Vaux). O pensamento de A. Comte, marcado inicialmente
por um certo racionalismo, acaba numa religiosidade exaltada. O caso não
é isolado. Em meados do século XIX, a maior parte dos socialistas
utópicos — H. de Saint-Simon e os seus discípulos Ch. Fourier,
V. Considérant, P. Leroux, etc. — misturam estreitamente as análises
concretas desvendando os mecanismos da sociedade capitalista industrial
e os sonhos mais desenfreados respeitantes à organização
harmoniosa de sistemas económicos, políticos e religiosos,
todos visando assegurar a felicidade dos homens.
4.
Spengler e o destino orgânico
Oswald
Spengler nasceu em 1880, na Alemanha Central, na região do Harz.
Adquire uma formação científica, o que lhe permite
ensinar matemática em diversos colégios secundários,
nomeadamente em Hamburgo. Durante estes anos da Belle Epoque, acumula
uma soma de conhecimentos livrescos e começa a redigir o seu Esboço
de uma morfologia da história universal. A Primeira Guerra Mundial
abranda a elaboração da obra que só é publicada
em 1918, exactamente na hora da derrota da Alemanha, sob um título
ao mesmo tempo atraente e inquietante: O Declínio do Ocidente.
O
primeiro volume apresenta-se como uma reflexão teórica sobre
os fundamentos da ciência e da arte através do conjunto das
civilizações (o livro compacto, de difícil acesso,
não conta menos de 875 páginas na edição francesa).
O segundo volume, de um peso menos esmagador, de uma leitura mais fácil,
trata exclusivamente dos problemas da Alemanha contemporânea. A obra
conhece imediatamente um êxito de livraria: a tiragem atinge cerca
de cem mil exemplares, ou seja ultrapassa a comunidade científica
para atingir uma fracção muito ampla da opinião pública.
Em seguida, O. Splenger publica panfletos políticos por exemplo,
«Prussianidade e Socialismo», em 1920, e artigos sobre a actualidade,
reunidos sob a designação de «Escritos históricos
e filosóficos». Sob a República de Weimar, o antigo
professor de matemática figura como «mestre pensador»
da direita monárquica, nacionalista, anti-republicana e anti-socialista.
Não esconde determinadas simpatias pelos nazis até à
sua chegada ao poder em 1933, mas afasta-se deles depois da «noite
dos facas longas» em 1934. O. Spengler morre em Munique em 1936.
Em
O
Declínio do Ocidente, o autor utiliza um método constantemente
comparatista: mistura todas as civilizações aparecidas no
planeta e todos os domínios das actividades humanas. Avalie-se por
esta passagem escolhida ao acaso: «Uma mesquita não tem fachada,
é por isso que a tempestade iconoclasta dos Muçulmanos e
dos Cristãos paulicianos que fez também sevícias em
Bizâncio no tempo de Leão III teve de banir da arte plástica
a do retrato para depois só deixar um fundo sólido de arabescos
humanos. No Egipto, o rosto de uma estátua é, como o pilar
enquanto fachada do templo, uma aparição grandiosa que emerge
da massa pedregosa do corpo, como se vê da esfinge hyksos de
Tanis, retrato de Amenemhet III. Na China, assemelha-se a uma paisagem
cheia de sulcos e de pequenas cicatrizes carregadas de significado»
(edição francesa, t. I, p. 251). Em menos de dez linhas,
o erudito compara as formas das mesquitas, dos templos, das estátuas,
desliza do Islão para Bizâncio, do Egipto faraónico
para a China imperial. Uma abordagem estética destas faz pensar
no Museu imaginário de André Malraux que justapõe
assim as obras de arte através do tempo e do espaço. A reflexão
por analogia, tal como é praticada nesta obra, dá o flanco
à crítica, na medida em que assenta inevitavelmente em conhecimentos
de segunda ordem, que nem sempre são muito seguros. Mas, como observou
L. Febvre, a vontade de síntese, mesmo se peca pelo excesso da sua
ambição, muda agradavelmente da minúcia estéril
monografias demasiado especializadas, que os universitários «positivistas»
apreciam na Alemanha e em França no final do século XIX e
no início do século XX.
O.
Spengler anuncia, num sentido, o estruturalismo. O seu postulado inicial
é que a ciência não é universal. Para fazer
a demonstração, deve segmentar a humanidade em blocos absolutamente
estranhos uns aos outros. Dentro desta perspectiva, as civilizações
funcionam como estruturas fechadas, que não comunicam entre si no
plano das ideias racionais. Contudo, no seio de uma civilização
particular, os elementos correspondem-se: as mentalidadles colectivas,
as expressões artísticas, as técnicas produtivas,
as instituições políticas, todas as criações
culturais e materiais têm afinidades entre si. E assim que se encontra
no mundo germânico: «A profunda interdependência psíquica
entre as teorias psicoquímicas mais modernas e as representações
ancestrais dos Germanos; a concordância perfeita entre o estilo da
tragédia, a técnica dinâmica e a circulação
monetária dos nossos dias; a identidade em primeiro lugar estranha,
depois evidente entre a perspectiva da pintura a óleo, a imprensa,
o sistema de crédito, as armas de fogo, a música contemporânea...»
Nestas condições, cada civilização formando
uma entidade homogénea, fechada sobre si mesma, irredutível
às outras, a história universal está colocada sob
o signo da descontinuidade. A visão, que dominara o pensamento do
século XIX, de uma história contínua, linear, progressiva,
é directamente posta de novo em causa. Com uma ironia desdenhosa,
O. Spengler atira para o armazém dos acessórios inúteis
as periodizações tradicionais — Antiguidade, Idade Média,
Tempos Modernos — sobre os quais assenta o ensino da história nas
universidades. Depois de Hegel, Marx e outros «faróis»
da filosofia alemã, Spengler entende fornecer uma interpretação
global da história. Segundo Hegel, a história esclarece-se
pela marcha racional do Espírito do mundo em direcção
à liberdade. Segundo Marx, a história compreende-se pelo
jogo das contradições entre os níveis das infra-estruturas
e das superestruturas até à construção de uma
sociedade sem classes. Para Spengler, «os homens são escravos
da vontade da história, os orgãos auxiliares executivos de
um destino orgânico». Com efeito, na concepção
spengleriana, a toda-poderosa natureza submete os vivos a irresistíveis
impulsos. A orgânica reina no estado bruto. Como as grandes árvores
conseguem abafar as pequenas para acederem à luz, os seres humanos
devem manifestar a sua «vontade de poder», impor a sua força
perante os seus semelhantes menos bem providos em energia natural, mais
resignados a deixarem-se dominar ou aniquilar. E as sociedades são
animadas como vegetações extraordinárias: têm
uma Primavera que traz a esperança, vê florescer a criação;
um Verão que permite a maturação, assegura o progresso;
um Outono que faz expandir os frutos de uma cultura; um Inverno, finalmente,
que corresponde à degenerescência e à morte. O autor
do Declínio do Ocidente chega a afirmar: «A humanidade,
para mim, é uma grandeza zoológica». O vitalismo de
Spengler, que pode surpreender-nos hoje, não deve ter espantado
os seus contemporâneos. No final do século XIX e no início
do século XX, uma corrente de pensamento influente, ilustrada por
Schopenhauer, Bergson e outros, tende para edificar sistemas filosóficos
inspirando-se nos resultados das ciências naturais. A «orgânica
spengleriana» pertence a este universo mental.
Segundo
O. Spengler, «a civilização é o destino inevitável
de uma cultura». Por outras palavras, cada sociedade nasce sob a
forma de uma «cultura», depois degrada-se sob a forma de uma
«civilização». Spengler insiste no exemplo famoso
da Grécia e de Roma. Do século VI ao IV a, C., em redor do
Mar Egeu, os Gregos inventaram uma filosofia — com Anaxágoras, Platão,
Aristóteles — unia literatura — com Esquilo e Sófocles, Tucídides,
Xenofanes e Isócrates—, uma escultura —com Escopas, Praxíteles,
Lisipo —, uma arquitectura com os templos do Parténon, de Delfos,
de Efeso, ele Epidauro, etc. A epopeia de Alexandre estendeu o helenismo
a todo o Próximo Oriente. E então que, do século III
ao século I a. C., os Romanos, dotados de talentos militares e perfeitamente
incultos por outro lado, conquistaram e submeteram, pelo ferro e pelo fogo,
o conjunto dos reinos helenísticos. Todavia, os Romanos não
destruíram como simples bárbaros; serviram-se dos modelos
culturais dos Gregos — a organização da cidade, a mitologia
religiosa, as técnicas da arquitectura, da escultura, da pintura
— e impuseram-nos, sem os renovar, a todo o mundo mediterrânico.
A cultura grega termina em civilização romana. Desde há
vinte séculos, de Políbio a Mommsen, os historiadores estão
mais ou menos de acordo sobre a evolução geral do «mundo
helenístico e romano». Spengler não traz nenhum elemento
novo ao assunto. A sua originalidade tem a ver com o facto de que aplica
o mecanismo próprio do mundo greco-romano a todas as sociedades,
a Babilónia, ao Egipto, à India, à China.., e ao Ocidente
cristão.., que teriam passado inelutavelmente da «cultura»
para a «civilização».
Se
todas as sociedades devem percorrer o mesmo ciclo «orgânico»,
estão votadas à decadência e depois ao desaparecimento.
Spengler enuncia, por conseguinte, uma filosofia da história radicalmente
pessimista. Afirma: «Não vejo para a humanidade nem progresso
nem objectivo, se não for no cérebro dos Homens progressistas
do Ocidente. Nem sequer vejo um espírito e muito menos ainda uma
unidade de esforços e de sentimentos… nesta massa de populações».
Perante o caos, o filósofo esforça-se por permanecer impávido:
«E mesmo quando os povos inteiros perecem e velhas civilizações
caem em ruínas, a terra continua sempre a girar e os planetas a
seguirem o seu curso». Ora, o fim irrevogável existe também
para a civilização ocidental: «A França e a
Inglaterra realizaram, a Alemanha está em vias de realizar esse
passo de gigante em direcção à orgânica, em
direcção ao fim» (edição francesa, t.
I, p. 12). A obra, que proclama o «declínio do Ocidente»,
vem na hora exacta, no momento do armistício de Rethondes e do tratado
de Versalhes. A Alemanha, potência em plena ascensão durante
a Belle Epoque. perdeu a guerra mundial; encontra-se com um exército
vencido, um território ocupado e parcialmente amputado, uma moeda
desvalorizada, um regime político conturbado. As insurreições
comunistas e os putschs nacionalistas ameaçam a todo o instante
lançar abaixo a República dos sociais-democratas. O livro
de Spengler, que, noutros tempos, teria podido dormir à sombra das
bibliotecas, encontra uma ampla audiência junto de um público
alemão ávido de justificar a sua própria catástrofe
por uma teoria geral das catástrofes.
5.Toynbee
e o ciclo das civilizações
Arnold
Toynbee é um historiador e um ensaísta, nascido nos últimos
anos do século XIX na Grã-Bretanha. Em Agosto de 1914, quando
ensina em Oxford, toma consciência de que ele, Toynbee, está
mergulhado na Primeira Guerra Mundial como Tucídides foi confrontado
com a guerra do Peloponeso. Decide, para sempre, ser ao mesmo tempo actor
e espectador, «ter sempre um pé no presente, um outro
no passado». De facto, durante decénios, Toynbee trabalha
por conta do Foreign Office num anuário dos Negócios
Estrangeiros; efectua missões, redige estudos sobre «a Africa
árabe e a Africa negra», «a cultura da China e do Japão»,
«o papel das cidades na história», etc. Ao mesmo tempo,
Toynbee elabora uma enorme síntese respeitante ao nascimento, crescimento
e decadência das civilizações. A obra monumental, intitulada
A
Study of History, é publicada em doze volumes, que se escalonam
de 1934 a 1961. A série nunca foi traduzida em francês. Já
tarde, por preocupação de atingir um público mais
vasto, o autor dá um décimo terceiro volume, que resume os
precedentes. Desta vez, o livro é traduzido para francês,
sob o titulo L’Histoire (Paris, Elsevier, 1975, 575 páginas).
Num prefácio, R. Aron assinala que A Study ofHistory é
«a obra mais célebre e mais controversa da historiografia
contemporânea»... e «que é recusada com uma mistura
de indignação, de inveja e de desprezo pela maioria dos historiadores
profissionais».
Com
efeito, Toynbee contesta francamente a atitude seguida pelos historiadores
franceses, dos «positivistas» tradicionais aos inovadores dos
«Annales».
O ensaísta britânico considera que a hierarquização
das tarefas no plano intelectual reflecte lamentavelmente a divisão
do trabalho na sociedade industrial. Ora, acontece que a escola histórica
francesa funciona a três níveis: em primeiro lugar, inúmeros
historiadores consagram-se à recolha laboriosa das «matérias-primas»
— vestígios arqueológicos, recolhas de inscrições,
relatórios, correspondências, jornais, séries estatísticas,
documentos de todo o género; em seguida, a maioria dos investigadores
elaboram estudos ele carácter monográfico sobre um personagem,
um grupo social, uma região, um sector de actividade, em limites
cronológicos estreitos; finalmente, alguns «mestres»,
que pretendem um maior saber, justapõem as observações
das monografias para confeccionarem obras de síntese. Segundo Toynbee,
resulta deste método: 1) que os conhecimentos são
muitas vezes determinados apenas pela importância das fontes (deste
modo, está-se bem informado sobre o Egipto ptolomeico porque a aridez
das margens do vale do Nilo permitiu preservar uma massa de papiros, ao
passo que se ignora quase tudo da Síria selêucida porque as
condições de conservação dos documentos eram
menos favoráveis no Crescente Fértil); 2) que os historiadores,
frequentemente, contentam-se com vistas parciais, reduzidas ao horizonte
de sua especialidade. Para Toynbee, o que conta é a visão
de conjunto; prefere o «grande largo», a reflexão planetária,
trespassando os séculos e os continentes, a fim de «apanhar
na armadilha do espírito todo o universo».
Toynbee
pratica portanto, na sequência de Spengler, uma história comparatista,
que assenta numa documentação de segunda ordem, e usando,
por vezes abusando, do raciocínio por analogia. O ensaísta
britânico, como o mestre pensador alemão, prefigura o «estruturalismo»
nas ciências humanas. Em A Study of History, a evolução
das sociedades deixa de ser contínua, linear, orientada. Toynbee
só se interessa pela unidade histórica, a mais ampla no espaço,
a mais longa no tempo, a saber «a civilização».
O que define como: «A tentativa para criar um estado de sociedade
no qual todos os homens possam viver juntos, em harmonia, como os membros
de uma única e mesma família». Sob determinados aspectos,
a visão de Toynbee não está muito afastada da de Marx.
Quando o historiador britânico escreve: «O componentes da sociedade
não são os seres humanos, mas as relações que
existem entre eles», poderia traduzir-se, na terminologia marxista:
«A sociedade está cercada por uma rede de relações
sociais de produção». Seja com for, o autor de A
Study of History percebe as civilizações como entidades
fechadas, compartimentadas umas em relação às outras;
enumera cerca de trinta e quatro «grandes civilizações»,
cerca de 3000 a. C. até aos nossos dias por exemplo, o Egipto faraónico,
a Mesopotâmia (de Sumer a Assur), a China imperial, o Peru dos Incas,
o Império otomano, etc. Uma «grande civilizaçãopode
ter «satélites»; assim, em redor da civilização
chinesa, os satélite coreano, japonês e vietnamita. E as civilizações
não se sucedem inevitavelmente, podem coexistir. No século
XX, cinco grandes civilizações dividem entre si o planeta:
o Ocidente, a União Soviética, e as suas dependências,
Islão, a India e o Extremo Oriente.
Toynbee
interroga-se sobre o nascimento das civilizações. E aí
que introduz o seu modelo mais original: o mecanismo do «chalienge
and response» do desafio e da resposta. Uma civilização
pode aparecer quando esbarra com um obstáculo, quando enfrenta uma
prova; nasce da dificuldade e não da facilidade. Muitas vezes o
desafio vem do meio natural. Quando, no fim da glaciação,
as ricas pradarias do Sara e do Próximo Oriente deram lugar a desertos,
comunidades de criadores de gado recusaram-se a desaparecer, mergulharam
nos vales malsãos do Nilo e do Eufrates e começaram a drenar,
construir diques, a irrigar os pântanos para os transformar em campos
cultivados. Foi assim que emergiram as civilizações do Egipto
e da Caldeia. D mesmo modo, os Maias tiveram de desbravar a floresta virgem
antes de construírem as cidades do Iucatão; os Incas instalaram
os seus templos e palácios nos altos planaltos, muito pouco hospitaleiros,
dos Andes; os Prussianos valorizaram as terras frias e húmidas do
Brandeburgo. Por vezes, a intimação pode ser de ordem humana.
Os Aqueus, ainda bárbaros, submergiram os Cretenses, mais requintados,
venceram o obstáculo do espaço marítimo e edificaram
a brilhante civilização helénica em redor da bacia
do Egeu. Os Turcos sofreram o choque terrível da invasão
dos Mongóis, conseguiram sobreviver e, meio século mais tarde,
iniciaram a construção do Império otomano. Se se seguir
Toynbee, enquanto maior a dificuldade, mais forte se torna o estimulante».
Mas podemos perguntar se a lei do «challenge and response»
funciona
em todas as circunstâncias. A civilização cristã
ocidental que floresceu em redor de Paris e de Londres estabeleceu-se em
terras férteis, beneficiando de um clima temperado, e não
sofreu invasões dolorosas.
Neste
caso, se se conhece a resposta, procura-se inutilmente o «desafio».
Passado o momento decisivo do nascimento, qualquer civilização
empenha-se num processo de crescimento. Por vezes o desafio é demasiado
difícil de distinguir e a civilização «aborta»
ou «fica em suspenso»: assim, os Esquimós tentaram vencer
um meio polar demasiado desumano e só conseguiram manter estruturas
rígidas de sobrevivência; os Polinésios da ilha da
Páscoa não conseguiram dominar a imensidade do Pacífico,
ficaram isolados e desapareceram; os Celtas tiveram de fazer frente a assaltos
conjugados — dos Romanos, dos Germanos, dos Vikings — as suas instituições
não atingiram a maturidade. Quando o estimulante é suficiente,
sem ser excessivo, a civilização empreende o seu desenvolvimento:
domina cada vez melhor o meio natural e aumenta as produções
materiais; elabora instituições civis, militares, religiosas
cada vez mais complexas; cria em abundância obras literárias
e artísticas. O movimento é lançado por personalidades
excepcionais — Confúcio, S. Paulo, Maomé, Lénine,
etc., ou por élites inventivas: os aristocratas gregos, os
junkers prussianos, os bolcheviques, etc. No período de crescimento,
podem distinguir-se três variantes principais: 1) o modelo helénico,
caracterizado pela passagem de unidades políticas restritas, as
cidades-Estado, para um Império Mundial (neste caso, o mediterrânico
helenístico e romano); 2)o modelo chinês, marcado pela alternância,
na longa duração, de decadências e de renascimentos
de um Estado de vocação universal; 3) o modelo judeu,
ligado ao fenómeno da «diáspora», em que o grupo
humano, privado de um território nacional, procura preservar a sua
identidade graças à estrita observância de uma religião
e de uma maneira de viver.
Primeiro
o nascimento, depois o crescimento, e a seguir a decadência. Como
se sublinhou ironicamente, Toynbee é «um grande massacrador
de civilizações.» Ao passo que, segundo Spengler, uma
civilização enfraquece porque é vítima de um
envelhecimento biológico, segundo Toynbee, uma civilização
declina porque o quer, porque se deixa ir. Atenas, Veneza ou Constantinopla
enterraram-se, renunciaram a defender-se porque já só pensavam
na sua glória passada. E perigoso para uma civilização
adormecer sobre os seus louros. Os sinais precursores da degenerescência
são perturbações sociais, guerras civis ou a formação
de impérios militares — o dos Aqueménidas, dos Romanos, dos
Guptas. Na fase última, dois agentes podem encarregar-se da execução:
quer um proletariado interior, quer um proletariado exterior, ou os dois
juntos. Assim, do século III ao século V a.C. as revoltas
dos Cristãos, dos Bagaudes e outras camadas populares no interior
das províncias, e as invasões dos Godos, dos Alanos, dos
Vândalos e outros bárbaros que atravessam as fronteiras, adicionaram
os seus efeitos para provocarem a queda do Império Romano. Na nossa
época, no século XX, o enfraquecimento da Europa Ocidental
é atestado pelas sangrias e as destruições das duas
grandes guerras e pelos choques das lutas operárias, que anunciam
revoluções socialistas, até mesmo comunistas (curiosamente
autor nada diz sobre as atrozes atitudes fascistas). Em definitivo, Toynbee
como Spengler, constata o recuo da Velha Europa e o aumento da força
dos Estados Unidos e da União Soviética.
Como
vimos, Spengler publicou O Declínio do Ocidente a seguir
à derrota do Segundo Reich alemão. Ora, Toynbee redige A
Study
of History, entre o início dos anos 1930 e o final dos
anos 1950, na época em que a Grã Bretanha perde o seu império
colonial. Não são simples coincidências. Os dois autores
tiram das suas próprias experiências a convicção
de que «as civilizações são mortais».
Contudo, enquanto Spengler mergulha num niilismo fortemente colorido de
racismo e de xenofobia, Toynbee não se entrega ao pessimismo e volta-se
para o deísmo. No final da sua obra, Toynbee interessa-se pelas
religiões universais — o budismo, o islão, o cristianismo
— que sobrevivem aos impérios, fazem nascer novas civilizações,
permitem aceder a realidades espirituais superiores. Claro que a Igreja
na Terra nunca será a transposição perfeita da Cidade
de Deus. Mas o objectivo da religião é salvar as almas, não
as instituições. Toynbee conclui: «O sentido da história
é fazer do mundo uma província do reino de Deus... Os homens
não passam de peões, reduzidos à impotência,
ao jogo que Deus joga neste xadrês dos dias e das noites, que faz
mover em todos os sentidos, imobiliza e retira, e que volta a colocar,
um a um, na sua casa». A Study of History, que se apresenta
à partida, como uma filosofia da história apreendida de maneira
empírica, desemboca, no fim do percurso, numa teologia da história,
baseada num providencialismo de aspecto arcaico.
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