A história e os seus usos

 

Simon Kuin

 

Lisboa, EXPRESSO, 23-09-00

 

QUEM se lembrar do Pavilhão de  Portugal da Expo'98, ou da  exposição  «Liberdade e Cidadania - 100 Anos   Portugueses» na Cordoaria Nacional,  em Lisboa, sabe que a História tem  muitos usos, entre os quais se destaca o seu uso político. O aproveitamento  do passado para fins ideológicos  (sejam eles positivos ou negativos)  não é de hoje ou de ontem, mas tem  uma história que remonta pelo menos  até à criação dos Estados-nações. O  10 de Junho, o 14 de Julho e o 5 de Outubro são outros tantos exemplos de legitimação histórica do Estado-nação ou de um determinado tipo de regime político ou constitucional.

 

Contudo, a História é cada vez mais «mobilizada» para fins  políticos. Quem o  diz é Jacques Revel, director da École des Hautes Études en Sciences  Sociales (EHESS) de Paris, e coordenador do curso «Usages Politiques de l’ Histoire», que teve lugar de 4 a 8 de Setembro no Convento da Arrábida.

 

 Revel, conhecido dentro e fora do seu país pelos seus estudos da história  cultural e das mentalidades, convidou uma série de participantes que focaram casos específicos - e exemplares - do uso político da história. Entre eles, o historiador Giovanni Levi, da Universidade de Veneza e Ilan Greisammer, da Universidade Bar-Ilan de Telavive, que falou sobre a legitimação histórica (e até arqueológica) do Estado de Israel e do futuro Estado de Palestina. Pedro  Ruiz Torres, da Universidade de Valência, falou sobre a «normalização» da  História na Espanha, ou, em outras palavras, sobre o recente debate no país  vizinho em torno da questão de saber se a História espanhola dos últimos 150  anos é fundamentalmente diferente da de outros países europeus. François Hartog, da EHESS, reflectiu sobre o papel da testemunha na História, papel  cada vez mais importante devido à mediatização do ofício de Clio. Por fim, Michael Werner, também da EHESS, abordou o uso político da História na

 

Alemanha - onde a reflexão colectiva sobre a História recente foi levado mais  longe do que em qualquer outro país - através de uma análise de dois museus  de História Contemporânea: a Casa da História da República Federal da Alemanha, em Bona, e o Museu Histórico Alemão, em Berlim. Werner falou com o EXPRESSO sobre a prática dos usos políticos da História.

 

Concorda com Jacques Revel, que vê um aumento dos usos políticos  da história?

 

Concordo, e acho que o fenómeno tem a maior expressão na actual «vaga de comemorações». Comemorações que estão ligadas a interrogações sobre a  nossa identidade e a relação entre o passado e o presente. A nossa visão do tempo está a mudar e as comemorações modernas reflectem esse processo.

 

Em segundo lugar, há o papel da comunicação social e da mediatização da sociedade. São os «media» que usam e abusam do testemunho como fonte de História, e é devido à televisão que até a historiografia tradicional tem vindo a  reconsiderar o seu papel na sociedade, no sentido de superar a sua aversão ao debate televisivo. Mas nem todos souberam responder à «procura» pelos «media». Um bom exemplo disso é o debate altamente mediático em torno do livro Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen. Muitos  historiadores acharam que não valia a pena debater sobre as teses de Goldhagen, por considerarem que a tese central de Os Carrascos... estava mal fundamentada. No entanto, houve uma grande «procura», da parte do  público e dos «media», de opiniões de historiadores, que não souberam reagir adequadamente.

 

                           Como devem reagir os historiadores?

 

Acho que o tempo em que os historiadores se encerrarem em torres de  marfim acabou definitivamente. Eles devem aprender a abrir-se para o debate  público, a participar também nos debates mais mediáticos, sem, contudo, andarem a prostituir-se. É preciso que encontrem uma maneira própria de darem as opiniões e respostas históricas que lhes são solicitadas.

 

 Analisou, no Convento da Arrábida, a caso específico de dois museus alemães na criação de uma consciência histórica nacional. Pode este  modelo funcionar a uma escala supra-nacional, por exemplo na União Europeia?

 

Esse é um problema muito delicado. Existe um projecto para um museu de  História Europeia em Bruxelas, que de imediato foi criticado por causa de certos critérios históricos. Onde fazer começar a história europeia, por  exemplo? Com Carlos Magno? Isso significaria excluir países como a Polónia  e a Hungria das origens da Europa. Ainda por cima, eu acho que os historiadores não deveriam participar num projecto de construção da «identidade europeia» à maneira antiga, ou seja, à maneira como se construíram as identidades nacionais. A contribuição da historiografia devia situar-se mais no campo de mostrar a diversidade de experiências históricas  que formam a Europa. Diversidade e interdependência, porque a história da Europa se baseia no princípio do intercâmbio. Tentar construir uma  «consciência histórica europeia» à maneira antiga resultaria em algo muito abstracto, e por isso mesmo pouco credível e até fictício.